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Quatro décadas de HIV / AIDS, muito realizado e muito a se fazer

Apesar dos avanços obtidos no conhecimento da patogenia, diagnóstico e tratamento da AIDS, o desenvolvimento de vacinas eficazes e de estratégias capazes de erradicar o HIV ainda são objetivos não alcançados

08/10/2020

Por Dr. Carlos Brites – Professor Titular de Infectologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Infectologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos (HUPES)

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Manutenção de estratégias combinadas de prevenção, voltadas às populações mais vulneráveis, ampliação do tratamento antirretroviral, e persistência nos esforços em busca de uma solução definitiva ainda são essenciais

Quatro décadas atrás o mundo foi surpreendido com o relato de uma nova doença, caracterizada pela linfopenia acentuada, devido à queda na população de células CD4+, e que evoluía com doenças oportunistas, vistas, até então, apenas em casos de imunodeficiência grave1. A chamada síndrome da imunodeficiência adquirida, SIDA ou AIDS (do original em inglês) passava a concentrar a atenção de toda a comunidade médica e da sociedade, à medida que se desenhava como uma epidemia cosmopolita, atingindo gradualmente todos os países do mundo. Além disso, provou-se capaz de atingir não apenas os homossexuais masculinos, a população primariamente atingida em um primeiro momento, mas homens heterossexuais, usuários de drogas injetáveis, receptores de produtos sanguíneos, mulheres e crianças.

A epidemia de AIDS desencadeou um imenso esforço de pesquisa em todo o mundo, para caracterização da nova doença, e também para elucidação de seu agente etiológico e dos mecanismos patogênicos. Assim, rapidamente foi isolado o retrovírus que causava a síndrome, inicialmente chamado de HTLV-III, devido à sua semelhança aos dois primeiros retrovírus humanos identificados alguns anos antes, e posteriormente nomeado como vírus da imunodeficiência humana (HIV). Essa descoberta possibilitou o desenvolvimento de testes sorológicos para detecção do vírus, permitindo sua busca ativa em casos suspeitos e em seus comunicantes. Entretanto, não havia ainda qualquer tratamento, e a abordagem clínica era voltada para o controle das manifestações da síndrome, com estimativa média de sobrevida de apenas 6 meses, para os casos diagnosticados com manifestações da síndrome. O primeiro medicamento ativo contra o HIV, a azidotimidina (AZT, ou Zidovudina) trouxe esperança para os pacientes diagnosticados com AIDS, mas logo constatamos que sua eficácia inicial era transitória, e os estudos realizados à época demonstraram que o HIV apresentava mutações frequentes em seu código genético, fazendo com que cepas virais mutantes pudessem sobreviver à ação dos medicamentos antirretrovirais, retomando a viremia e a consequente progressão da imunodeficiência.

Outros medicamentos, como a didanosina (DDI) e lamivudina logo se somaram ao arsenal terapêutico existente, e o tratamento combinado com duas drogas mostrou-se mais ativo que a monoterapia, mas ainda incapaz de manter a replicação viral sob controle.

Esse quadro só mudaria a partir de meados da década de 90, quando o desenvolvimento de uma nova classe de drogas, os inibidores da protease viral, e seu uso combinado com dois análogos nucleosídeos, permitiu um controle efetivo da viremia, possibilitando a recuperação imunológica e mantendo o paciente livre das consequências da imunodeficiência. No Brasil, a mobilização da sociedade civil levou o governo a definir em lei federal que o tratamento antirretroviral era direito dos pacientes, e deveria ser provido pelo governo brasileiro, sem custos para os pacientes. Além disso, a partir da disponibilização de testes para diagnóstico e monitoramento da infecção pelo HIV, em toda a rede pública, estruturou-se um programa de atenção aos pacientes com AIDS que se tornou referência mundial, pelo seu alcance e efetividade no controle da epidemia.

Se os primeiros tratamentos para a infecção pelo HIV eram pouco tolerados, complexos e causavam efeitos adversos em parcela considerável dos pacientes, a evolução do tratamento nos anos seguintes nos levaram à descoberta de novas classes de medicamentos, com maior efetividade, segurança e comodidade posológica, culminando com as combinações de tratamento em uma única pílula diária, com níveis de eficácia próximos aos 100%. Outros avanços nessa área incluem a utilização extensiva de profilaxia pré e pós exposição, que tem contribuído de modo significativo para a redução de novos casos. Drogas de ação prolongada, utilizadas por via intramuscular ou subcutânea também já se colocam como opções para prevenção e tratamento dos infectados pelo HIV-1. A identificação de novos alvos terapêuticos e de novas estratégias de tratamento prometem uma ampliação ainda maior do nosso arsenal terapêutico.

Apesar dos inegáveis avanços obtido no conhecimento da patogenia, diagnóstico e tratamento da AIDS, o desenvolvimento de vacinas eficazes e de estratégias capazes de erradicar o HIV ainda são objetivos não alcançados. A identificação de pelo menos 2 casos de cura da infecção pelo HIV (os chamados “homem de Berlin” e “homem de Londres”), demonstra que a mesma é possível. Recentemente, um estudo brasileiro trouxe nova contribuição, ao relatar um caso de controle prolongado da infecção, após suspensão do uso de antirretrovirais, abrindo a possibilidade de erradicação viral sem a estratégia utilizada nos dois primeiros casos (transplante de medula). O desenvolvimento de anticorpos monoclonais altamente neutralizantes e uso de medicamentos capazes de reverter a latência viral são outras estratégias potencialmente capazes de nos levar mais próximos da erradicação viral.

Finalmente, não podemos ignorar os avanços obtidos na redução do estigma e discriminação que caracterizavam os primórdios da epidemia. Embora muito ainda esteja por realizar nesse aspecto, as barreiras iniciais à aceitação dos pacientes com HIV-AIDS foram gradualmente sendo ultrapassadas, melhorando a qualidade de vida dessa população. Ressalte-se, nesse particular, o recente impacto causado pelo reconhecimento científico de que pacientes sem vírus detectável no sangue não eram capazes de transmitir o mesmo (“U=U; undetectable=untransmissible”). Além disso, a estratégia de tratamento universal (“test and treat”) se mostrou umeficiente mecanismo de prevenção, ao reduzir o número de pessoas infectadas sem tratamento, e consequentemente, reduzir a ocorrência de novas infecções.

Apesar de todos os avanços obtidos, ainda temos quase dois milhões de novos casos ocorrendo em todo o mundo, a cada ano, com mais de 700 mil mortes anuais causadas pela AIDS, mostrando que ainda temos um longo caminho a percorrer na erradicação definitiva desse flagelo. Nesse sentido, manutenção de estratégias combinadas de prevenção, voltadas às populações mais vulneráveis, ampliação do tratamento antirretroviral, e persistência nos esforços em busca de uma solução definitiva (vacina ou cura) ainda são essenciais para virarmos essa página da história da humanidade.