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Malária: áreas de garimpo representam um desafio para controle da doença

Garimpo ilegal provoca surto de malária entre indígenas na Amazônia

10/04/2023

Nos casos mais graves de malária, crianças podem sofrer sequelas neurológicas, como cegueira ou distúrbio da fala, que vão afetar sua capacidade de desenvolvimento e educação

Uma audiência pública realizada em meados de março na Comissão Externa do Senado, criada para acompanhar as ações na Terra Indígena Yanomami, maior território indígena do País, retratou as profundas cicatrizes que o garimpo ilegal deixou na alma e na pele dos Yanomami. Representantes indígenas ouvidos disseram que é preciso realizar um trabalho de saúde urgente nessas comunidades para combater a malária, que está fora de controle na região. Ainda segundo o relato, os aviões dos garimpeiros continuam sobrevoando a Terra Indígena. A ministra dos Povo Indígenas, Sônia Guajajara, afirmou no início de março que está preocupada com a disseminação de doenças em Boa Vista (RO) com a saída dos garimpeiros ilegais da Terra Indígena Yanomami.

Em janeiro, o Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública no Território, tendo em vista a grave crise sanitária, com contaminação da água por mercúrio, dezenas de casos de malária e desnutrição grave, resultantes das invasões pelo garimpo ilegal. As áreas de garimpo representam um grande desafio para o controle da malária por apresentarem intenso fluxo migratório, além de um ambiente favorável para a transmissão da doença. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o médico tropicalista, especialista em malária, Dr. André Siqueira, membro da diretoria da SBMT e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), que, após acompanhar a situação dos Yanomami em Roraima, em janeiro deste ano, revelou que a condição foi a pior situação de saúde e humanitária que já presenciou.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: No Brasil, apesar das constantes atividades desenvolvidas pelos serviços de controle de endemias dos órgãos governamentais, a malária tem aumentado nas últimas décadas. A que se deve isso e o que pode ser feito?

Dr. André Siqueira: O controle da malária é muito sensível à manutenção rotineira de ações que incluam diagnóstico e tratamento oportunos (idealmente dentro de 48h do início dos sintomas), controle vetorial com o uso de mosquiteiros impregnados de longa duração e borrifação intra-domiciliar e uma vigilância ativa. O que se vê no Brasil é uma oscilação de períodos com controle melhor e pior e isso se deve a dois motivos principais. Primeiro, a escassez de recursos para as ações de saúde de forma geral, o que faz o gestor ter que priorizar ações e quando a incidência de malária cai, sua posição como prioridade cai também. Em segundo lugar, faltam políticas de manutenção e adaptação das ações que sigam com a mudança de cenários nos diferentes níveis do sistema de saúde, já que estratégias que são adequadas para cenários de alta transmissão não necessariamente são as melhores para quando a incidência de malária é baixa. Por não haver a adaptação e direcionamento das estratégias para cenários de baixa transmissão e os diversos contextos em que a malária ocorre no País (áreas urbanas, rurais, ribeirinhas, indígenas etc), as ações tanto de vigilância quanto assistência sofrem com falta de sustentabilidade e são negligenciadas, perdendo-se oportunidades para atingir e sustentar a eliminação da malária em níveis local e regional.

SBMT: A malária na região Amazônica se concentra em determinadas áreas com características específicas. Qual a atual situação da doença nessa localidade?

Dr. André Siqueira: A transmissão da malária no Brasil ocorre quase exclusivamente na região amazônica, mas não tem característica única. Há grande heterogeneidade na intensidade de transmissão, características ambientais e demográficas e da preparação dos sistemas de saúde locais e estaduais. Não é possível comparar as situações de transmissão de malária em Porto Velho, RO, por exemplo, com as de Rorainópolis em Roraima (RR). São situações distintas que ensejam estratégias adaptadas para seu enfrentamento. De uma forma geral, manter o diagnóstico e tratamento oportuno, intensificando ações de análise epidemiológica e controle vetorial apropriados são os caminhos para atingir melhor controle da malária.

SBMT: A movimentação dos garimpeiros pela floresta faz com que a malária circule com maior facilidade fazendo com que a doença atinja as populações mais vulneráveis, como os indígenas. Como se dá o controle da transmissão da doença em área de garimpo e nesse público?

Dr. André Siqueira: Primeiramente, sendo o garimpo ilegal, deve-se manter a fiscalização para coibir esta atividade de forma mais intensa, o que não vinha ocorrendo. Do ponto de vista da saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) preconiza o cuidado universal e integral e não deve haver restrição ao atendimento pelo fato de realizarem atividades ilegais. Países como Suriname treinaram pessoas ligadas ao garimpo para realizar ações de diagnóstico e tratamento de malária, além de notificar os casos e distribuir mosquiteiros com grande impacto e hoje o país está em vias de atingir a meta de eliminação da transmissão antes do previsto. No caso do Brasil, estratégias de estimular a testagem em pontos de entrada de garimpo, além de ações de educação em saúde, poderiam também ser adotadas para reduzir a transmissão.

SBMT: Nos casos mais graves, as crianças podem sofrer sequelas neurológicas a longo prazo, como cegueira ou distúrbio da fala, afetando sua capacidade de se desenvolver e beneficiar da educação. Como será a vida dessas crianças? Vão precisar de reabilitação? Terão acesso?

Dr. André Siqueira: Na maioria dos casos em que a malária é tratada de forma oportuna (dentro de 48h) ela cursa sem sequelas e problemas. No entanto, a malária grave, que pode decorrer por qualquer espécie, pode resultar em complicações e sequelas para adultos e crianças, cuja repercussão vai ser muito específica dependendo do individuo e da complicação. Os serviços de saúde deverão acolher tais complicações como a todas as demais, promovendo a reabilitação quando necessário.

SBMT: Qual a importância da participação da iniciativa privada no controle da endemia, particularmente aquelas que desenvolvem atividades na região Amazônica brasileira?

Dr. André Siqueira: A inciativa privada tem a obrigação de participar do controle da malária em áreas onde desenvolvam atividades econômicas que levem a alterações ambientais e demográficas que alterem o risco de transmissão da malária de forma a mitigar o impacto na saúde das populações afetadas. Em vários países há projetos e apoio da iniciativa privada com recursos e suporte técnico para alavancar a meta de atingir a eliminação da transmissão da malária e poderiam haver iniciativas destas no Brasil também.

SBMT: O senhor gostaria de acrescentar algo?

Dr. André Siqueira: A proposta de eliminação da malária é alcançável no Brasil, mas carece de robustez na proposta e no financiamento para que possa ser atingida. O SUS pode ser mais ativo neste processo e iniciativas para promover a integração das ações de vigilância com a atenção primaria à saúde, vigilância da efetividade dos antimaláricos e inseticidas é muito importante para que se avance no controle e eliminação da malária.

Dia Mundial da Luta contra a Malária

Neste 25 de abril, Dia Mundial da Luta contra a Malária, a SBMT deseja que a data lembre que mais deve ser feito para melhorar resposta à malária em nível local, municipal, nacional e internacional. Que os países intensifiquem os esforços para combater a doença, assim como os esforços para prevenção, diagnóstico e tratamento baseadas em dados e adaptados aos contextos locais.

 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**