Pesquisadora alerta para a prevalência do HTLV no Brasil
Cálculos indiretos de prevalência revelam uma estimativa alarmante de até dois milhões de pessoas infectadas no Brasil
03/04/2024Em um mundo onde doenças virais emergentes frequentemente capturam manchetes e preocupações globais, existe uma categoria de vírus que, apesar de seu impacto devastador, permanece em grande parte desconhecida e impacta milhões de pessoas em todo o mundo, com consequências sérias e muitas vezes negligenciadas: o Vírus Linfotrópico de Células T Humanas, mais conhecido como HTLV. Embora tenha sido descoberto há décadas, sua natureza complexa e sua relação com doenças graves, como a leucemia de células T do adulto (ATLL) e a mielopatia associada ao HTLV-1 (HAM/TSP), ainda intrigam os cientistas. A Bahia, o Maranhão, Pará e Pernambuco são os estados com as maiores prevalências do vírus, e, aparentemente, a Bahia é considerada o epicentro da infecção no Brasil. A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Bahia), Dra. Maria Fernanda Grassi, trouxe à luz a preocupante situação da prevalência do HTLV no Brasil e suas implicações para a saúde pública.
Segundo a pesquisadora, embora a prevalência global do HTLV no Brasil ainda não seja conhecida, estimativas nas diferentes regiões geográficas indicam que o Nordeste e o Norte apresentam os maiores índices, enquanto o Centro-Oeste, Sudeste e Sul têm os menores. Para ela, essa disparidade pode estar relacionada à história epidemiológica do vírus, que possivelmente foi introduzido no País durante o tráfico negreiro, resultando em prevalências mais altas em estados e regiões que têm componente africano mais significativo. “Um estudo de base populacional, realizado em Salvador, conseguiu determinar uma taxa de infecção de 2% na população local, ou seja, aproximadamente 50 mil pessoas. No entanto, a falta de outros estudos de base populacional dificulta a obtenção de dados mais precisos. Em nível nacional, estimativas baseadas em dados indiretos de prevalência, incluindo estudos em gestantes, doadores de sangue e usuários de drogas endovenosas, sugerem que entre 800 mil e 2 milhões de pessoas podem estar infectadas com o HTLV. Deste total, cerca de 1%, em torno de 130 mil pessoas, estariam no estado da Bahia”, revela a Dra. Grassi.
Assim como o HIV, o HTLV pode ser transmitido por sangue, fluídos corporais contaminados, da mãe para o filho (principalmente durante o aleitamento) e por relações sexuais desprotegidas. A transmissão sexual emerge como um modo importante de disseminação, especialmente entre mulheres, e a prevalência tende a aumentar com a idade. A pesquisadora enfatiza a importância da triagem durante a gravidez para prevenir a transmissão vertical. A Dra. Grassi também destaca a agregação familiar do vírus, que passa de uma geração para outra, e menciona a existência de famílias na Bahia com várias gerações afetadas pelo HTLV. Ela enfatiza a necessidade de interromper essa cadeia de transmissão silenciosa, já que muitas vezes a infecção é assintomática e os indivíduos desconhecem o seu status sorológico.
Notificação compulsória da infecção em gestantes e crianças
A falta de testagem generalizada contribui para a subnotificação e o subdiagnóstico da infecção, deixando muitos casos não identificados e não tratados. Pensando nisso e seguindo uma iniciativa pioneira da Bahia, o Ministério da Saúde publicou, em fevereiro, uma portaria que inclui o HTLV na lista nacional de notificação compulsória de doenças, agravos e eventos de Saúde Pública. De acordo com a portaria nº 3.148, infecções pelo HTLV em gestantes, parturientes, puérperas e crianças expostas ao risco de transmissão vertical passam a ser de notificação compulsória no Brasil. Isso significa que os profissionais de saúde, tanto de serviços públicos quanto privados, são obrigados a comunicar os casos ao Ministério da Saúde. O objetivo é eliminar a transmissão vertical do HTLV até 2030, uma meta alinhada às diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
A Dra. Grassi comemora a aprovação da triagem sorológica para gestantes pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), após anos de negligência em relação à doença, que permanece pouco conhecida tanto por parte da população quanto dos médicos. Segundo ela, essa medida representa um avanço significativo na luta contra o HTLV e pode prevenir a infecção em mais de mil bebês, além de evitar complicações graves, como a leucemia e mielopatia associada ao vírus. “Profissionais pouco familiarizados com o HTLV costumavam afirmar que ele não causa muitas doenças e era pouco patogênico. Essa percepção limitava os investimentos em testes e triagem. Contudo, há várias evidências de que o vírus está associado a uma série de doenças graves, com alta morbidade e mortalidade. Portanto, realizar a triagem, especialmente em gestantes, é um passo fundamental. A triagem em bancos de sangue já é realizada há décadas, proporcionando segurança em relação à transfusão de sangue. Agora, com a inclusão no pré-natal, teremos mais uma ferramenta para combater a disseminação do vírus”, frisa.
Triagem pode evitar infecção de mais de mil bebês por ano no Brasil
Um estudo intitulado “Economic analysis of antenatal screening for human T-cell lymphotropic virus type 1 in Brazil: an open access cost-utility model”, publicado no Lancet Global Health, utilizou um modelo matemático para estimar que a implementação de políticas públicas voltadas à prevenção da transmissão do HTLV-1 através do aleitamento materno poderia evitar a infecção de mais de mil crianças por ano no Brasil. Os pesquisadores concluíram que a testagem em massa de gestantes para o HTLV-1 poderia prevenir que entre 41 e 207 crianças por ano desenvolvessem a leucemia de células T do adulto, um tipo de câncer associado ao HTLV-1 e conhecido por sua agressividade e alta letalidade. Além disso, ponderou que de 31 a 93 casos da mielopatia associada ao HTLV-1, uma doença progressiva que afeta a medula espinhal, seriam prevenidos anualmente. O estudo sugere que tais medidas poderiam gerar benefícios econômicos substanciais para o sistema de saúde brasileiro. O estudo foi conduzido por cientistas do Imperial College London (Reino Unido), em colaboração com grupos de pesquisa no Brasil, incluindo a Fiocruz Bahia, com a participação da Dra. Grassi.
No Japão, por exemplo, um país que enfrenta alta prevalência do HTLV, especialmente na região sudoeste, a implementação de testes sorológicos obrigatórios para gestantes tem contribuído significativamente para a redução da disseminação do vírus. A triagem em gestantes e a promoção da substituição do aleitamento materno por fórmula láctea demonstram ser estratégias eficazes para interromper a transmissão vertical do vírus, oferecendo um potencial significativo para quebrar a sua cadeia de transmissão e, a longo prazo, reduzir a prevalência da infecção de forma considerável.
Impactos e complicações ao longo da vida
O HTLV é responsável por uma infecção persistente e crônica, para a qual não há cura nem possibilidade de sua eliminação do organismo. Aproximadamente 5% das pessoas infectadas pelo HLTV desenvolverão doenças associadas ao vírus. As condições mais graves incluem a leucemia/linfoma de células T do adulto, que apresenta extrema gravidade e de difícil tratamento, e a mielopatia, uma doença neurológica progressiva que afeta os membros inferiores, resultando em perda de força muscular, hiperreflexia, espasticidade muscular, dificuldade de locomoção, e pode evoluir para incontinência urinária, obstipação, incontinência fecal e distúrbios sexuais. A transmissão vertical aumenta o risco de o bebê desenvolver essas doenças, principalmente na quarta ou quinta década de vida. Tais complicações costumam surgir durante um período da vida considerado produtivo.
A mielopatia associada ao HTLV é altamente debilitante e pode aumentar significativamente a mortalidade. Além disso, o HTLV está associado a leucemia e linfoma, ambos graves e com tratamento quimioterápico desafiador. “O HTLV também pode causar uma variedade de outras alterações em vários sistemas do corpo, incluindo neurológico, oftalmológico, urinário e pulmonar. É um vírus que causa repercussões sistêmicas importantes e que necessitam de abordagem multidisciplinar, já que podem surgir complicações variadas em diferentes órgãos e sistemas, inclusive problemas cognitivos e depressão”, alerta a pesquisadora.
Diferentemente do HIV, não há tratamento específico para a infecção causada pelo HTLV, devido às suas características biológicas únicas. A Dra. Grassi explica que este vírus se integra ao genoma da célula hospedeira e se replica por meio da proliferação dessas células, mantendo-se integrado ao genoma, um processo distinto do observado no HIV, que libera partículas virais no plasma. Os antirretrovirais, eficazes contra o HIV, mostram eficácia limitada contra o HTLV. “Isso representa um grande desafio, pois os pacientes enfrentam a falta de opções terapêuticas direcionadas ao vírus. Atualmente, o tratamento é predominantemente paliativo e sintomático, focado no manejo das doenças associadas e seus sintomas”, enfatiza.
Pesquisa descreve distribuição da coinfecção HIV e HTLV na Bahia
O estudo “Distribution of Human Immunodeficiency Virus and Human T-Leukemia Virus Co-infection in Bahia, Brazil”, publicado no periódico Frontiers in Medicine, analisou a distribuição geográfica e a frequência da coinfecção por HTLV e HIV na Bahia. A pesquisa analisou todas as amostras submetidas a testes sorológicos no Laboratório Central de Saúde Pública da Bahia (Lacen-BA) entre 2004 e 2013, totalizando cerca de 130 mil amostras provenientes de 358 dos 417 municípios baianos. Coordenado pela Dra. Grassi, o estudo revelou que o HTLV foi detectado em 2,4% das amostras positivas para HIV e em 0,5% das negativas, indicando um risco quase cinco vezes maior de infecção por HTLV em indivíduos infectados pelo HIV. A coinfecção foi observada em 3,4% dos municípios do estado, com maior número casos em centros econômicos ou turísticos, destacando-se Salvador com 57% das coinfecções. A faixa etária variou entre 41 e 55 anos, sendo maior em mulheres. A predominância no sexo feminino pode ser explicada pela obrigatoriedade da triagem sorológica para HTLV em gestantes no estado desde 2011, o que contribuiu para um maior número de amostras de mulheres analisadas.
O HTLV e o HIV são retrovírus pertencentes à mesma família e, infelizmente, ambos são incuráveis. Apesar de ser menos conhecido do que o HIV, o HTLV tem uma distribuição global significativa. Estima-se que entre 5 a 10 milhões de pessoas em todo o mundo estejam infectadas pelo HTLV-1, com concentrações mais altas em áreas como o Japão, o Caribe, partes da África, América do Sul e Oriente Médio. No Brasil, calcula-se que entre 800 mil e 2 milhões de pessoas estejam infectadas. A transmissão ocorre por relações sexuais desprotegidas, compartilhamento de seringas e agulhas, e verticalmente, de mãe para filho, principalmente pela amamentação e, mais raramente, durante a gestação e no momento do parto. A infecção é considerada uma doença de impacto significativo em populações vulneráveis.
Sem tratamento ou vacina disponíveis, a melhor estratégia para combatê-lo é a prevenção de novas infecções. A Dra. Grassi destaca a urgência de medidas preventivas e estratégias de controle para combater a disseminação do HTLV no Brasil. Para ela, é fundamental realizar campanhas para aumentar a conscientização do público em geral, bem como dos profissionais de saúde, incentivando-os a solicitar testes sorológicos sempre que considerarem necessário. “Isso é especialmente importante para pacientes que apresentam manifestações neurológicas, indivíduos provenientes de áreas endêmicas para o vírus, todas as gestantes e pessoas que fazem uso de drogas endovenosas, além de pacientes com doenças como tuberculose e HIV”. Precisamos disseminar o conhecimento”, ressalta. A pesquisadora reconhece ainda a importância de colocar o HTLV na agenda das doenças infecciosas, garantindo que os profissionais de saúde estejam cientes da gravidade da infecção e como forma de aumentar a visibilidade e de promover a triagem. “A transmissão sexual deve ser alvo de campanhas para promover o uso de preservativos, isso terá reflexo no HTLV e em todas as Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)”, finaliza.
À medida que o mundo continua sua luta contra doenças infecciosas, o HTLV permanece como um lembrete contundente dos mistérios ainda não resolvidos no campo da medicina, e da necessidade contínua de colaboração e investimento em pesquisa científica. Esta doença é potencialmente devastadora. Enquanto as pessoas afetadas pelo HTLV aguardam ansiosamente por avanços que possam oferecer esperança e alívio da sombra dessa infecção persistente, medidas eficazes de prevenção e conscientização devem ser tomadas. É possível proteger as gerações futuras contra as graves consequências desse vírus e conter os seus impactos muitas vezes incapacitantes.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**