
Contaminação de hemoculturas: desafio silencioso com impactos milionários na saúde pública
Um problema evitável que pressiona o sistema de saúde e contribui para o avanço da resistência bacteriana
05/08/2025
Esses exames, essenciais para o diagnóstico de infecções graves na corrente sanguínea, como a bacteremia, apresentaram uma taxa de contaminação de 9,9% em um total de 8.072 amostras analisadas
No Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, em Joinville, Santa Catarina, um estudo conduzido entre julho de 2022 e junho de 2023 revelou um problema muitas vezes negligenciado, mas com grande impacto clínico e econômico: a contaminação de hemoculturas. Esses exames, essenciais para o diagnóstico de infecções graves na corrente sanguínea, como a bacteremia, apresentaram uma taxa de contaminação de 9,9% em um total de 8.072 amostras analisadas. Os dados são do artigo “Economic Impact in the Treatment of Coagulase-Negative Staphylococci Blood Cultures Contamination in a Middle- Income Country – the approach with molecular methods”, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT). Conduzido pelo Dr. Felipe Francisco Bondan Tuon e colaboradores, a pesquisa estimou que essa falha evitável nos procedimentos de coleta gera custos diretos anuais de US$ 83.910, sendo US$ 73.970 referentes a antibióticos administrados de forma desnecessária e US$ 9.940 associados à realização de exames microbiológicos adicionais. De forma ainda mais alarmante, o prolongamento das internações atribuível à contaminação pode acarretar despesas superiores US$ 3,87 milhões por ano.
A contaminação ocorre quando micro-organismos comensais da pele, como os estafilococos coagulase-negativos, ou contaminantes ambientais, são introduzidos inadvertidamente na amostra durante a coleta, podendo ser erroneamente interpretados como patógenos verdadeiros. “Nosso objetivo foi quantificar o impacto clínico e financeiro desse problema em um hospital público situado em um País de renda média, onde cada recurso precisa ser otimizado”, enfatiza o Dr. Tuon. Entre os 682 pacientes com hemoculturas contaminadas, 69,6% iniciaram tratamento antimicrobiano, predominantemente com beta-lactâmicos associados a inibidores de beta-lactamase, como piperacilina/tazobactam (29,1%) e ampicilina/sulbactam (26,5%), mesmo quando não havia necessidade. Essa conduta favorece o aumento das resistência bacteriana, expõe os paciente a efeitos adversos e agrava a sobrecarga do sistema de saúde.
O estudo demostrou que pacientes com hemoculturas contaminadas permaneceram internados, em média, 26,7 dias, em contraste com 16,5 dias para aqueles com culturas negativas. Embora comorbidades possam influenciar essa diferença, que apresentou grande desvio-padrão, a pesquisa indica que a contaminação contribui de maneira significativa para o aumento da permanência hospitalar. “Cada dia a mais de internação representa não apenas um custo adicional, mas também um impacto direto na qualidade de vida do paciente e na rotatividade dos leitos hospitalares”, atenta o Dr. Tuon. A taxa de contaminação registrada, de 9,8% , é quase três vezes superior ao limite de 3% recomendado pelo Clinical Laboratory Standards Institute (CLSI), o que evidencia a necessidade de revisão e fortalecimento dos protocolos de coleta.
Entre as soluções apontadas , destaca-se medidas simples, porém eficazes, como higienização das mãos e a adequada antissepsia da pele do paciente antes da punção venosa. “Em contextos de recursos limitados, como o Brasil, práticas básicas são fundamentais para reduzir a taxa de contaminação”, afirma o pesquisador. O estudo também simulou a adoção de testes moleculares rápidos capazes de identificar micro-organismos em até 24 horas, contrastando com os cinco a sete dias exigidos pelos métodos convencionais. A análise de custo-benefício mostrou o investimento até US$ 50 por teste seria viável, gerando uma economia anual de US$ 11.310 apenas com a redução do uso de antimicrobianos e de exames desnecessários. “O diagnóstico rápido pode transformar o manejo clínico, permitindo decisões mais rápidas e seguras”, complementa o Dr. Tuon.
Além dos aspectos financeiros, a contaminação de hemoculturas levanta questões éticas e clínicas relevantes. O uso inapropriado de antibióticos, além de potencializar a resistência bacteriana, aumenta o risco de eventos adversos, como infecções por Clostridioides difficile. No estudo, 9,1% dos pacientes com hemoculturas contaminadas continuaram ou alteraram o tratamento antimicrobiano mesmo após os resultados indicarem ausência de infecção, refletindo a necessidade de capacitação médica para interpretação adequada dos exames. A demora na liberação dos laudos, que pode ultrapassar sete dias com métodos convencionais, também contribui para o uso prolongado de antibióticos sem indicação.
Embora o uso de antimicrobianos genéricos no Brasil reduza parcialmente os custos em relação a países de alta renda, o impacto orçamentário sobre o sistema público de saúde continua expressivo. “Cada dólar economizado pode ser realocado para áreas críticas, como a aquisição de equipamentos, capacitação de pessoal ou melhorias em diagnóstico laboratorial”, assinala o Dr. Tuon. A pesquisa também aponta para o uso promissor de dispositivos de desvio inicial de amostras, capazes de remover os primeiros mililitros de sangue contaminados da flora cutânea, com potencial para uso em setores críticos como unidades de emergência, responsáveis por 39% das hemoculturas contaminadas do estudo.
Os efeito da contaminação transcendem os limites hospitalares e atingem a saúde pública de forma ampla. A resistência bacteriana, agravada pelo uso excessivo de antibióticos, compromete o tratamento de infecções graves e representa uma das principais ameaças sanitárias globais. Além disso, o prolongamento das internações reduz a capacidade de atendimento em hospitais já sobrecarregados. “Estamos diante de um problema evitável, cujas consequências se estendem em cascata. Precisamos de ações coordenadas, que vão desde a educação dos profissionais até a adoção de tecnologias acessíveis e eficazes”, reforça o Dr. Tuon. O autor reconhece as limitações do estudo, como sua natureza retrospectiva e a ausência de dados clínicos completos em alguns casos, o que pode ter influenciado os resultados. Ainda assim, os achados representam um alerta importante para gestores, profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas. “A contaminação de hemoculturas não é apenas uma falha técnica. Trata-se de uma questão de segurança do paciente e a sustentabilidade do sistema de saúde”, acrescenta o pesquisador.
O estudo também aponta para a importância de uma abordagem integrada. Além da adoção de boas práticas de coleta e adesão a protocolos de higiene, a capacitação continuada de médicos e enfermeiros é essencial para melhorar a interpretação dos resultados e evitar tratamentos equivocados. Tecnologias avançadas, como o sequenciamento de genes 16S rDNA ou a PCR multiplex, oferecem novas perspectivas para o diagnóstico rápido e preciso, embora sua implementação demande planejamento financeiro e logístico adequado, especialmente em países de média renda. Para os pacientes, os impactos se traduzem em riscos à saúde e na ampliação do tempo de sofrimento. Internações prolongadas aumentam a exposição a infecções nosocomiais e atrasam a recuperação. “Nosso estudo é um convite à reflexão sobre como mudanças simples nos processos assistenciais podem trazer benefícios enormes, tanto para os pacientes quanto para o sistema de saúde como um todo”, conclui.
A experiência do Hospital Regional Hans Dieter Schmidt oferece um exemplo concreto de como ações pontuais e de baixo custo, como a adesão a protocolos de higiene, podem fazer grande diferença na segurança dos pacientes e na sustentabilidade da saúde pública. Ao mesmo tempo, o investimento estratégicos em métodos diagnósticos rápidos pode reduzir custos, melhorar a qualidade do cuidado e aliviar a sobrecarga dos sistemas hospitalares, especialmente em países com recursos limitados.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**