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Brasil enfrenta crise de saúde pública com invasão silenciosa de escorpiões

Casos de acidentes com escorpiões crescem mais de 154% em uma década e projeções apontam para mais de 2 milhões de novos casos até 2033

26/05/2025

A: Tityus serrulatus (Arquivo Instituto Butantã); B: Tityus bahiensis (Arquivo Instituto Fiocruz); C: Tityus obscurus (Arquivo Instituto Butantã); D: Tityus stigmurus (Arquivo Instituto Fiocruz)

Por trás das portas de casas simples, em quintais cheios de entulho ou nas frestas de bairros urbanos, um perigo pequeno, mas letal, espreita: o escorpião. No Brasil, o envenenamento por esses aracnídeos, chamado escorpionismo, transformou-se em uma crise de saúde pública em escalada. O estudo “Scorpions are taking over: the silent and escalating public health crisis in Brazil, publicado em maio na revista Frontiers in Public Health e liderado pela pesquisadora Dra. Manuela Pucca, revelou que o País registrou 1.171.846 casos entre 2014 e 2023, um aumento de 154%. Com projeções que apontam mais de 2 milhões de novos casos até 2033, a pesquisa emite um alerta urgente para médicos, pesquisadores e gestores: o escorpionismo demanda ações imediatas.

No coração de cidades como São Paulo ou nas comunidades rurais da Bahia, os escorpiões do gênero Tityus (Tityus serrulatus e Tityus stigmurus) encontraram um ambiente propício para sua proliferação. A disseminação desses aracnídeos está intrinsecamente ligada a condições socioambientais. A urbanização desordenada, marcada por saneamento precário, acúmulo de resíduos e construções informais, cria habitats ideais para o aracnídeo, que, alimentando-se de baratas, adapta-se facilmente a ambientes urbanos devido à sua reprodução partenogenética. O estudo “Detection of areas vulnerable to scorpionism and its association with environmental factors in São Paulo, Brazil identificou que, na cidade de São Paulo, áreas com maior vulnerabilidade socioeconômica, como favelas e regiões com gestão inadequada de lixo, apresentam maior incidência de acidentes. As mudanças climáticas agravam esse cenário: temperaturas mais altas e períodos de chuvas intensas, especialmente entre outubro e dezembro, favorecem a proliferação e atividade dos escorpiões, com picos de incidência em novembro, que registrou 20.656 casos em 2023.

“O escorpionismo é um problema que conjuga aspectos biológicos e desigualdades sociais. Os escorpiões se adaptam às lacunas do nosso sistema. A ausência de predadores naturais nas cidades, combinada à insuficiência de políticas públicas específicas para o controle de escorpiões, contribui para o aumento dos casos. É um desafio que demanda integração entre saúde, saneamento e planejamento urbano”, ressalta a Dra. Manuela Pucca, pesquisadora da Unesp e autora principal do artigo publicado na revista Frontiers.

Os números expõem a gravidade da situação. Em 2014, o Brasil registrou 66.986 casos; em 2023, esse total atingiu 170.616. A região Sudeste liderou, com 580.013 casos (49,5%), seguida pelo Nordeste, com 439.033 (37,5%). Durante a pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2021, os registros apresentaram queda, possivelmente devido ao isolamento social, à superlotação hospitalar e ao receio da população em buscar atendimento médico. A retomada foi expressiva: 152.384 casos em 2022 e um novo pico em 2023. Projeções baseadas no modelo ARIMA, que analisa tendências temporais, estimam 274.246 casos em 2033, um aumento de 60,7%, com o Sudeste e o Nordeste permanecendo no epicentro.

A força dos escorpiões reside em sua resiliência. Tityus serrulatus, composta exclusivamente por fêmeas, reproduz-se por partenogênese, originando clones sem necessidade de machos. Capazes de sobreviver até 400 dias sem alimento, esses aracnídeos se proliferam em áreas urbanas, onde entulho e esgoto a céu aberto oferecem abrigo e alimento. A subnotificação é outro obstáculo: muitos adultos, com sintomas leves como dor localizada, tratam picadas em casa com analgésicos, não sendo registrados nas estatísticas oficiais. Conforme o estudo publicado na Frontiers, a ausência de números precisos dificulta o combate ao problema, o que se assemelha a combater um inimigo invisível.

Desafios do SUS

Estudos regionais, como o conduzido no Extremo Sul da Bahia entre 2010 e 2017, evidenciam que casos graves são mais frequentes em menores de 15 anos, com uma razão de chance de 3,26, e em áreas rurais, onde o acesso a tratamento é limitado. Populações negras e pardas, que representam 52,4% dos casos e 56,5% dos óbitos, enfrentam maior risco de evolução fatal devido a barreiras no acesso à saúde. Sintomas sistêmicos graves, como vômitos profusos, taquicardia e edema pulmonar, demandam a administração rápida do soro antiescorpiônico, que perde sua eficácia se administrado após a disseminação das neurotoxinas.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o único fornecedor do soro antiescorpiônico, produzido pelo Instituto Butantan, que entregou 44 mil doses ao Ministério da Saúde em um ano. Apesar da disponibilidade, a centralização do medicamento em unidades de referência, muitas vezes distantes de áreas rurais, compromete a agilidade do atendimento, crucial para casos graves. A subnotificação, estimada em até 30% no estudo publicado na revista Frontiers, oculta a real extensão do problema, dificultando o planejamento de políticas públicas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o escorpionismo como uma doença tropical negligenciada (DTN), um problema global que afeta regiões como o norte da África, Oriente Médio, México e América Latina. No Brasil, a falta de investimento em pesquisa para novos antivenenos, ainda baseados em técnicas centenárias, como a imunização de cavalos, constitui uma preocupação. “Outros países avançam em antivenenos de nova geração, enquanto o Brasil ainda depende de métodos tradicionais. Sem investimento, corre-se o risco de dependência de soluções externas”, alerta a Dra. Pucca.

O impacto vai além dos números. Em cidades como Recife, mães vivem com medo de deixar os filhos brincarem no quintal. Em zonas rurais do interior paulista, agricultores relatam encontros frequentes com escorpiões em botas ou lenha. Hospitais, especialmente em áreas remotas, enfrentam dificuldades na manutenção de estoques de soro antiescorpionico, enquanto a demora no atendimento agrava casos graves. A pesquisa destaca que crianças representam uma parcela significativa das vítimas mais graves, com 12% dos casos pediátricos evoluindo para complicações.

Questionada sobre as razões para essa escalada, a Dra. Pucca explica que a urbanização descontrolada, ao transformar periferias em mosaicos de construções precárias, cria o cenário perfeito para a proliferação desses aracnídeos. “Soma-se a isso a falta de saneamento — em muitas comunidades, o lixo se acumula por semanas — e a baixa conscientização da população, acrescenta. Ainda segundo a pesquisadora, comparado a países como México e Marrocos, onde o escorpionismo também é endêmico, o Brasil enfrenta um desafio extra: a prevalência de Tityus serrulatus, uma das espécies mais perigosas, aliada à desigualdade no acesso à saúde.

Medidas preventivas, como o uso de telas em ralos, inspeção de roupas e calçados, e controle de pragas urbanas, são recomendadas, mas a ausência de campanhas nacionais de conscientização limita a sua adoção efetiva. Experiências locais, como o Programa de Vigilância e Controle de Escorpiões em Americana, São Paulo, que capturou 151.867 espécimes de Tityus serrulatus entre 2005 e 2021 para produção de soro, demonstram o potencial de ações coordenadas.

A Dra. Pucca propões medidas práticas: campanhas educativas podem orientar a população a evitar esconderijos de escorpiões, como pilhas de madeira, e a usar telas em janelas. Investimentos em saneamento e coleta de lixo reduzem habitats propícios. Ampliar o acesso a soro antiescorpiônico em postos de saúde rurais e capacitar profissionais para reconhecer sintomas graves são medidas urgentes. “Não basta tratar as picadas; precisamos atacar as raízes do problema, da infraestrutura à educação”, frisa, complementando que o escorpionismo não é apenas um incidente isolado; é um reflexo de falhas estruturais que colocam milhões em risco. “Os escorpiões estão apenas ocupando o espaço que lhes é permitido. Cabe a nós reverter essa realidade”, assinala.

Projeções indicam que, sem intervenções, o Brasil pode registrar 2,09 milhões de casos de escorpionismo entre 2024 e 2033. Para reverter essa tendência, a pesquisadora defende a integração de esforços entre vigilância epidemiológica, saneamento básico e educação em saúde. “O fortalecimento do Programa Nacional de Controle de Acidentes por Animais Peçonhentos, criado em 1987, e a ampliação da rede de distribuição de soro são passos essenciais para mitigar o impacto dessa crise silenciosa”, finaliza a Dra. Pucca.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**