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Rio Grande do Sul: inundações exigem resposta urgente de saúde pública

Além do impacto econômico, enchentes representam graves riscos à saúde pública ao facilitarem a propagação de doenças como hepatite A, febre tifóide, leptospirose e tétano

06/06/2024

Inundações catastróficas no Rio Grande do Sul ressaltam a necessidade de melhor preparação e de medidas preventivas eficazes contra os riscos crescentes associados às alterações climáticas e aos fenômenos meteorológicos extremos

Desde o final de abril, o Rio Grande do Sul (RS) enfrenta uma crise sem precedentes devido a enchentes catastróficas que afetaram cerca de 90% dos municípios do estado. Este desastre, ligado às mudanças climáticas, resultou da combinação de uma onda de calor no Centro-Oeste e Sudeste, um corredor de umidade da Amazônia e fortes ventos, culminando em precipitações recordes e níveis de água alarmantes. Até 26 de maio de 2024, as inundações deixaram mais de 2 milhões de pessoas afetadas e 169 mortes foram confirmadas.

A devastação no Rio Grande do Sul ressalta a urgência de revisar as estratégias nacionais de gestão de desastres. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), núcleo responsável pela prevenção e gerenciamento da atuação governamental perante eventuais desastres naturais ocorridos em território brasileiro, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), indicam que mais de 8 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, e o estado possui mais de 270 mil pessoas em zonas vulneráveis. Entre 2019 e 2022, as mortes relacionadas a chuvas excessivas somaram 1.260, representando 71,8% dos óbitos por desastres na última década.

De acordo com o Dr. Paulo Ricardo Martins-Filho, do Laboratório de Patologia Investigativa da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e primeiro autor do editorial publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT) intitulado “Catastrophic Floods in Rio Grande do Sul, Brazil: The Need for Public Health Responses to Potential Infectious Disease Outbreaks”, a lacuna significativa de financiamento entre gestão de crises e prevenção perpetua um ciclo de despreparo que aumenta a vulnerabilidade da população. Para ele, é preciso investir em programas robustos de prevenção para reduzir substancialmente o impacto humano e financeiro desse tipo de evento.

“Obviamente não é uma questão simples, mas o Brasil precisa de uma legislação mais eficiente, rigorosa e perene que independa da agenda ou interesse de governos. É necessário colocar em prática e fazer valer todo o discurso sobre gestão ambiental sustentável no País. Não temos, por exemplo, planos de contingência ou mesmo um sistema de evacuação competente para situações como esta. Infelizmente, o investimento em ciência e tecnologia para o desenvolvimento de sistemas de prevenção e mitigação de riscos é limitado. Temos problemas importantes no manejo e acondicionamento de resíduos sólidos, nossos sistemas de esgoto são inadequados e mal dimensionados, nossa infraestrutura não é resiliente, e a gestão sustentável de águas pluviais ainda é um desafio. Esperamos que essa não seja mais uma catástrofe que caia no esquecimento do poder público”, enfatiza.

Além do impacto econômico, as águas das enchentes, frequentemente contaminadas, elevam o risco de doenças como hepatite A, febre tifóide, leptospirose, tétano, entre outras. “O comprometimento das infraestruturas sanitárias leva à contaminação de água e alimentos, aumentando a probabilidade de surtos”, acrescenta o epidemiologista, microbiologista e cientista de dados. De acordo com o editorial, estudos históricos indicam um aumento acentuado nos casos de leptospirose após enchentes, como observado em Santa Catarina entre 2000 e 2016. No Rio Grande do Sul, até 26 de maio de 2024, foram confirmados 124 casos de leptospirose e quatro mortes associadas à doença. O editorial também chama a atenção para o aumento de casos de hepatite A após enchentes, o que destaca a necessidade de vigilância e estratégias preventivas eficazes.

Segundo o professor, as estratégias para monitorar e controlar doenças infecciosas associadas a inundações e enchentes são componentes essenciais dos procedimentos de resposta incluídos nos planos de contingência. “Para enfrentar esses desafios de forma coordenada e eficaz, é crucial implementar um sistema de vigilância e testagem que permita a detecção precoce de casos. Além disso, medidas de saneamento, higiene e educação em saúde são fundamentais para minimizar os riscos à saúde pública. A vacinação e a proteção adequada às pessoas envolvidas nos resgates são igualmente importantes”, frisa.

O Dr. Martins-Filho alerta ainda para a necessidade de cuidados pós-enchente: “É importante ressaltar que os riscos de doenças, incluindo acidentes com animais peçonhentos, persistem não apenas durante as enchentes, mas se estendem ao período pós-desastre, quando os indivíduos retornam às suas casas. Portanto, a preparação e a resposta devem ser contínuas e adaptativas, assegurando que as comunidades possam se recuperar e se reconstruir de maneira segura. Neste sentido, o poder público tem a obrigação de desenvolver estratégias de orientação e acompanhamento das famílias afetadas, incluindo a limpeza e desinfecção de áreas residenciais, e o suporte para o manejo adequado de resíduos”, atenta.

Para o especialista em saúde pública, a resposta às enchentes no Rio Grande do Sul deve ser multifacetada, abordando tanto as necessidades imediatas de saúde pública quanto os desafios de longo prazo de recuperação e prevenção de surtos. “A colaboração entre governos, autoridades de saúde, universidades e centros de pesquisa, decisores políticos, meios de comunicação e comunidades locais é essencial para superar os efeitos desta catástrofe e proteger a população contra futuros desastres”, conclui o Dr. Martins-Filho.

Confira o editorial “Catastrophic Floods in Rio Grande do Sul, Brazil: The Need for Public Health Responses to Potential Infectious Disease Outbreaks” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0162-2024.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**