Imunidade coletiva para COVID-19 é uma miragem perigosa
Estima-se que pelo menos 60% da população mundial precise ser imunizada para que o conceito de imunidade de rebanho comece a surtir efeito
08/05/2021A Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçou no início do ano que o mundo não atingirá a chamada imunidade de rebanho (coletiva ou de grupo) contra a COVID-19 em 2021, apesar de vários países já estarem aplicando vacinas contra o coronavírus. “Não vamos atingir nenhum nível de imunidade coletiva em 2021 porque o processo de aplicação de vacinas leva tempo”, disse a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, em uma entrevista coletiva virtual em Genebra. Estima-se que pelo menos 60% da população mundial precise ser imunizada para que o conceito de imunidade de rebanho comece a surtir efeito. Mas essa cifra ainda é imprecisa e pode ser ainda maior. Alguns especialistas falam em um patamar de 80%.
O professor do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) Domingos Alves, concorda e explica que a imunidade coletiva implica em uma barreira de pessoas imunizadas que impede a cadeia de transmissão do vírus. Diferentemente do que foi falado durante toda a pandemia, em que se defendeu uma imunidade coletiva por contágio, esse conceito se aplica a campanhas de vacinação. Para ele, utilizar a ideia de imunidade coletiva como uma alternativa ao controle da pandemia é um absurdo. Complementando a justificativa, o professor cita um trecho da nota técnica da Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP, a qual reitera que por razões científicas, éticas e jurídicas, a imunidade coletiva por contágio não pode ser admitida pelo Estado e pela sociedade brasileira como estratégia de resposta a epidemias, ainda menos diante de uma pandemia e de uma doença cujos efeitos a longo prazo ainda são ignorados. Em 2020, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, também destacou que nunca, na história da saúde pública, a imunidade coletiva foi utilizada como estratégia para responder a uma epidemia, muito menos a uma pandemia. É problemático do ponto de vista científico e ético.
Para o professor Alves, a imunidade coletiva é possível e deve ser alcançada por meio da vacinação efetiva da população. Segundo ele, a imunização por meio da vacina é urgente e imprescindível. “A porcentagem mínima da população que precisa ser imunizada para se atingir a imunidade varia dependendo da doença. No caso da COVID-19, se a eficácia estiver entre 90% e 95%, como os laboratórios têm falado, imunizar cerca de 70% da população pode ser suficiente. Se for menor, na casa dos 70%, será preciso vacinar entre 85% e 90% das pessoas para gerar a imunidade coletiva”, complementa. Todos os países que estão em um processo de vacinação melhor que o Brasil tem adotado medidas para quebrar a cadeia de transmissão do vírus.
Esperar imunidade de rebanho para alcançar normalidade não é opção
Até o dia 31 de março foram vacinadas pouco mais de 17 milhões de pessoas (8,16% da população) com a primeira dose e pouco mais de 5 milhões (2,38%) com a segunda, ou seja, a taxa diária de vacinação ainda é bastante baixa (8,51 por 100 pessoas). “No ritmo atual (número de pessoas vacinadas por 100 pessoas), nesse cenário mais otimista de vacinar 70% da população, não devemos atingir a imunidade de rebanho antes de 2023. E para vacinar 70% da população até o final do ano precisamos aumentar de 10 a 11 vezes a velocidade”, alerta o professor Domingos Alves ao atentar que o Brasil vive o momento mais agudo da pandemia.“Abril será pior mês da pandemia: No começo devemos ultrapassar os 100 mil casos por dia na média móvel e devemos chegar a 3500 a 4000 mortes diárias nos primeiros dias do mês”, já advertia o especialista. Para ele, frente a lentidão da vacinação e o cenário de evolução da epidemia devemos fazer como vários países com processo de vacinação mais adiantado que o nosso e adotar medidas de restrição (lockdown nacional de no mínimo 15 dias) para conter o avanço do vírus. “Esperar a imunidade de rebanho para alcançar a normalidade não é uma opção”, enfatiza o professor. Alves.
Quanto mais o vírus circula, maiores são as chances de surgirem novas mutações que possam causar reinfecções, o que prejudica a possibilidade da imunidade de rebanho. Todo modelo epidemiológico possui um fluxo composto por pelo menos três grupos: suscetível ao vírus, infectado e recuperado. Com a possibilidade de reinfecção, parte do grupo recuperado volta a ser suscetível, ou seja, volta para a estaca zero, reiniciando todo o ciclo. Até o momento as novas variantes (mutações) que surgiram no Brasil, como de Manaus, já tem prevalência bastante elevada no País. Recente estudo feito em parceria com o Instituto de Medicina Tropical da USP apontou que essa variante representa 64% dos infectados na cidade de São Paulo. E ao que tudo indica a prevalência maior dessas novas cepas no Brasil está associada à falta de controle (medidas mais efetivas, como por exemplo, barreiras sanitárias) da pandemia.
“Quando falamos de imunidade de rebanho a partir do processo de vacinação, as indicações apresentadas pelos laboratórios responsáveis pelas vacinas é que elas são efetivas para essas novas variantes, ou seja, a imunidade de rebanho não deve ser afetada pelas cepas detectadas até o momento. Entretanto, considerando a velocidade de vacinação e o atual cenário da epidemia no País, devemos ter de lidar com o vírus por vários meses e talvez anos”, observa o professor. Outro aspecto que deve ser lembrado da virologia do Coronavirus, desde a sua descoberta, na década de 80, é que existem evidências consolidadas de que a memória imunológica induzida pelo vírus não é de longa duração (tanto no caso dos que desenvolveram a doença, como dos assintomáticos). Nesse sentido, mesmo com uma cobertura vacinal completa da população exite a possibilidade de outros surtos nos próximos anos.
Novo pico da doença em outubro
Caso a vacinação não seja acelerada, o Brasil pode acumular 640 mil mortes até outubro, quando a doença atingiria um novo pico. É o que dizem alguns especialistas. Questionado quando a doença deve atingir um novo pico, o professor Alves é categórico ao afirmar que qualquer modelo matemático que se aventure a responder isso está fadado ao erro. “Olhando minhas estimativas anteriores é bem provável que cheguemos a 500 mil mortos até meados de maio. Assim, supondo que a predição do pico para outubro esteja correta e acrescentando as minhas considerações sobre a velocidade da vacinação e a falta de medidas mais efetivas para conter a disseminação do vírus, o número de mortes até outubro seria inconcebível e indecente”, lamenta o pesquisador.
Todas as projeções feitas pelo professor Alves e por vários cientistas brasileiros não levam em consideração as mortes devido à superlotação de leitos e à falta de insumos. “Já vivemos a maior calamidade em saúde da história do País e para salvar vidas (muitas vidas) temos de acelerar a vacinação e imprimir medidas mais restritivas nos municípios brasileiros urgentemente. Todo o cenário de predição apresentado aqui é conservador frente a gravidade do que ocorre neste momento no Brasil”, finaliza o professor.
Adiar a segunda dose da vacina como alguns países já estão fazendo também pode causar um atraso na imunidade coletiva a longo prazo, segundo um estudo publicado na Science, embora ajude a reduzir o número de casos em um período curto, segundo o artigo Epidemiological and evolutionary considerations of SARS-CoV-2 vaccine dosing regimes . O estudo também traz resultado importante associado a respostas imunes imperfeitas no que diz respeito ao potencial de escape imune viral. A hipótese citada prevê que, por conta de pessoas com imunidade parcial, pode ocorrer uma evolução do vírus.
Mesmo com os esforços de vacinação em pleno vigor, o limite teórico para derrotar a COVID-19 parece estar fora de alcance. Confira o artigo que traz as cinco razões pelas quais a imunidade de rebanho COVID é provavelmente impossível.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**