
Tuberculose extrapulmonar no Marrocos: inimigo silencioso que desafia país
Estudo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical revela lacunas no enfrentamento à doença que afeta quase metade dos casos de TB no país
10/03/2025
Fluxo de pesquisa: como os pesquisadores chegaram aos 18 estudos sobre tuberculose extrapulmonar no Marrocos
Enquanto o mundo intensifica esforços para conter a tuberculose (TB), uma forma menos visível dessa doença milenar ganha destaque no Marrocos, país localizado no Norte da África, desafiando médicos, autoridades e pesquisadores: a tuberculose extrapulmonar (TBEP). Diferente da TB pulmonar, que é detectada nos pulmões, a extrapulmonar afeta linfonodos, meninges, pele, ossos, articulações, genitálias, mamas e trato gastrointestinal, tornando o diagnóstico em um desafio clínico que pode levar complicações graves, inclusive fatais.
Um estudo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT), intitulado “Extrapulmonary Tuberculosis in Morocco: A Systematic Review of Observational Studies” , liderado por pesquisadores da Universidade Sultan Moulay Slimane e do Centro Hospitalar Regional de Béni Mellal, revelou um cenário preocupante e reforçou a necessidade de ampliar o foco para as formas extrapulmonares da doença.
O diagnóstico da TBEP é particularmente desafiador porque as amostras patológicas não respiratórias geralmente contêm baixa quantidade de Mycobacterium tuberculosis (Mtb). Além disso, obter essas amostras pode ser complicado, exigindo procedimentos invasivos como biópsias ósseas, pleurais ou análise de líquido cefalorraquidiano. De acordo com a revisão publicada na RSBMT, essa complexidade representa um obstáculo, resultando em diagnósticos tardios que elevam o risco de complicações graves, como deformidades ósseas e meningite fatal.
A análise de 18 estudos observacionais, publicados entre 1991 e 2023, revelou que, segundo estimativas de 2022 da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 47% dos casos de TB no Marrocos são extrapulmonares. No entanto, os dados disponíveis são limitados. Um estudo na Província de Larache, por exemplo, indicou que 43,5% dos casos de tuberculose eram extrapulmonares, mas a ausência de pesquisas nacionais abrangentes dificulta a compreensão completa da magnitude da doença em outras regiões do país.
Desigualdades sociais como raiz do problema
Por que a TBEP persiste no Marrocos enquanto a TB pulmonar tem apresentado diminuição? A resposta está nas desigualdades sociais que moldam a vida da população. A revisão identifica fatores de risco comuns, como baixo status socioeconômico, diabetes mellitus, exposição à tuberculose pulmonar e coinfecção por HIV. “Esses fatores vão além da biologia, são um reflexo das condições de vida precárias que afetam milhões no país. O baixo status socioeconômico não é apenas um fator de risco, mas também evidencia barreiras de acesso a cuidados de saúde, moradias precárias e nutrição inadequada. É uma doença ligada à exclusão social”, destaca o artigo.
A coinfecção com HIV, embora menos prevalente no Marrocos (73 mortes associadas à TB em pacientes HIV-positivos em 2022), é um complicador. A meningite tuberculosa, por exemplo, apresentou taxas de sucesso no tratamento entre 45% e 69% – mais baixas entre as formas de TBEP analisadas. “A tuberculose extrapulmonar é um grupo altamente diverso de patologias, com formas de linfonodos e pleurais sendo as mais comuns, seguidas pelas osteoarticulares e urogenitais”, observa o artigo ao frisar a necessidade de abordagens específicas para cada tipo.
Os resultados do tratamento da TBEP no Marrocos são promissores, mas apresentam desigualdades significativas. A TB osteoarticular alcançou taxas impressionantes de 100% de recuperação em alguns estudos, enquanto a TB cutânea variou entre 73,33% e 94% de sucesso. Já a TB meníngea enfrentou dificuldades, com desfechos favoráveis entre 45% e 69%. O estudo demostra que os resultados do tratamento variam entre diferentes formas da doença.
Esses números contrastam com as taxas nacionais de sucesso terapêutico da tuberculose geral, que alcançaram 88%, segundo a OMS (2023) e 87%, de acordo com o Programa Nacional de TB do Marrocos (2022). Embora os resultados gerais sejam positivos, a variabilidade sugere que o tipo de TBEP e o acesso ao cuidado fazem toda a diferença. A disparidade reflete um sistema de saúde que, apesar de metas ambiciosas, como reduzir a mortalidade por TB em 60% até 2023, conforme o Plano Estratégico Nacional (2021-2023), ainda luta para dar à TBEP a atenção que deveria.
A revisão publicada na RSBMT aponta limitações. A maioria dos estudos analisados foram séries de casos, que ocupam um nível inferior na hierarquia da evidência científica pois têm capacidade limitada de estabelecer causalidade e são suscetíveis a viés de seleção. Esse diagnóstico é um chamado à ação. “A ausência de estudos controlados restringe a possibilidade de conclusões sólidas sobre os fatores de risco e os resultados do tratamento da TBEP no Marrocos”, alertam os autores, que defendem a realização de pesquisas nacionais abrangentes e metodologicamente robustas para preencher essa lacuna.
Embora o Marrocos tenha demonstrado compromisso na luta contra a tuberculose, a extrapulmonar continua negligenciada. “A TBEP é raramente abordada na literatura de saúde pública. Em muitas publicações, incluindo as do Marrocos, ela é frequentemente tratada como uma manifestação clínica com menos impacto em saúde pública, possivelmente porque não contribui significativamente para a transmissão da doença”, observa o artigo. Essa visão limitada precisa mudar e com urgência.
A TBEP pode não ter o mesmo impacto epidemiológico da forma pulmonar, mas suas consequências são graves para os pacientes, resultando em sequelas e aumento da morbimortalidade. A ampliação da vigilância, a capacitação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de estudos nacionais são passos essenciais para garantir que essa faceta da tuberculose receba a devida atenção.
Confira o artigo “Extrapulmonary tuberculosis in Morocco: A systematic review of observational studies” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT):https://doi.org/10.1590/0037-8682-0066-2024.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**