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Mundo precisa de ciência e ciência precisa de mulheres

Apesar de terem obtido enormes ganhos para aumentar sua representação na ciência nos últimos anos, as mulheres ainda estão significativamente sub-representadas no mundo

09/03/2022
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A invisibilidade das mulheres é um desafio diário, especialmente em áreas como a ciência, onde sua carreira depende de ser reconhecida por suas contribuições intelectuais ao seu campo

Quando se fala em cientista é a imagem de um homem em um laboratório que nos vem a cabeça, não é mesmo? Pensamos em Albert Einstein, Charles Darwin, Isaac Newton, Stephen Hawking e tantos outros. Mas as mulheres têm driblado o machismo e gerado grandes contribuições para o desenvolvimento das ciências. E a pandemia evidenciou muitas delas. Você sabia que alguns dos mais importantes estudos para combater o novo coronavírus vieram de mulheres? Entre eles o trabalho de duas cientistas brasileiras que teve papel essencial no sequenciamento do SARS-CoV-2, assim como as pesquisas de outras cientistas do Brasil cujos estudos com o ácido ribonucleico (RNA) levaram a uma tecnologia aplicável a vacinas para a Covid-19. Também não podemos esquecer que a descoberta do DNA, dos cromossomos Y e X e do vírus HIV também foram conquistas femininas.

A Dra. Luana Lorena Rodrigues, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) ressalta que atualmente a mulher, enquanto cientista, pode atuar em qualquer área do conhecimento e em qualquer cargo. “Pode parecer óbvio, mas temos competência para atuar nas ciências exatas e tecnologia, liderar grupos de pesquisa, chefiar renomadas instituições de ensino e pesquisa, além de receber menções e prêmios que reconheçam o mérito dos nossos feitos na ciência, pois são atividades de competência técnica que não devem, de forma alguma, estarem condicionadas ao gênero/sexo, raça ou parentalidade”, afirma. Ainda segundo ela, embora seja de responsabilidade de todos, é da mulher o protagonismo de buscar por equidade na academia enquanto cientista e pesquisadora apontando situações que ameaçam diretamente a sua produtividade, performance e consequentemente a progressão na carreira de cientista. Para ela, o papel da mulher na ciência é diverso e, portanto, não exime a necessidade de evolução do desenvolvimento de ações e políticas afirmativas que visem evitar o aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e maternidade como fatores contribuintes na sub-representação feminina na ciência.

A Dra. Rodrigues conta que ao longo de sua carreira enfrentou muitos desafios, a começar pela trajetória acadêmica, já que nasceu e estudou até o ensino médio no interior do estado do Pará. A longa jornada de estudo desde a graduação até o doutorado lhe trouxe a experiência de morar sozinha em capitais e no exterior, sem suporte familiar próximo, o que a tirou da zona de conforto e oportunizou muito aprendizado e amadurecimento, já que saiu muito jovem de casa. Hoje o desafio que enfrenta é o de fazer pesquisa de excelência e ter produtividade de alto impacto para progredir na carreira de cientista. “Atualmente, sou professora de uma universidade jovem e localizada na periferia no estado do Pará, que tem uma estrutura para pesquisa que vem se fortalecendo, mas ainda muito limitada para realizar pesquisa médica e biomédica nas áreas que atuo diretamente. Em contrapartida, existem graves problemas de saúde nesta região e os resultados destas pesquisas podem trazer impactos além dos científicos, sociais e ambientais a curto, médio e longo prazo”, assinala. A Dra. Rodrigues garante que é desafiador permanecer nesta dupla profissão, a primeira que é ser professora na Ufopa formando novos profissionais da saúde e por tantas vezes desvalorizada, e a segunda que é ser pesquisadora e cientista em um cenário nacional de poucos recursos e com o agravante de ausência da infraestrutura mínima para executar pesquisa nas áreas que atua e, ainda, exercendo uma profissão invisível e por vezes hostilizada na sociedade, com advento da polarização midiática acerca da ciência decorrente da pandemia da Covid-19. Contudo, apesar disso, para ela, particularmente o maior desafio que enfrenta é conciliar a carreira de cientista e a maternidade. “Sem dúvidas esse é um desafio que para mim, e certamente para muitas mães e alguns pais, é por vezes solitário, dolorido e demasiadamente sobrecarregado”, lamenta.

As acadêmicas Mariana Kurashima, Bruna Luiza de Graaf Kamchen e Estefani Namie Nishimoto, representantes da Liga de Infectologia e Medicina Tropical (LIMT) da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) também admitem que conciliar a vida profissional de mulher na ciência e a vida pessoal provavelmente é a parte mais difícil para todas nos dias de hoje. Segundo elas, a maioria das mulheres acaba optando por focar em um dos estilos de vida: ou a vida profissional ou a família. Aquelas que escolhem a família, focam em carreiras que possibilitem horários flexíveis (o que é difícil na ciência) que as permitam cuidar da casa e dos filhos. Aquelas que focam na profissão, em geral acabam tendo mais oportunidades, mas, ao mesmo tempo, enfrentam um preconceito da sociedade que as vê como mulheres incompletas, por não terem casado ou tido filhos. Para as acadêmicas, esta realidade é bem diferente da vivência que os homens têm. Poucos são os que precisam tomar a decisão de qual rumo tomar na profissão pensando se terão tempo para cuidar de seus filhos ou manter suas casas. “A conciliação da vida profissional e da vida pessoal, eventualmente, será conquistada com a equidade dos gêneros, distribuição de papéis e igualdade salarial”, apontam ao lembrarem que a conquista mais importante da mulher na ciência é a presença em locais que há 20, 50, 100 anos não eram ocupados por elas. “Se antes as mulheres eram restritas a profissões de cuidados básicos como a alfabetização e a enfermaria, hoje encontramos mulheres em postos de liderança, laboratórios, salas de universidades, envolvidas em trabalhos de criação e empreendedorismo”, acrescentam. Para a Dra. Rodrigues a mulher definitivamente não deveria ter que escolher entre a vida profissional e suas decisões pessoais como a de se tornar mãe, isso é tão retrógrado que urge mudanças e não combina com o que a academia científica prega, sendo um ambiente de evolução do conhecimento e quebra de paradigmas tidos como verdades absolutas dentro da sociedade.

Apesar das mulheres terem obtido enormes ganhos para aumentar sua representação na ciência nos últimos anos, elas ainda estão significativamente sub-representadas no mundo. Segundo o Relatório de ciências 2021 da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco na sigla em inglês), elas respondam por 33% do total de pesquisadores e são apenas 12% nas instituições nacionais de ciências. Outro relatório da Unesco Women in higher education: has the female advantage put an end to gender inequalities? mostra que as mulheres representavam um percentual ligeiramente superior (53%) dos graduados e mestres em 2014, mas no nível de doutorado a proporção de concluintes do sexo feminino cai para 44%. Em 2018, as mulheres representavam 43% dos professores no ensino superior, em comparação com 66% e 54% no ensino primário e secundário, respetivamente. Entretanto, independentemente das estatísticas animadoras sobre o acesso das mulheres ao ensino superior, há obstáculos para ocupar cargos acadêmicos-chave nas universidades, participar de pesquisas relevantes e assumir papéis de liderança.

As acadêmicas da LIMT reconhecem que as mulheres são maioria na graduação e na pós-graduação, mas à medida que as carreiras avançam no meio acadêmico, elas tendem a se tornar minorias. Para elas, o avanço acadêmico e a correlação com a diminuição das mulheres nesse meio estão atrelados, infelizmente, ainda ao papel que a mulher desenvolve dentro de suas famílias e no status social que ela está inserida historicamente. “Inúmeras mulheres veem o cenário da ciência como um ambiente desfavorável para alguém que pretende conciliar a vida profissional acadêmica e pesquisadora com a vida de mãe. Há carência em auxílios para essas mães cientistas, por isso o fomento de políticas públicas que tornem o papel masculino mais ativo na perspectiva da maternidade é importante para equilibrar esse peso”, frisam.

A Dra. Rodrigues concorda. “Além disso, nosso trabalho implica em excessiva carga de trabalho física e mental, algumas vezes sobre-humana, relacionada a conhecida divisão desigual do trabalho doméstico entre homens e mulheres e que se agravou durante a pandemia impactando diretamente a produtividade acadêmica das mulheres”, pontua. Ainda segundo ela, essas diferenças relacionadas ao gênero/sexo, raça e ou parentalidade que afetam a performance e a produção da mulher vêm sendo cada vez mais objeto de estudo e as evidências científicas vêm fundamentando isso. “Vejamos por exemplo nas bibliotecas virtuais os estudos publicados com descritores ‘science workforce, diversity ou science gender’ ou ainda os trabalhos e iniciativa do grupo ‘Parent In Science’. Isso é muito relevante, pois sai de um contexto de invisibilidade e passa a ter dados concretos que precisam ser debatidos e considerados para o desenvolvimento de ações e políticas que visem evitar o aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e maternidade”, complementa.

Pesquisa realizada pelo British Council, divulgada em setembro de 2021, mostra que as mulheres ocupam apenas 2% dos cargos de liderança em carreiras de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM na sigla em inglês) e sofrem acentuada desigualdade étnica. Ainda segundo a pesquisa, no Brasil, as mulheres são maioria entre os alunos de graduação e doutorado. Apesar disso, a sub-representação começa no nível da docência universitária e cresce à medida que os cargos de liderança aumentam e se tornam mais políticos. O estudo aponta, ainda, que a participação de pesquisadores negros é de 26% e a de indígenas não chega a 1%. Com o recorte de gênero, entre as bolsistas, 59% são brancas, e as mulheres negras representam 26,8%.

Ciência pode envolver as mulheres de uma maneira significativa

O envolvimento da mulher no meio acadêmico, consequentemente, na ciência tem se mostrado crescente ao longo das décadas, contudo ainda há um abismo na questão de desenvolvimento e abertura para elas nesse meio, já que se percebe, ainda, grupos importantes de pesquisa formados majoritariamente por homens. “Felizmente, nossa universidade é um exemplo de inclusão da mulher na ciência, o que enche os olhos de qualquer menina que entra na graduação e se depara com mulheres à frente de grandes projetos de pesquisa, como na UFCSPA. Toda essa representatividade impulsiona nós, graduandas, a se desenvolver sem medo de opressão em um mundo que já fomos e em alguns países somos, ainda, privadas de educação. Quanto mais lugares ocuparmos na academia e na ciência, mais vontade outras mulheres terão em participar desse desenvolvimento que afeta a vida de todos os seres humanos, em maior ou menor grau, presente e futuro. Esperamos que não apenas as mulheres, mas também os homens se interessem e se integrem à nossa luta diária, em salas de aula, laboratórios, clínicas, hospitais etc”, dizem as representantes da LIMT.

A Dra. Rodrigues deseja que meninas e mulheres jovens se inspirem em personalidades femininas bem-sucedidas na carreira de cientista, desde nomes marcos na história da ciência como Marie Curie e Dorothy Hodking, até nomes mais recentes como Margareth Dalcolmo, Mariza Gonçalves Morgado, Jaqueline Goes de Jesus e figuras ainda mais próximas como as próprias pesquisadoras e orientadoras dentro das instituições de pesquisa e tecnologia, como mulheres que lutaram para seguir seus sonhos, estudar e trabalhar como pesquisadoras nas mais diversas áreas acadêmicas exercendo um papel de liderança. “Desmitificando a cultura e a crença de que a ciência é exclusiva para gênios e superdotados representados pela figura masculina, reafirmando que a ciência é uma carreira para todos e, portanto, alcançável para meninas e mulheres se for da escolha delas”, conclui. Por fim, a pesquisadora convida a comunidade acadêmica a refletir sobre como mudar a sub-representação feminina na ciência influenciada pelas desigualdades de gênero, raça e maternidade conforme apontam as evidências científicas e, a partir daí normalizar a comunidade o entendimento da necessidade de mudanças nas políticas da academia que visem esta justa equidade. “Espero que medida que avançarmos para a equidade e o reconhecimento de uma ciência diversa, o preconceito sutil preexistente exercido por homens e mulheres na academia contra as mulheres deve naturalmente ser diminuído”, encerra.

Participação feminina em publicações

Um relatório da Elsevier intitulado The researcher journey through a gender Lens que analisou a participação em pesquisas, progressão na carreira e percepções em 26 áreas temáticas de toda a União Europeia e em 15 países, incluindo o Brasil, mostrou que as mulheres, apesar de serem maioria em diversas áreas, como bioquímica, enfermagem, medicina, neurociência e imunologia, têm a menor porcentagem de publicações internacionalmente, em comparação com os homens. De acordo com o levantamento, embora a participação das mulheres na pesquisa esteja aumentando em geral, a desigualdade permanece entre os países de origem e em áreas temáticas em termos de resultados de publicações, citações, bolsas concedidas e colaborações. Em todos os países, a porcentagem de mulheres que publicam internacionalmente é menor do que a de homens. No ano passado, a Nature publicou em março, mês da mulher, um editorial denominado Women must not be obscured in science’s history, no qual a revista dizia estar consciente de como a literatura da história da ciência falhou em reconhecer as contribuições científicas das pesquisadoras, especialmente daquelas de comunidades marginalizadas, e que os trabalhos dessas pesquisadoras foram não só obscurecidos, como eliminados do registro. O editorial ainda chama atenção para aspectos sócio-culturais e socioeconômicos, nos quais as ciências se constituem.

Apesar do debate sobre o reconhecimento e a participação das mulheres na ciência e na academia ganhar cada vez mais notoriedade, a invisibilidade que faz com que as mulheres sejam apenas consideradas colaboradoras, dificilmente protagonistas das descobertas, quando, na verdade, há diversos escritos que provam a presença efetiva da mulher nas grandes descobertas e na garantia do desenvolvimento científico e tecnológico em todas as épocas da história é inegável. Superar a invisibilidade é um desafio diário, especialmente em áreas como a ciência, onde sua carreira depende de ser reconhecida por suas contribuições intelectuais ao seu campo. Desejamos que cada dia mais, a mulher ocupe seu espaço na ciência, com a devida valorização, reconhecimento e respeito. Na Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), por exemplo, 60,55% do seu quadro de associados é composto de mulheres. A Medicina Tropical só pode alcançar seus objetivos com a participação igualitária das mulheres em todas as suas dimensões.

Projeto incentiva participação feminina na ciência

O Projeto de Lei PL 840/21 torna política de Estado o incentivo à participação da mulher nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia, matemática, química, física e tecnologia da informação. A proposta inclui a previsão na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e na Lei de Inovação Tecnológica. Saiba mais sobre a tramitação de projetos de lei.