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Lupa na ciência: publicações científicas forçadas a reconsiderar processos de revisão

A retratação de um artigo é prevista nos protocolos de periódicos renomados quando algum tipo de má conduta, fraude ou erro é detectado

22/07/2020
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Até pouco tempo quase ninguém tinha ouvido falar da Surgisphere, mas isso mudou depois de uma centena de especialistas terem contestado o estudo que associava antimaláricos ao aumento do risco de morte em pacientes com COVID-19

O “New England Journal of Medicine” e a revista “The Lancet”, duas das mais prestigiadas publicações científicas na área da medicina, viram-se forçados a retirar estudos relacionados com a COVID-19 e a reconsiderar os seus procedimentos de revisão por pares. Uma investigação do jornal britânico “The Guardian” revelou que a empresa norte-americana Surgisphere, cujos funcionários parecem incluir um escritor de ficção científica e um modelo de conteúdo adulto, forneceu dados para vários estudos sobre a COVID-19, com a coautoria de seu diretor executivo. Três dos quatro autores do estudo que sugere que os antimaláricos cloroquina e hidroxicloroquina podem aumentar o risco de morte de doentes com COVID-19 retrataram o estudo, invocando que não garantem a veracidade dos dados. A retratação de um artigo é prevista nos protocolos de periódicos renomados quando algum tipo de má conduta, fraude ou erro é detectado.

O epidemiologista que coordena o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (CIDACS), da Fiocruz na Bahia, o Dr. Maurício Barreto, ressalta que não há dúvida que esse trabalho está totalmente desmoralizado. Ainda de acordo com ele, o caso é um dos mais estranhos que viu nos últimos tempos no que diz respeito aos termos de uso de dados e, principalmente, à capacidade de envolver pesquisadores de importantes instituições. O estudo foi assinado por Mandeep Mehra, do Hospital Brigham de Mulheres de Boston, Universidade de Harvard (EUA), Frank Ruschitzka, do Hospital Universitário de Zurique, Universidade de Zurique (Suíça), Amit Patel, do Departamento de Bio-Engenharia da Universidade de Utah (EUA), e Sapan Desai, cirurgião e fundador da Surgisphere. “As universidades envolvidas, são instituições tradicionais e que têm imenso cuidado com questões que envolvem ética e integridade, além de outros tópicos. Como pode um trabalho com essa importância, cujo o debate sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina ainda persiste, ter passado no crivo dessas instituições e de duas das mais importantes revistas científicas do mundo?”, questiona o coordenador do CIDACS.

Muitos investigadores expressaram dúvidas sobre o trabalho e levantaram questões sobre os métodos utilizados e a origem dos dados. Mas o grande enigma é: como uma empresa, pouco conhecida, repentinamente possuía informações de quase 100 mil pacientes, de mais de 400 hospitais do mundo. “Qualquer pessoa que trabalhe com dados sabe o quanto é difícil obter e extrair informações sobre pacientes de um hospital. Imagine de mais de 400. Isso soou muito estranho na comunidade que lida com dados”, relata o Dr. Barreto. O fato gerou um grande conflito que desencadeou todo um sistema de investigação sobre a origem dos dados e que teve como consequência a retratação do artigo devido à falta de clareza da Surgisphere sobre o direito aos dados, bem como se eles realmente eram reais ou fabricados. Para o Dr. Barreto, essa é a grande questão e nada leva a crer que eles tiveram acesso aos dados supostamente obtidos.

As incongruências do estudo publicado

Entre as várias incongruências do estudo publicado no The Lancet, o Dr. Barreto destaca a falta de clareza na demonstração da origem dos dados. “Isso é uma coisa central, de ordem legal e ética “Nenhum dado pessoal ou de instituição pode ser trabalhado por outros sem que tenhamos todos os sistemas de autorização possíveis”, acrescenta. De acordo com o pesquisador, isso leva a uma reflexão muito intensa: como as universidades envolvidas, os revisores (peer reviewers) e os editores de duas revistas das mais importantes do mundo, aceitaram isso. “Para mim, essa é outra grande incongruência do processo”, enfatiza. O Dr. Barreto reconhece ainda problemas de análise e metodológico – este é parte importante do debate, mas que possivelmente poderia ser corrigido por carta aos editores, emendas ou discussões. Outra inconsciência citada pelo epidemiologista diz respeito aos casos de óbitos totais ocorridos no país (como por exemplo, Austrália) e o número relatado no artigo.

O maior escândalo científico relacionado à pandemia de COVID-19 fez com que o maior estudo observacional com a cloroquina, publicado no final de março, fosse removido. O trabalho afirmava que a droga aumentava o risco de morte dos pacientes. A retratação das duas maiores revistas médicas do mundo revelou os riscos da ciência feita às pressas, na tentativa de acompanhar a velocidade do novo coronavírus Além disso, o fato do estudo ter sido retratado não implica que os antimaláricos tenham algum efeito bem estabelecido e seu uso continua não tendo fundamento, muito menos em estágio pré-sintomático ou sintomas leves. De acordo com o Dr. Barreto, esses medicamentos realmente continuam sem nenhuma evidencia  de que tenham efeito em pacientes com COVID-19, pois até agora não há nada publicado sério, que mostre este efeito. Ainda de acordo com ele, os estudos cursos foram afetados pelo artigo que relatava a toxicidade e os efeitos do medicamento sobre à saúde e a ampliação do risco de óbito em pacientes de COVID-19. “A visão da comunidade científica é de que não há evidência que justifique o uso da hidroxicloroquina ou da cloroquina em qualquer estágio da doença. A maioria dos casos leves evolui sem nenhuma complicação, ou seja, administrar esses ou outros medicamentos não representa a cura, pois eles melhorariam de qualquer maneira, é o que chamamos efeito placebo”, assinala.

Questionado porque se deu tão grande valor a um estudo de dados secundários a ponto da Organização Mundial da Saúde (OMS) suspender os ensaios clínicos, o Dr. Barreto argumenta que isso não foi um erro grosseiro, até porque o estudo foi publicado em revistas renomadas, foi assinado por pesquisadores de Universidades e instituições respeitáveis, e obviamente isso criou grande impacto científico. Para ele, o problema foi a publicação do artigo. “A primeira reação que se observou foi de cautela, pois se um estudo com quase 100 mil pessoas, com dados coletados em hospitais, mostra que esses medicamentos estão provocando efeitos adversos, já é justificativa suficiente para suspender outros estudos, lógica normal da prática Clínica, visto que nos testes clínicos, dois elementos são centrais. de um lado a eficácia do medicamento e de outro a segurança. Ou seja, o quanto de efeito adverso o medicamento apresenta, muitas vezes, é o fator mais importante em uma decisão clínica – um medicamento pode ser muito eficaz, mas têm muitos efeitos adversos – esse balanço entre os efeitos adversos e os benéficos é o que importa”, explica o Dr. Barreto. Ainda segundo ele, no momento em que sai uma evidência de que o medicamento tem efeitos adversos sem ainda ter sido comprovado os efeitos benéficos, lógico que a comunidade científica internacional e a OMS deveriam se posicionar com uma atitude de cautela justificável. “O problema está no fato desses dados terem sido gerados de alguma forma e terem chegado a publicações científicas e, principalmente, as de tamanho impacto nas quais foram publicados”, atenta.

Mas será que estudos utilizando dados da Surgisphere que foram retratados no “New England Journal of Medicine” e na “The Lancet” são de fato um desserviço à ciência e dá combustível a quem questiona a ciência e o processo científico bem feito? Na opinião do Dr. Barreto não há dúvida de que sim. “As retratações de artigos científicos não é uma coisa nova na ciência, algumas, por exemplo, se dão por questão de falsificação grosseira de dados que chegaram às revistas importantes. Esse não é o primeiro estudo que chega à revista renomada e que houve falsificação de dados. Quando isso ocorre, os trabalhos são retratados, os pesquisadores envolvidos são desprezados pela comunidade científica, principalmente se houve dolo, e a ciência continua; isso representa uma possibilidade do processo científico que está ligado à integridade da ação científica. Errar na ciência é possível, mas não se deve errar dolosamente”, enfatiza. O coordenador do CIDACS lembra ainda que esse fato se dá no curso de uma pandemia, em que há uma grande tensão e ansiedade da sociedade, e que ganhou proporções dramáticas, agravado ainda pelo momento em que há um debate grande entre grupos anti-ciência, grupos que querem renegar, desmoralizar, desprezar a ciência, ou seja, justificar o uso de um medicamento, sem nenhuma fundamentação científica. E assim, criam-se argumentos, aumenta a possibilidade de falsificação, põe-se a ciência em descrédito, questiona-se todo o processo científico.

Instituições devem rever seus processos de se retratar

Para o Dr. Barreto, não só as revista e a OMS devem rever seus processos de se retratação, mas as Universidades também. O pesquisador admite que gostaria de ouvir as partes envolvidas para saber o que estão fazendo em relação ao ocorrido. O pesquisador cobra um posicionamento claro das Universidades e espera que estejam realizando investigações internas e que em algum momento se manifestem. “Acho que todo o processo científico precisa ser revisto. Lógico que isto nunca deveria ter acontecido. Primeiro, a Surgisphere jamais poderia fazer o que fez. Segundo, pesquisadores de grandes instituições não deveriam ter assinado esse trabalho científico, com dados que não sabiam a procedência. E pior, isso não está sendo discutido. Para mim é a questão mais importante, porque não serão as revistas as únicas responsáveis por tapar a peneira de possibilidades de falta de integridade científica. São as instituições que devem cuidar primeiramente. Acho que isso não foi bem discutido neste caso e merece um debate aprofundado: qual foi o papel das Universidades envolvidas nesse processo? Os dados da Surgisphere passaram por essas Universidades? Essas são questões que ainda não foram esclarecidas”, pondera.

Quanto à OMS, o Dr. Barreto acredita que ela não tenha que ser retratar. Em sua opinião, a Organização tomou uma atitude correta ao suspender ou recomendar a suspensão de ensaios clínicos que estavam em curso para proteger os pacientes. “Entendo que qualquer um teria tomado essa atitude, visto que o trabalho foi apresentado à comunidade científica em revista de alta credibilidade. Tudo isso nos leva a refletir sobre a falibilidade do processo de Peer Review. Precisamos pensar em como a ciência pode criar alternativas, porque um dos esteios do processo científico e da credibilidade científica é o Peer Review e no momento que eventos como este acontecem mostram a falibilidade do sistema, demonstrando que realmente deve haver mudanças nos processos adotados. Obviamente o Peer Review, nessa fase da pandemia, se dá de forma acelerado e isso tem gerado novas possibilidades de falhas e, quem sabe, ampliado estas possibilidades”, conclui o Dr. Barreto.

Aspectos positivos do processo científico

A ciência tem a capacidade de se auto-corrigir e por isso é acreditada, ao contrário da política anti-ciência. Isso é um fato importante. Tomamos como exemplo o caso da Surgisphere, quando foi percebido que houve um erro, o processo parou. Ou seja, com todos os efeitos danosos, em vários aspectos que este trabalho criou, ele mostra também aspectos positivos do processo científico. “É um processo que tem erros, que pode falhar, mas que em algum momento pode se corrigir. E isso é um ponto positivo. Claro que é necessário envidar esforços para diminuir ao máximo as possibilidades de falhas, porque ela alimenta as políticas anti-ciência”, frisa o epidemiologista ao dizer que o caso da Surgisphere evidencia o quanto os grupos anti-ciência se fortaleceram imensamente ao mostrar para o grande público a justificativa inversa e que as pessoas estão sendo enganadas pela ciência regular”. Ainda segundo o pesquisador, o caso em questão demonstra que fatos similares não podem ocorrer ou precisam ser reduzidos, principalmente quando envolvem temas controversos, passionais, que evocam o grande público e geram proporções alarmantes e ganham tamanha dimensão.

“A ciência é um processo que tem certas características e neste caso da Surgisphere fugiu às características normais. Por exemplo, há um debate sobre os autores, que não colaboravam antes e não são da área de clínica, farmacoepidemiologia, e sim de áreas que nada tem a ver com a questão de medicamentos ou avaliação de efeitos adversos. É um grupo muito heterogêneo e que não tem afinidade com o tópico. Essa é uma das estranhezas que se levanta e que deveria ter sido observada no início”, aponta o Dr. Barreto. Ele esclarece que durante a pandemia muitos pesquisadores têm se mobilizado e colaborado para realizar trabalhos que fogem às suas áreas, mas repercute que não há no grupo especialistas em efeitos adversos ou em questões mais específicas que o estudo demanda. Para ele, essa falta de clareza e essas incongruências mereciam atenção e talvez o artigo não tivesse sido publicado. “Há ainda enigmas a serem esclarecidos. A Gênese toda do processo está no que aconteceu, bem como na origem dos dados”, reverbera. Por fim, o Dr. Barreto é categórico ao afirmar que colocar todas as fichas no Peer Review ou nas revistas não é o caminho. “Isso é parte do processo, é parte da culpa e da responsabilidade, mas há outros elementos da história, das responsabilidades, que precisam ser investigados para que fatos desse tipo diminuam, ou sejam menos frequentes, e que tenham menos chance de repercutir e se tornarem publicações em torno de temas e em revistas tão importantes”, encerra.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**