
Novo método usa IA e smartphones para diagnosticar doença de Chagas em tempo real
Tecnologia acessível promete agilizar identificação do Trypanosoma cruzi em regiões endêmicas
01/04/2025
Após a coleta e digitalização das amostras, as imagens são processadas por IA e implantadas em dispositivos para auxiliar no diagnóstico
A doença de Chagas, causada pelo parasita Trypanosoma cruzi, continua sendo um desafio de saúde pública, com impacto significativo na América Latina, onde é endêmica em 21 países. A identificação precoce do parasita no sangue constitui um passo fundamental para o controle da enfermidade. Essa infecção parasitária, que afeta milhões de pessoas, agora pode contar com uma nova ferramenta tecnológica para seu diagnóstico. Uma pesquisa publicada em março no repositório MedRxiv apresentou uma abordagem inovadora para detectar o T. cruzi em tempo real. O estudo “Artificial Intelligence algorithm for real-time detection and counting of Trypanosoma cruzi parasites using smartphone microscopy“ detalha um sistema que combina inteligência artificial (IA), microscópios ópticos tradicionais e smartphones. Conduzido por cientistas de diversas instituições, como a Spotlab, a Biomedical Image Technologies da Universidad Politécnica de Madrid, o CIBER de Bioingeniería, Biomateriales y Nanomedicina, o National Centre for Microbiology e o Centro de Investigación Biomédica en Red de Enfermedades Infecciosas (CIBERINFEC), todos vinculados ao Instituto de Salud Carlos III, em Madri, além da Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, Bolívia, e da Fundación Mundo Sano, na Espanha, o trabalho ainda aguarda revisão por pares, mas já aponta um avanço potencial para regiões com recursos limitados.
Estima-se que entre 6 e 7 milhões de pessoas convivam com a infecção, responsável por cerca de 12 mil mortes anuais, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A transmissão ocorre principalmente por insetos triatomíneos, popularmente chamados de barbeiros, mas também pode ocorrer por vias como transfusão sanguínea, transplante de órgãos, consumo de alimentos contaminados — como o açaí, em surtos orais na Amazônia — e de mãe para filho durante a gestação.
A doença de Chagas apresenta duas fases distintas. Na fase aguda, os parasitas circulam em grande quantidade no sangue, frequentemente sem sintomas evidentes ou com sinais leves, como febre e fadiga. Em casos raros, complicações como miocardite ou meningoencefalite podem surgir. Já na fase crônica, o T. cruzi se aloja em tecidos como o coração e o sistema digestivo, podendo causar problemas graves, como insuficiência cardíaca ou megacólon, responsáveis pela maioria das mortes associadas à doença. O diagnóstico varia conforme o estágio: na fase aguda, a microscopia e técnicas moleculares, como PCR, identificam os parasitas diretamente; na fase crônica, testes sorológicos, como ELISA e imunofluorescência indireta, detectam anticorpos. Apesar de sua sensibilidade, métodos como a PCR exigem equipamentos caros e laboratórios especializados, o que os torna inviáveis em muitas áreas endêmicas. A microscopia, por sua vez, destaca-se pela simplicidade e pela capacidade de oferecer resultados imediatos, mas depende de microscopistas experientes para garantir precisão.
Foi exatamente essa limitação que o estudo buscou superar. Os pesquisadores desenvolveram um adaptador impresso em 3D que acopla um smartphone ao ocular de um microscópio convencional. A câmera do celular, como a de um Samsung Galaxy J7 Prime, com resolução de 12 megapixels, usada nos testes, captura imagens de amostras — como esfregaços de sangue (camada delgada e gota espessa) ou líquido cefalorraquidiano — que são processadas por um aplicativo integrado a modelos de IA. Dois algoritmos de detecção de objetos foram avaliados: o SSD-MobileNetV2 e o YOLOv8-Small, ambos projetados para operar em dispositivos de baixo custo computacional, como smartphones de médio porte. Essas ferramentas identificam e contam os tripomastigotas em tempo real, eliminando a necessidade de conexão à internet ou de computadores robustos.
O treinamento dos modelos envolveu um conjunto diversificado de dados. A equipe coletou 726 imagens de 36 preparações de amostras humanas no Laboratórios de Investigación Médica (LABIMED), em Cochabamba, incluindo nove casos positivos — oito de sangue e um de líquido cefalorraquidiano, todas coradas pelo método de Giemsa. Além disso, foram utilizadas 675 imagens de esfregaços de sangue de camundongos, obtidas de um banco de dados público. No total, 1.401 imagens compuseram o estudo, com 4.082 parasitas anotados manualmente por meio de bounding boxes, que delimitam a localização exata dos tripomastigotas. Para ampliar o conjunto de treinamento e equilibrar os dados, os pesquisadores aplicaram uma técnica de aumento de dados chamada mosaic augmentation, gerando imagens combinadas que elevaram o total de amostras para mais de 7 mil durante o treinamento.
Os resultados revelaram desempenhos distintos entre os modelos e tipos de amostra. O SSD-MobileNetV2 destacou-se em amostras humanas, com precisão de 86%, sensibilidade de 87% e escore F1 de 86,5%. Já o YOLOv8-Small obteve melhores resultados em amostras de camundongos, alcançando precisão de 93,7%, sensibilidade de 91,3% e escore F1 de 92,5%. A análise por tipo de amostra mostrou variação: em esfregaços humanos de camada delgada, o SSD-MobileNetV2 registrou precisão de 91,8% e sensibilidade de 87,5%; em líquido cefalorraquidiano, os valores foram de 85,3% e 88,5%; já em esfregaços humanos de gota espessa, os índices caíram para 69,2% de precisão e 64,3% de sensibilidade. Esse desempenho inferior em esfregaços de gota espessa, segundo os autores, reflete o número limitado de imagens disponíveis para treinamento — apenas 87, com 69 parasitas anotados, o que sugere que um banco de dados maior pode elevar a eficácia.
A velocidade do sistema impressiona: cada imagem é processada em cerca de 350 milissegundos em um smartphone como o Oppo Reno 6. “Isso permite que o diagnóstico aconteça no momento da coleta, sem depender de laboratórios distantes. Esse tempo possibilita uso imediato em campo, um diferencial em locais remotos, onde o acesso a especialistas é escasso”, afirma o Dr. Miguel Luengo-Oroz, coautor correspondente do estudo. O modelo foi exportado no formato tflite, ocupando apenas 11 megabytes no caso do SSD-MobileNetV2, o que facilita sua instalação em dispositivos simples. Além disso, uma plataforma de telemedicina integrada ao sistema armazena as imagens, possibilita consultas remotas e agiliza a anotação de dados para refinamento contínuo dos algoritmos.
O estudo também comparou os modelos de IA leve com um detector mais complexo, o Faster R-CNN, que, embora tenha alcançado precisão de 93,6% em amostras humanas e 96,8% em amostras de camundongos, exige recursos computacionais incompatíveis com smartphones. Os pesquisadores sugerem que esse modelo pode ser útil em ambientes de nuvem, auxiliando na anotação inicial de imagens em processos supervisionados.
A relevância do sistema vai além da doença de Chagas. Os autores apontam que o método tem potencial para identificar outros parasitas, como o Plasmodium (causador da malária), em uma mesma análise microscópica. Na Amazônia brasileira, por exemplo, onde surtos de doença de Chagas por transmissão oral coexistem com alta prevalência de malária, a microscopia já se mostrou valiosa para diferenciar os patógenos em esfregaços de sangue. Iniciativas locais, como o treinamento de microscopistas para reconhecer ambos os parasitas, reforçam essa possibilidade.
Financiado por programas como o Horizon 2020 da União Europeia e a Fundação Bill e Melinda Gates, o projeto alinha-se aos objetivos da OMS de controle das doenças tropicais negligenciadas até 2030. Os dados e o modelo serão disponibilizados ao público, o que pode estimular avanços adicionais. Para os pesquisadores, a integração de IA a ferramentas acessíveis, como smartphones, transforma microscópios tradicionais em dispositivos inteligentes de ponto de cuidado. “Nosso objetivo é levar o diagnóstico para onde ele é mais necessário, usando equipamentos que já existem nas comunidades. O sistema inclui uma plataforma de telemedicina que armazena imagens, permite consultas remotas e facilita a anotação de dados para o desenvolvimento contínuo dos modelos de IA, além de reduzir a dependência de especialistas e acelerar o diagnóstico em áreas vulneráveis”, finaliza o Dr. Luengo-Oroz.
O tema ganha relevância no contexto do Dia Mundial da doença de Chagas, celebrado em 14 de abril. Instituída pela OMS em 2019, a data marca a descoberta do T. cruzi pelo médico brasileiro Carlos Chagas, em 1909, ao identificar o parasita no sangue de Berenice, uma criança de dois anos, em Lassance, Minas Gerais. Chagas descreveu o agente causador, seu vetor e o ciclo de transmissão, um marco na medicina tropical. O 14 de abril reforça a necessidade de ações contra uma doença que expõe cerca de 70 milhões de pessoas ao risco de infecção por triatomíneos.
Classificada como uma das 20 doenças tropicais negligenciadas pela OMS, a doença de Chagas exige estratégias que integrem controle de vetores, tratamento e diagnóstico. A microscopia tradicional, embora eficaz, consome tempo e está sujeita a variações na interpretação humana. O sistema proposto pelo estudo oferece uma alternativa automatizada que pode apoiar profissionais de saúde, especialmente em regiões de alta endemicidade.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**