Notícias, Obituário

Luto na Confraria – In Memoriam Erney Felício Plessman de Camargo

Carlos Medicis Morel, Henrique Krieger, Isaac Roitman, Luiz Rodolpho Raja Gabaglia Travassos, Marcello Andre Barcinski, Nísia Trindade Lima, Wanderley de Souza

09/03/2023

Carlos Medicis Morel

  • Perdemos o Erney…!
  • “Como assim, Wanderley, “perdemos o Erney”?”

Foi durante um zoom com um grupo da Abrasco, na sexta-feira 03 de março de 2023, que recebi a notícia do falecimento de nosso Confrade-Mor, Erney. Tinha sido dele, a ideia de montar uma “Confraria”.

  • “Confraria” prá quê, Erney?
  • Prá gente conversar, jogar conversa fora, estar junto com amigos. Estamos ficando velhos, será bom ter um grupo para tomarmos um uísque, falar da vida.

E assim foi feito. No começo, a Confraria se reunia presencialmente, em Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, em algum restaurante acolhedor. Marcello, como Secretário Perpétuo, ajudava Erney na organização do calendário, aproveitando as viagens de trabalho dos confrades [durante a pandemia de Covid-19, quando as reuniões passaram a ser via Zoom, Erney colocou em votação a proposta de admitirmos uma ‘confreira’; após calorosos debates, a confraria aprovou Nísia como sua primeira e única Confreira].

Assim era Erney. Cientista e humanista, era um porto acolhedor. Congregava e estimulava as pessoas que dele se aproximavam, atraídas pelo seu magnetismo pessoal, mente brilhante, percepção aguda da ciência, da alma humana e da política – política com “P” maiúsculo, sempre. Conheci Erney durante meus tempos de professor na UnB, início dos anos 70, quando ele veio visitar Isaac, e logo nos aproximamos graças aos encontros anuais de Caxambu sobre “Pesquisa Básica em Doença de

Chagas”. Recém doutor, eu era calouro em Doença de Chagas, minha formação tinha sido focada em pesquisa básica em biologia molecular; “bebia” então do conhecimento em parasitologia, microbiologia e bioquímica nas conversas com Zigman Brener, Erney e Isaac. Foram esses três que me atraíram para a parasitologia molecular, área em que me dediquei nos primeiros vinte anos de minha carreira.

Nossa amizade fluiu prazerosa durante toda nossa vida: (i) Nos anos 80, Erney como parceiro científico, publicando artigos em coautoria, no início da minha carreira na Fiocruz[1]; (ii) No alvorecer do milênio, enquanto eu dirigia o TDR (programa de pesquisa e treinamento em doenças tropicais na Organização Mundial da Saúde em Genebra), Erney, então reconhecido como especialista de renome mundial, atuando a meu convite em comitês científicos do TDR ou me levando a conhecer seus grupos de pesquisa em malária atuantes na Amazônia; (iii) Mais tarde, Erney como amigo mais maduro e vivido, me apoiando quando as encruzilhadas desta vida exigiam decisões irreversíveis; (iv) Finalmente, como ‘mentor’ da Confraria, jogando conversa fora e usufruindo, com os demais confrades e confreira, da sua mente brilhante e perspicaz.

Descanse em paz, amigo, sua passagem por este mundo deixou marcas boas e indeléveis nas vidas de todos e todas que tiveram o privilégio de te conhecer e desfrutar da sua amizade.

Henrique Krieger

Morre Erney Camargo. A Confraria perde o Grão Mestre e o Grande Sacerdote. O mundo perde um grande brasileiro, o Brasil um grande cientista e eu um bom e velho amigo.

Isaac Roitman

Conheci Erney em junho de 1973 em um Workshop realizado na sede do CNPq ainda no Rio de Janeiro: “Nutrição, crescimento e variações de cepas do Trypanosoma cruzi” coordenado por José Ferreira Fernandes (USP). Essa iniciativa foi consequência de uma iniciativa que foi discutida em 1972 na Academia Brasileira de Ciências, o “Programa Integrado de Doenças Endêmicas” (PIDE). A coordenação científica do Programa esteve a cargo dos seguintes pesquisadores: Aluízio Prata (coordenador), Antônio de Oliveira Lima, Benjamin Gilbert, Firmino Torres de Castro, Guilherme Rodrigues da Silva, José Rodrigues Coura, Marcello de Vasconcellos Coelho, Wladimir Lobato Paraense (substituído posteriormente por Amaury Domingues Coutinho) e Zigman Brener. Como aponta Walter Colli em seu livro: “Quarenta anos de uma aventura que deu certo”: “No início da década de 70 contavam-se nos dedos da mão os grupos que procuravam desenvolver uma Parasitologia moderna com abordagens moleculares que fugissem um pouco do simples diagnóstico microscópico dos parasitas. Essa década foi rica em iniciativas de apoio à ciência. Havia uma fermentação que tinha a ver com o desenvolvimento da Bioquímica, Biologia Molecular, Imunologia e Biologia Celular como ferramentas para aprofundar o conhecimento do que, até então, era apenas descritivo”.

Erney foi um dos mais destacados protagonistas dessa aventura. Desenvolveu em 1964 o meio LIT (Liver Infusion Tryptose) para o cultivo do T. cruzi.  Publicou   grande número de artigos e revisões de protozoários tripanosomatídeos. Em parceria com Luiz Hildebrando Pereira da Silva e seu filho Luiz Marcelo Aranha Camargo atuou no controle de malária em Rondônia. Institucionalmente, destaco a implantação de um dos mais importantes grupos de Parasitologia do país, na Universidade Federal de São Paulo (antiga Escola Paulista de Medicina). Reconstruiu o Departamento de Parasitologia da Universidade de São Paulo, berço da família de cientistas de Samuel Barsnley Pessoa. Dessa família, perseguida pela ditadura militar, constavam, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Luiz Rey, Ruth e Victor Nussenzweig, Maria e Leônidas Deane e Erney Camargo. Erney, apesar aposentado, frequentava regularmente o Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas, apontando caminhos para jovens cientistas. Os vínculos emocionais e científicos que tivemos, levaram Erney em me homenagear em 2013 na descrição de uma nova espécie de tripanosomatídeo: Herpetomonas isaaci. Erney construiu ações e deixou rastros virtuosos em todas as instituições em que atuou. Entre elas, Universidade Federal de São Paulo, Universidade de São Paulo, Fundação Zerbini-Incor, Instituto Butantan, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Fundação Conrado Wessel. Tive uma convivência intensa com Erney. Daria para escrever um livro. Uma delas, que ocorreu na década de 70 do século passado, foi o prazer da estada, como Professor visitante, no Laboratório de Microbiologia e Imunologia do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília. Erney e família ficaram vários meses em Brasília. Nessa oportunidade os laços sentimentais com sua família (Marisis, sua esposa, e filhos e filha, Luiz Marcelo, Luiz Fernando, Luiz Eduardo e Ana Maria) se consolidaram. Em um evento público, Erney declarou que o estágio em meu laboratório tinha sido muito importante na sua carreira. Repliquei que aprendi muito com a sua estada em meu laboratório. Em outro evento público ele enfatizou também o seu estágio. Nessa ocasião repliquei que ele havia sido o meu melhor estagiário. Risos. Um outro episódio interessante relato a seguir. Uma ocasião na casa de Erney em São Paulo, fiz uma mágica – uma moeda que era absorvida em um dos meus braços – a uma neta do Erney. Meses depois o Luiz Hildebrando Pereira da Silva, fez uma mágica para ela e pergunto: Gostou? Ela respondeu que sim, mas que o FADO (masculino de fada) de Brasília era melhor. Risos.

Tivemos muitos momentos alegres, emoldurados por um bom uísque. Erney sempre foi um humanista, com pensamentos e atitudes para o coletivo. Foi um são-paulino fanático, mas sempre mantivemos uma convivência virtuosa apesar de eu ser torcedor do Santos Futebol Clube. Nos últimos anos através, da Confraria, idealizada por Erney, tivemos muitos encontros presenciais e virtuais. Ter convivido com Erney foi um privilégio. Estará para sempre na minha memória.

Luiz Rodolpho Raja Gabaglia Travassos

De: lrr.gabaglia.travassos@paraiso.ceu para iroitman@uol.com.br

Caros confrades e confreira:

Fui a primeira baixa na Confraria. Erney seguiu meus passos. Asseguro que Erney será recebido com honra na dimensão que agora me encontro. Recordarei, com ele, os momentos de alegria na Universidade Federal de São Paulo e as conversas que tivemos, regadas por excelentes bebidas que apreciávamos, nos bares sagrados do Hotel Gloria em Caxambu. Tentarei mais uma vez convertê-lo ao Judaísmo.

Estou propondo ao recém-chegado a implantação de uma Confraria Celestial, nessa nova dimensão, convidando a Ruth Nussenzweig como Confreira-Mor e, como Confrades, Luiz Hildebrando, Samuel Pessoa, Isaias Raw, Zigman Brener, José Coura, Luiz Rey, Sergio Arouca e outros amigos da nossa vida terrena. Até mais, Shalom.

Marcello Andre Barcinski

Erney Camargo 1935-2023

O nosso querido Erney faleceu há alguns poucos dias. Todos os que conviveram com ele, inclusive eu, ficamos com a sensação de um enorme vazio, quase impossível de ser fechado, de que a vida e o mundo ficaram menores, mais pobres e mais sem graça. Vem-me à mente um trecho que me toca muito do antropólogo Roberto da Matta: “Os cargos, os papéis sociais e, acima de tudo, a rede na qual aquele que partiu estava inserido, precisam ser reconstruídos e refeitos. Mas (…) o lugar que ocupava no coração dos seus amigos precisa de um tempo para passar da dor à saudade. É preciso tempo para passar das lágrimas da despedida do corpo ao suspiro profundo de uma saudade que admite a finitude – sobretudo a finitude daqueles que amamos.

Pois é. Tentei me lembrar do momento e da ocasião em que conheci o Erney e não consegui. Logo me toquei de que apesar de não termos sido amigos de infância eu convivia com ele como se o conhecesse a vida toda. Uma espécie de irmão mais velho. Aquele irmão que você admira e em quem confia sem restrições, que te dá sábios conselhos em assuntos da vida e da profissão, que te ampara quando você precisa e te chama a atenção quando você merece.

Erney me convidou a juntar-me a ele e outros colegas na tarefa de reconstruir o Departamento de Parasitologia do ICB/USP, originalmente criado por Samuel Pessoa e destruído pela ditadura militar. Foram anos inesquecíveis. Muito trabalho e companheirismo entre os recém-chegados, quem já ali estava e os que seguiram chegando. Muitos sucessos e frustrações, muitas alegrias e tristezas. Mas todos sempre imbuídos da certeza que estávamos colaborando para a construção, nos campi de São Paulo e de Rondônia, da “Escola Erney Camargo de Parasitologia”. Esta ficará para sempre.

Nisia Trindade Lima

  • Você precisa se cuidar porque não é nada fácil o desafio que tem pela frente. Não descuide de você.”

As palavras do querido amigo Erney ainda ecoam e permanecerão como conselho e como parte do cuidado recomendado. Assim era Erney Plessman de Camargo: uma pessoa atenta e afetuosa, uma ponte entre mundos diversos, um colecionador de boas e sinceras amizades.

Que alegria ter me encontrado com ele e participado da reunião do Conselho da Fundação Conrado Wessel, no dia 4 de fevereiro deste ano! Não poderia suspeitar que seria nosso último encontro. Antes disso foram muitas trocas de mensagens, encontros virtuais da Confraria e promessas de uma esperada reunião presencial em algum restaurante no Rio ou em São Paulo, ou mesmo na casa de um de nós. Saudades desse futuro que não chegou, mas uma saudade terna e apaziguadora de quem reconhece o gosto pela vida do amigo que partiu e sua forma plena de ser e estar neste planeta. Este momento de despedidas sempre nos traz surpresas, entre elas a de saber ter partido de Erney a sugestão para que eu ingressasse na Confraria de cientistas e amigos que tanto admiro.

Conheci Erney no início da década de 1990, mas nos aproximamos durante as comemorações do Centenário da Descoberta da Doença de Chagas em 2009, em grande parte por minhas atividades como pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e Editora Científica da Editora Fiocruz, responsável pela edição do livro Clássicos da Doença de Chagas. Lembro de boas discussões acadêmicas e reuniões, com muitos brindes e agradáveis conversas. Em 2012, quando eu assumi a Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, durante a gestão de Paulo Gadelha, tomamos a decisão de constituir o Conselho Superior da Fiocruz e convidar, entre outros grandes expoentes da ciência e da saúde, Erney Camargo. Desde então, nosso amigo passou a ser assíduo nos debates sobre os rumos da centenária instituição.

Um momento ímpar nesse percurso ocorreu durante a semana comemorativa dos 119 anos da Fiocruz, em 2019, quando iniciamos a celebração do 120º aniversário. Na sessão “A ciência do futuro e o futuro da ciência”, Erney nos presenteou com uma Conferência na qual a qualidade da análise se somou à força da testemunha que, a partir da experiência, podia afirmar o valor da ciência e da democracia.  Os anos de construção das principais agências de apoio à pesquisa, o otimismo dos anos de 1950 e 1960, logo confrontado com o arbítrio, a censura e o exílio durante a ditadura civil-militar. E, ao mesmo tempo, a convicção que superaríamos o duro período que vivemos no governo passado, com a dupla negação: da ciência e da democracia.

Como dizia Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, ficam encantadas. E é com esse encantamento que guardarei as lembranças do cientista, gestor de ciência e tecnologia, intelectual brilhante e querido amigo.

Wanderley de Souza

Tomei conhecimento do trabalho científico do Erney antes de conhecê-lo pessoalmente. Ao ingressar como estagiário de IC no laboratório de Hertha Meyer em 1970 ela me apresentou uma pasta que continha cerca de 10 artigos que eu precisava ler para iniciar a trabalhar com protozoários patogênicos. Um desses era o artigo do Erney publicado em 1964 na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo onde descrevia muito bem o cultivo axênico do T. cruzi bem como o processo de metaciclogênese in vitro. Algumas dúvidas tirei com um eminente protozoologista americano (William Trager), vindo da Universidade Rockefeller e que estava acompanhando o processo de cultivo do Plasmodium gallianceu que Hertha Meyer, junto com Lobato Paraense, tinham desenvolvido. Somente alguns anos depois fui conhecer Erney pessoalmente na célebre reunião já mencionada acima e realizada na sede do CNPq no Rio de Janeiro, onde o tema cultivo do T. cruzi foi discutido em detalhe. A partir daí o meu convívio com Erney foi crescente e intenso. Fez a ponte para que iniciasse uma rápida colaboração com seu mestre Samuel Pessoa, que estava estudando alguns protozoários encontrados no sangue de serpentes e que mantinha em seu laboratório no Instituto Butantã. Mas foi o convívio de todos os anos, e por muitos anos, nos clássicos encontros de Caxambu, nas reuniões sobre Pesquisa Básica em Doença de Chagas, que levou ao estabelecimento de uma cooperação frutífera no campo da biologia celular de tripanosomatídeos de vários gêneros, caracterizando vários que contêm um endossimbionte e descrevendo novas espécies e novos gêneros. Nesses trabalhos destaco a participação de Marta Teixeira (que integrava a equipe inicial do Erney e que é hoje professora titular do ICB-USP) e de Maria Cristina Motta e Márcia Attias, colegas do grupo que dirijo, que juntos formamos um time que vem liderando as pesquisas sobre filogenia de tripanosomatídeos. Ainda na semana passada conversei com Erney e decidimos acelerar a publicação de dois novos artigos que estão em fase final de redação. Não posso esquecer a importante participação do Erney nos projetos de colaboração com colegas de Moçambique, país que ele visitou várias vezes.

Também não posso deixar de agradecer à colaboração do Erney na montagem da equipe dirigente do Ministério de Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula, em 2003. Como Secretário-Executivo do MCT recebi do Ministro Roberto Amaral a incumbência de escolher os dirigentes do CNPq e da Finep. Para o CNPq pensei logo no Erney que prontamente aceitou e organizou uma equipe de alto nível que o acompanhou por vários anos e que criou vários programas importantes, como as taxas de bancada associadas à bolsa de produtividade acadêmica, parceria com a fundações estaduais de amparo à pesquisa dos estados em vários programas especiais e ampliou a cooperação internacional, inclusive com nosso deslocamento para Moçambique para ajudar a organização do Ministério naquele país, onde Drugovich, grande colaborador do Erney, teve atuação destacada.

Por último, mais não menos importante, não posso esquecer as reuniões frequentes, sempre bem acompanhadas de boa comida e bebida, e uma conversa agradável onde falávamos de tudo. Reuniões essas que daremos continuidade até para estarmos sempre relembrando dos seus membros que infelizmente já não estão entre nós.

 

Rio de Janeiro, março de 2023

 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**