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Norovírus: epidemia de diarreia em Santa Catarina ultrapassa grande surto de 2016

Mais de 3.500 casos já foram diagnosticados

09/02/2023

A diarreia continua a ser uma das principais causas de morbilidade e mortalidade infantil. Norovírus provocam entre 70 e 200 mil óbitos de crianças com menos de 5 anos, principalmente em países pobres

A explosão no número de registros de Doença Diarreica Aguda (DDA) se tornou uma preocupação nas cidades de Santa Catarina. O cenário foi considerado uma epidemia pela Vigilância Epidemiológica desde o dia 06 de janeiro, quando os casos ultrapassaram a média dos últimos cinco anos. Além disso, outro episódio que preocupa as autoridades sanitárias catarinenses é o fato de quase metade das praias ter recebido classificação de imprópria para banho, ou seja, apresentam riscos à saúde dos banhistas, conforme o relatório do Instituto do Meio Ambiente (IMA). A última análise da balneabilidade atentava que 128 pontos do litoral do estado receberam essa classificação negativa. Apesar das placas indicativas, muitas pessoas não obedecem a sinalização. Entre as doenças que podem ser contraídas na água com alto índice de micro-organismos estão: infecções, diarreia e hepatite A. Até o dia 20 de janeiro, o Monitoramento das Doenças Diarreicas Agudas (MDDA) da prefeitura de Florianópolis registrava mais de 3 mil casos.

O Laboratório de Virologia Aplicada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria emergencial com o BiomeHub e a Vigilância Sanitária de Florianópolis (Visa), identificou o norovírus humano genogrupo (HuNoV-GI) nas amostras fecais analisadas provenientes de pacientes com gastroenterites. Além disso, amostras de águas de praias e foz de rios foram avaliadas, havendo detecção de norovírus Genótipo I. De acordo com a Dra. Gislaine Fongaro, professora do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia e coordenadora o Laboratório, a análise permitiu identificar que o vírus, excretado pela fezes, contamina águas, ou seja, a contaminação se dá por meio de fezes contendo milhões de partículas de norovírus. Contudo, o norovírus não foi identificado no mar. A professora explica que a balneabilidade no Brasil e em vários países é mensurada por padrão bacteriano como indicador. “Vírus são buscados em pesquisas ou em casos de surtos, quanto mais amostras, mais representação se tem da situação daquele ponto amostrado”, destaca.

O norovírus é facilmente transmitido por alimentos ou bebidas contaminados e em locais com aglomerações. Pode ainda se propagar pela tosse ou por meio do contato pelas mãos. Diante da epidemia, a Vigilância Epidemiológica faz uma série de recomendações para prevenção que incluem: lavar as mãos frequentemente com água e sabão ou solução antisséptica, principalmente antes das refeições; beber água filtrada; cozinhar bem os alimentos; conferir se estão bem embalados e com informações de produção e data de validade; evitar ovos crus; e não frequentar praias impróprias para banho. Para a pesquisadora, a forma mais eficiente de controlar agentes infecciosos é por meio de saneamento básico, água e esgoto tratados.

Apesar da diarreia ser uma doença habitual, os números registrados desde janeiro deste ano extrapolam os dados anteriores, da mesma época, quando, apenas a cidade de Florianópolis, hoje em situação de epidemia, vivenciava outro surto. Questionada sobre a diferença do atual surto para o que foi registrado em 2016, a Dra. Fongaro assinala que os valores alcançados neste início de ano estão próximos aos registrados naquela época no litoral catarinense, que também teve o norovírus como causador principal. “Desde  dezembro de 2022, tem sido observado aumento nos casos de Doenças Diarreicas Agudas em Florianópolis e costa do estado. Atualmente mais de 3.500 casos já foram diagnosticados”, assinala a pesquisadora ao reforçar a importância de monitorar amostras de águas, mais pontos em praias, rios e águas de beber (incluindo gelo) e alimentos, além de diagnosticar pacientes, sabendo a origem etiológica do surto. “Rastrear águas e alimentos possivelmente contaminados, buscando melhorias sanitárias e evitando novos eventos são ações importantes”, afirma.

Pesquisa mapeia causas de internações por diarreia infantil

Publicada recentemente na revista científica BMJ Global Health, a pesquisa intitulada “Aetiology and incidence of diarrhoea requiring hospitalisation in children under 5 years of age in 28 low-income and middle-income countries: findings from the Global Pediatric Diarrhea Surveillance network” apresenta dados do monitoramento realizado entre 2017 e 2019 em hospitais sentinelas de 28 países, abrangendo as regiões das Américas, África, Europa, Ásia e Oceania. De acordo com o artigo, os norovírus foram responsáveis por uma parcela expressiva das hospitalizações infantis, sendo detectado em 6,5% dos casos.

A partir dos dados coletados, foi possível estimar o número de mortes de crianças com menos de 5 anos provocadas anualmente por cada um dos microrganismos em países de baixa e média renda. Os dados revelaram 36 mil óbitos provocados pelos norovírus. O estudo apontou ainda que a maior parte das hospitalizações na América do Sul foi devida ao norovírus. Como referência, os pesquisadores analisaram também ocorrências ambulatoriais, principalmente em situações de surto e não apenas os casos graves, que demandam internação. No Brasil, foi detectado aproximadamente o dobro de infecções por norovírus em comparação com os rotavírus. De acordo com a pesquisa, melhorar a eficácia e a cobertura vacinal, assim como priorizar as intervenções contra o norovírus pode reduzir ainda mais a morbidade e mortalidade por diarreia.

Importância da vacinação e o peso financeiro do norovírus

Atualmente já existem estudos em andamento para desenvolver imunizantes contra norovírus. O virologista Dr. Tulio Machado Fumian, pesquisador do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, ressalta alguns empecilhos para o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra o norovírus. De acordo com ele, a grande diversidade genética e antigênica, a rápida evolução desse vírus, a falta de imunidade de longa duração, associado à falta de modelo animal que reproduz a doença e a falta de um sistema de cultivo in vitro, para estudar a questões relacionadas a imunidade e proteção contra infecções, impede a produção de massa viral necessária para produzir vacina e estudar o ciclo replicativo do norovírus.

“A introdução da vacina contra rotavírus, por exemplo, em mais de 100 países atualmente, diminuiu a circulação deste vírus. Ou seja, nesses países que introduziram a vacinação no programa nacional de imunizações, e que conseguem manter uma alta cobertura vacinal, o norovírus se tornou o principal agente viral causador de diarreia”, explica. Ele enfatiza ainda que no estudo citado, o norovírus foi o agente mais importante em países da América Latina, e o rotavírus da grande maioria das regiões estudada. “A vacina diminuiu a circulação do rotavírus e consequentemente abriu o nicho ecológico para a infecção e prevalência de outros agentes virais, neste caso, o norovírus”, atenta.

Em 2016, a pesquisa “Global Economic Burden of Norovirus Gastroenteritis” publicada na revista científica PLoS One, apontou que globalmente o norovírus resultou em um total de US$ 4,2 bilhões (95% UI: US$ 3,2–5,7 bilhões) em custos diretos do sistema de saúde e US$ 60,3 bilhões (95% UI: US$ 44,4–83,4 bilhões) em custos sociais por ano. Os pesquisadores da Escola Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, concluíram que problemas gastrointestinais provocaram uma alta queda na produtividade, que pode ser medida a partir dos dias que as pessoas deixaram de trabalhar devido a doenças relacionadas ao norovírus, ou porque precisaram ficar em casa cuidando de uma criança doente, por exemplo. A identificação do custo global do norovírus ajuda a melhorar alocar atenção e recursos para prevenção e controle, inclusive com campanhas informativas.

Causador de surtos de gastroenterites

Os norovírus são uma das principais causas de gastroenterite aguda epidêmica e pandêmica (AGE) em todo o mundo, sendo os alimentos e a água contaminados importantes rotas para a sua transmissão. Cerca de 14% dos surtos em países desenvolvidos acontecem por transmissão alimentar, uma proporção que pode ser maior em países de condições sociais mais vulneráveis. Apesar de não ser muito conhecido pela população em geral, todos os anos, os norovírus provocam entre 70 e 200 mil óbitos de crianças com menos de 5 anos, principalmente em países pobres.

Em 2020, um trabalho publicado no Microbiology Resource Announcements intitulado “Partial Genome Sequences of Human Norovirus Strains from Northeast Brazil” realizou o primeiro sequenciamento genético do norovírus circulante em Pernambuco. Antes desse estudo, a literatura contava com pouca informação sobre o norovírus nesta região. Em Pernambuco, por exemplo, havia apenas uma pesquisa publicada em 2004, que avaliou crianças do Recife com até 5 anos.

Em 2018, o estudo “Detection of norovirus epidemic genotypes in raw sewage using next generation sequencing” investigou a ocorrência de norovírus e os níveis de RNA de norovírus em 156 amostras coletadas entre maio de 2013 e maio de 2014, em três estágios diferentes (52 amostras cada) de uma estação de tratamento de águas residuais (ETE) no Rio de Janeiro. A pesquisa destacou a identificação de 13 genótipos de norovírus no esgoto bruto usando sequenciamento profundo; genótipos de norovírus GII maiores e menores foram detectados no esgoto bruto; genótipo do norovírus GII.17 foi constatado antes de sua detecção em casos clínicos; tratamento secundário de esgoto diminuiu os níveis de RNA de norovírus para níveis não detectados; sazonalidade outono/inverno foi observada apenas para o norovírus GI.

Sobre o norovírus

O aumento dos casos provocados por esse vírus tem chamado cada vez mais a atenção para os norovírus, que causam as gastrenterites agudas, as quais, apesar de auto-limitada na maioria dos casos, pode levar a óbitos em recém-nascidos, idosos e pacientes imunocomprometidos. Os norovírus, anteriormente chamado de Norwalk-like virus, foram os primeiros agentes virais descritos ligados à doença gastrointestinal, mas, por muito tempo, considerados causa secundária de gastroenterite, após os rotavírus. Pertencente à família Caliciviridae, são altamente contagiosos, e menos de 100 partículas virais são suficientes para infectar um indivíduo. Tendo em vista sua alta capacidade infecciosa e de resistência no ambiente, é capaz de permanecer em superfícies com as quais a pessoa infectada teve contato, facilitando a transmissão.

Os sintomas incluem evacuações líquidas intensas, sem a presença de sangue nas fezes; febre alta, que ocorre na metade dos casos, vômito; dores de cabeça e abdominais; fraqueza e cansaço; mialgias (dor muscular) e mal-estar. Os sintomas surgem normalmente 24h a 48h após a infecção e dura em torno de 1 a 3 dias. O tempo de transmissão se dá em média por até 4 semanas após o inicio dos sintomas. O desaparecimento dos sintomas não significa que o indivíduo não transmita a condição para outras pessoas, já que ela pode ocorrer em até dois dias após os sintomas cessaram. Não existe tratamento para a gastroenterite provocada pelo norovírus, sendo recomendado o repouso e a ingestão de muito líquido para evitar a desidratação. Também pode ser utilizado medicamentos para aliviar as dores, como o Paracetamol.

O diagnóstico é feito, principalmente, através de testes moleculares realizados diretamente nas fezes. O desenvolvimento de técnicas moleculares voltadas ao diagnóstico dos norovírus forneceu dados mais claros sobre o impacto epidemiológico desses vírus, reconhecidos atualmente não apenas como principal causa de surtos de gastroenterite não bacteriana, mas também como causa importante de gastroenterite esporádica em crianças e adultos.