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COVID-19 e o paradigma da medicina baseada em fantasia

Para que um remédio seja considerado eficaz contra uma doença, ele precisa passar por pesquisas com rigor metodológico e que possam atestar reais benefícios e riscos

07/04/2021
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Até o momento, nenhum dos remédios usados indiscriminadamente contra a COVID-19 que foi submetido a esse nível de escrutínio foi aprovado por cientistas para evitar ou tratar casos leves da doença

Comunidades médicas e científicas brasileiras são enfáticas ao repudiaram o suposto tratamento precoce do governo federal contra o novo coronavírus, que envolve remédios sem eficácia comprovada. Segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF), não há comprovação científica de que os medicamentos que normalmente compõem o chamado kit COVID ofereçam qualquer benefício na prevenção ou no tratamento da doença. A Associação Médica Brasileira (AMB) inclusive recomendou o banimento dos medicamentos que compõem o kit. Em carta divulgada em 23 de março, a AMB reafirmou que cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina não têm eficácia científica comprovada no tratamento ou prevenção da COVID-19 em nenhum dos estágios da doença. Entretanto, mesmo com a ineficácia de medicamentos usados no tratamento precoce, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, disse em 25 de março, que o órgão não vai rever o aval dado aos médicos para a utilização dos fármacos. O uso desse tipo de tratamento foi desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Recentemente advogados, médicos e representantes da sociedade civil assinaram uma representação levada ao Ministério Público Federal (MPF) com questionamentos sobre a atuação do Conselho Federal de Medicina durante a pandemia no Brasil. Segundo o documento, a entidade de classe foi omissa ao não tomar providências contra a disseminação da falsa ideia de existência de tratamento precoce eficaz contra a COVID-19, representado pelo uso indiscriminado de remédios sem eficácia comprovada contra a doença. A representação pede que seja instaurado inquérito civil para apurar a responsabilidade civil, administrativa e/ou penal da Diretoria do CFM.

Configura-se a omissão do CFM em manifestar, publicamente, claro posicionamento científico com vistas a desestimular a propagação de práticas e informações enganosas (a) na prescrição médica de um suposto tratamento precoce contra a COVID-19, que não tem nenhuma comprovação científica de eficácia e para o qual não mais se justifica a recomendação de uso compassivo, uma vez que existem alternativas eficazes e (b) na divulgação de falsa segurança de saúde, que permitiria à população abandonar as práticas de comprovada eficácia, notadamente o uso de máscaras, assepsia de mãos e pontos de contato e isolamento social. Em vista da omissão de clara recomendação científica pelo órgão competente, parte considerável da sociedade se tem orientado pela falsa crença de existência de um tratamento precoce que, na realidade, não apresenta evidências científicas e seguras de ser eficaz. Mais, essa falsa crença em um tratamento ocasiona o descumprimento das medidas que comprovadamente impedem o alastramento da COVID-19. E o descumprimento das medidas eficazes por uma parte da sociedade expõe à contaminação a população inteira do país”, ressalta o documento.

Falsa segurança que pode levar à morte

A venda de remédios sem eficácia comprovada contra a COVID-19 disparou. Apenas no caso da hidroxicloroquina, o total mais que dobrou, passando de 963 mil em 2019 para 2 milhões de unidades em 2020, conforme levantamento obtido com exclusividade pelo G1 junto ao Conselho Federal de Farmácia. Números da entidade mostram ainda que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga.

Chefes de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) brasileiras e médicos intensivistas voltaram a se posicionar contra a utilização do kit COVID no chamado tratamento precoce. Profissionais ouvidos em reportagem da BBC Brasil afirmaram que medicamentos que não possuem eficácia comprovada não apenas são incapazes de ajudar a prevenir casos graves da doença como o uso de remédios sem necessidade piora as condições clínicas dos pacientes graves e pode dificultar a sobrevivência a casos de intubação ou formas mais graves da COVID-19.

De acordo com reportagem do Estadão, o uso de medicamentos sem eficácia, presentes no kit COVID, colocou cinco pacientes na fila de transplante de fígado em São Paulo. Há ainda investigação na morte de pelos menos três pacientes por hepatite medicamentosa. Ainda segundo a reportagem, o kit também pode ter causado hemorragias, insuficiência renal e arritmias em pacientes que fizeram uso dos medicamentos. Segundo os médicos, as mortes ocorreram devido à doença aguda do fígado, e não a quadros associados à contaminação pelo novo coronavírus. Em alguns casos, as enzimas do fígado apresentaram alterações de 30 a 40 vezes maiores que o ideal, indicando diretamente um quadro de hepatite medicamentosa causada pelo uso indiscriminado de medicamentos.

Médicos de hospitais de referência ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a defesa e o uso do kit COVID contribuem de diferentes maneiras para aumentar as mortes no País. De acordo com a reportagem, o kit também mata de maneira indireta, ao retardar a procura de atendimento pela população, absorver dinheiro público que poderia comprar medicamentos para intubação, e ao dominar a mensagem de combate à pandemia, enquanto protocolos nacionais de atendimento sequer foram adotados. Entre os efeitos da procura tardia por atendimento está a intubação. A maior preocupação dos médicos intensivistas é o efeito colateral desses medicamentos em pacientes que evoluem para a forma grave da doença e que já estão com o funcionamento de órgãos vitais comprometidos.

Enquanto o Paraná segue com explosão no número de casos e recorde de mortes, um grupo de médicos e empresários curitibanos passaram a defender publicamente o tratamento precoce como forma de desafogar os hospitais e reduzir o nível de óbitos. Uma das ações que mais chamou a atenção foi a instalação de dez outdoors pela cidade, custeados pelo grupo “Médicos pela Vida”, que reúne profissionais de diferentes especialidades da área médica e também pessoas de outras áreas. A publicidade, que trazia a imagem de um profissional da linha de frente de enfrentamento à pandemia em destaque em um dos cantos da peça, destacava a frase: não dê chance à COVID-19. O tratamento precoce salva vidas. A peça foi retirada por ordem da Prefeitura de Curitiba, em decisão que atendeu ofício da Promotoria de Justiça de Proteção à Saúde Pública de Curitiba, do Ministério Público (MP-PR).

Um estudo preliminar SARS-CoV-2 Seroprevalence and Associated Factors in Manaus, Brazil: Baseline Results from the DETECTCoV-19 Cohort Study  desenvolvido pela Fiocruz Amazônia (Fiocruz/AM) e pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) concluiu que pessoas que fizeram tratamento preventivo para a COVID-19, com uso de medicamentos sem comprovação científica, tiveram uma maior taxa de infecção frente aos que não os utilizaram, em Manaus. Diante dos dados, os pesquisadores associam essa realidade ao fato de as pessoas que recorrem a estes medicamentos, a exemplo da ivermectina, acabarem se descuidando quanto aos modos mais seguros de evitar a doença, entre eles, o isolamento físico e o uso de máscara. Dos participantes da pesquisa,38,64% dos que testaram positivo tinham tomado algum remédio para evitar a contaminação da doença. Enquanto entre os que não tomaram nada, a taxa de infecção ficou em 25,99%.

Já o primeiro estudo brasileiro a avaliar as reações adversas a medicamentos (RAMs) em pacientes com COVID-19 revelou que os fármacos mais envolvidos nas reações foram hidroxicloroquina, cloroquina e azitromicina. A pesquisa descreveu 631 RAMs em 402 pacientes no período de 1º março de 2020 a 15 de agosto 2020. Os principais medicamentos suspeitos de causar as reações foram hidroxicloroquina (59,5%), azitromicina (9,8%) e cloroquina (5,2%). O trabalho analisou registros do Sistema de Farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no pico da pandemia. No período, foram notificadas 631 reações em mais de 400 pacientes, a maior parte delas (e as mais graves) causadas por cloroquina e azitromicina. Entre os fármacos consumidos, 748 (60%) foram considerados concomitantes, 17 (1,4%) como interação medicamentosa com outros fármacos e 482 (38,6%) suspeitos de causarem as reações. Entre os fármacos suspeitos ou com interação (n = 499), os mais frequentes (79,7%) foram a hidroxicloroquina (59,5%), azitromicina (9,8%), a cloroquina (5,2%) e a ceftriaxona com 3,2%.

Efeitos colaterais e reações adversas do kit COVID

Hidroxicloroquina: medicamento normalmente usado em pacientes com lúpus, artrite reumatoide, doenças fotossensíveis e malária. O uso pode causar dores abdominais, diarreia, náusea e vômitos, lesão hepática aguda, miopatia, vertigem, reações extrapiramidais, convulsões (principalmente em pacientes com histórico prévio), taquicardia, prolongamento do intervalo QT, entre vários outros efeitos adversos, sendo os cardiovasculares aqueles que mais suscitam preocupações.

Ivermectina: vermífugo usado para combater vermes, piolhos e carrapatos. O uso pode causar hepatite,  diarreia, dor abdominal, anorexia, constipação e vômitos, febre, taquicardia, dor de cabeça, tontura, sonolência, vertigem e tremor, inchaço nos membros (braços, mãos, pernas e pés), hipotensão, além de prurido, coceira e erupções cutâneas.

Azitromicina: antibiótico que, segundo os médicos, só deveria ser usado em caso de infecção bacteriana, não para previnir um vírus. Os efeitos colaterais mais comuns incluem náusea, vômito, diarreia, fezes moles, desconforto abdominal, prisão de ventre ou diarreia e gases. Além disso pode ocorrer tontura, sonolência e perda de apetite.

Nitazoxanida: é um antiparasitário. O uso pode causar náusea, diarreia, vômito e dor abdominal, dor de cabeça, reação alérgica, taquicardia, mudanças na coloração dos olhos, urina e esperma; e, ainda, vermelhidão, coceira e erupções na pele.

Vitamina D: pode causar secura da boca, cefaleia, perda de apetite, náuseas, fadiga, sensação de fraqueza, dor muscular, prurido e perda de peso. O consumo excessivo também pode causar constipação, fraqueza muscular, vômitos, irritabilidade e desidratação. Além disso, o excesso de vitamina D, por períodos prolongados, pode resultar em alterações endócrinas e metabólicas, como proteinúria, disfunção renal, hipertensão, arritmias, piora dos sintomas gastrointestinais, pancreatite, psicose, redução dos níveis de HDL e aumento dos de LDL.

Vitamina C: a administração de altas doses, por tempo prolongado, pode causar escorbuto de rebote, distúrbios digestivos, eritema, cefaleia, aumento da diurese e litíase em pacientes com insuficiência renal e naqueles predispostos a cálculos renais. Além disso, é importante lembrar que todos esses medicamentos apresentam contraindicações e podem alterar os efeitos de outros medicamentos já em uso pelo paciente.

Em um País em que parcela significativa da população prefere arriscar a vida acreditando estar protegida por alguns comprimidos, buscamos resposta para a pergunta: se o tratamento precoce defendido pelo governo federal é uma saída, o que explica tamanha devastação imposta pela COVID-19 a tantas cidades brasileiras?

https://core.ac.uk/download/pdf/85209351.pdf

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**