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Gonorreia super-resistente: chegada às Américas alerta para uso inadequado de antibióticos

A cepa da bactéria Neisseria gonorrhoeae identificada nos Estados Unidos já havia sido reportada recentemente no Reino Unido e na Ásia

09/03/2023

Surgimento dessa cepa indica a evolução contínua de N. gonorrhoeae e a capacidade de desenvolver resistência ao tratamento antimicrobiano

A gonorreia continua sendo um grande problema de saúde pública e tem sido uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) temida por dois motivos: é a segunda mais comum do mundo, afetando milhões de pessoas todos os anos, e pelo aumento no número de casos de pacientes que não respondem ao tratamento tradicional. Publicado em dezembro de 2022, o

Global Antimicrobial Resistance and Use Surveillance System”, (GLASS, na sigla em inglês), da Organização Mundial da Saúde (OMS), alertou para o crescimento de bactérias resistentes aos antibióticos e fez menção à gonorreia. De acordo com o relatório, mais de 60% das cepas isoladas da Neisseria gonorrhoeae, bactéria causadora da gonorreia, mostraram resistência a um dos antibacterianos orais mais utilizados no tratamento, a ciprofloxacina, o que dificulta o combate à infecção e aumenta o risco de desfechos graves. Alertas anteriores da OMS já destacavam a doença e alertavam para que médicos tomassem cuidado na hora de tratá-la, já que o uso excessivo ou errado de antibióticos contribui para que os agentes se tornem resistentes.

Em 2021, o The Lancet Microbe publicou os resultados de um estudo observacional retrospectivo da vigilância global da resistência antimicrobiana para Neisseria gonorrhoeae. Intitulado “WHO global antimicrobial resistance surveillance for Neisseria gonorrhoeae 2017–18: a retrospective observational study“, o documento, com dados de 73 países, confirmou que as cepas resistentes estão amplamente difundidas em todo o mundo. O número total de isolados de gonorreia examinados quanto à suscetibilidade a diferentes antimicrobianos variou de 12.895 para cefixima a 25.505 para ciprofloxacina em 2017 e de 15.876 para cefixima a 27.251 para ciprofloxacina em 2018. De acordo com o estudo, houve diminuição da suscetibilidade ou resistência à ceftriaxona em 21 (31%) dos 68 países notificados e à cefixima em 24 (47%) dos 51 países. A resistência à azitromicina foi relatada por 51 (84%) dos 61 países e à ciprofloxacina por todos (100%) dos 70 países notificadores. Segundo o artigo, a vigilância na América Central, Caribe, Europa Oriental, regiões da África, Mediterrâneo Oriental e Sudeste Asiático, permaneceu escassa.

A recentemente identificação dos dois primeiros casos nos Estados Unidos de gonorreia com sensibilidade reduzida ao antibiótico atualmente recomendado como tratamento, fez com que o assunto voltasse a chamar a atenção. Segundo o Departamento de Saúde Pública local, a nova cepa já havia sido encontrada anteriormente no Reino Unido e em países da Ásia-Pacífico, mas estes são os primeiros casos descobertos na América. A infecção é transmitida durante a prática de sexo desprotegido vaginal, anal ou oral com alguém infectado. Mulheres grávidas que tenham gonorreia também podem transmitir para o bebê.

O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Dr. Alexandre Naime, explica que a gonorreia está se tornando resistente devido ao uso inadequado de antibióticos pela população e também, muitas vezes, por indicação errada dos médicos. “Isso vem desde a criação da penicilina na década de 40. Para se ter uma ideia, no começo, a Neisseria gonorrhoeae era sensível à penicilina e o tratamento era feito com ela. Mas como a penicilina de primeira e de segunda geração e, posteriormente, as cefalosporinas foram utilizadas de forma inadequada durante essas últimas cinco ou seis décadas, não só a N. gonorrhoeae, mas outras bactérias adquiriram mecanismo de resistência. Primeiro ela respondia à penicilina, depois passou a não responder, então começou a ser utilizado antibiótico de segunda linha (ciprofloxacina), em seguida se verificou que não funcionava mais. Hoje, o protocolo no Brasil é antibiótico de terceira geração, chamado ceftriaxona. Mas, em vários lugares do mundo, principalmente em Londres, a gonorreia se tornou resistente a este antibiótico e, hoje, ela responde somente a um medicamento”, complementa o professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista (unesp).

Questionado se a gonorreia pode se tornar intratável, o médico enfatiza que as pesquisas trabalham para que se chegue a antibióticos que consigam tratar as bactérias muito resistentes, mas admite que sempre existe o risco de uma deixe de ter tratamento, como já acontece em alguns casos de infecção de Staphylococcus aureus e de tuberculose. “Esperamos que isto não aconteça com a gonorreia. Por isso, a educação médica continuada em relação ao uso de antibióticos de forma adequada é fundamental, assim como evitar que a população tenha acesso direto aos antibióticos”, atenta o infectologista. Mas será que o Brasil está preparado para a gonorreia super-resistente? O Dr. Naime diz em tese sim, e inclusive temos a medicação de resgate, o Ertapeném, antibiótico da classe dos carbapenemas. Além disso, o professor lembra que a vigilância epidemiológica no País tem sido constante.

Tratamento precoce diminui possibilidades de problemas

De acordo com o Dr. Naime, é possível conter a disseminação dessa IST com novos antibióticos, testes e prevenção. “Quanto mais diagnósticos tivermos, mais pesquisa e investimentos em novos antibióticos, bem como ferramentas capazes de fazer o diagnóstico de forma mais assertiva e, principalmente, com educação médica continuada e uso adequado dos antibióticos, é possível diminuir a chance de emergência de resistência não só para a N. gonorrhoeae, mas também para outras bactérias resistentes”, acrescenta. Entretanto, o infectologista reconhece que o diagnóstico é um desafio enorme, porque os kits de confirmação (NAT) não são distribuídos de forma adequada, além disso, muitas vezes, o tratamento é realizado de forma empírica. O médico critica ainda a indicação de ceftriaxona para qualquer tipo de uretrite ou corrimento uretral, o que pode levar a emergência de resistência caso o paciente não faça uso da medicação de forma adequada.

A dificuldade de diagnóstico e a facilidade com que a bactéria é transmitida podem estar por trás da enorme quantidade de casos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, ocorrem cerca de 500 mil novos casos por ano no País. A N. gonorrhoeae pode infectar o revestimento da uretra, do colo do útero, do reto e da garganta ou das membranas que cobrem a parte frontal do olho (conjuntiva e córnea). Se não for tratada, pode resultar em diversas complicações e, em casos raros, pode levar a infertilidade ou septicemia. Atualmente não existe vacina contra esta infecção. Em 2016, a OMS estabeleceu a meta para reduzir a incidência de gonorreia em 90% até 2030, no entanto, nenhuma uma vacina foi desenvolvida. A falta de um imunizante para prevenir a infecção e a diminuição da eficácia dos tratamentos disponíveis acendem preocupações sobre a possibilidade da gonorreia se tornar cada vez mais resistente ao tratamento, ou mesmo intratável, no futuro.

Vacina contra meningite pode evitar gonorreia

De acordo com três estudos publicados em abril de 2022, a vacina contra a meningite, 4CMenB, pode ajudar na prevenção da gonorreia. No primeiro estudo, “Effectiveness of a serogroup B outer membrane vesicle meningococcal vaccine against gonorrhoea: a retrospective observational study”, os achados apontam que a vacinação completa, que considera o regime de duas doses, forneceu 40% de proteção contra a gonorreia. Enquanto uma dose do imunizante conferiu 26% de proteção. Os autores ressaltaram que as descobertas sugerem que as vacinas contra a meningite que são apenas moderadamente eficazes na proteção contra a gonorreia podem ter um grande impacto na prevenção e controle da doença.

No segundo estudo, “Effectiveness and impact of the 4CMenB vaccine against invasive serogroup B meningococcal disease and gonorrhoea in an infant, child, and adolescent programme: an observational cohort and case-control study“, os pesquisadores avaliaram a eficácia da vacina da meningite para a gonorreia no contexto do programa de imunização. Eles analisaram dados de infecção por meningite e gonorreia do Departamento de Controle de Doenças Transmissíveis e informações de vacinação contra a meningite do registro de imunização australiano. Além de ser altamente eficaz contra meningite meningocócica B e a sepse em adolescentes e adultos jovens, o regime de duas doses foi 33% eficaz contra a gonorreia.

Já o terceiro estudo, “Public health impact and cost-effectiveness of gonorrhoea vaccination: an integrated transmission-dynamic health-economic modelling analysis“, avaliou o impacto na saúde e o custo-benefício do uso de uma vacina para evitar infecções por gonorreia. De acordo com os pesquisadores, a vacinação pode reduzir os impactos futuros da resistência antimicrobiana, o que significa que ela seria ainda mais benéfica do que o estimado atualmente. Os autores recomendam a vacinação preventiva da população de homens que fazem sexo com homens contra a meningite, o que evitaria cerca de 110 mil casos e economizaria até £ 8 milhões (cerca de R$ 48 milhões) em 10 anos.

Em 2017, um estudo realizado na Nova Zelândia, intitulado “Effectiveness of a group B outer membrane vesicle meningococcal vaccine against gonorrhoea in New Zealand: a retrospective case-control study” , trouxe, pela primeira vez, indícios de que a vacina contra meningite poderia evitar essa IST. O estudo publicado na revista científica The Lancet, demonstrou que a aplicação em massa da vacina contra meningite B reduziu em mais de 30% o risco de contrair gonorreia entre as pessoas que foram imunizadas.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**