
Artigo publicado na RSBMT aponta risco de transmissão silenciosa da doença de Chagas em áreas urbanas
Pesquisa revela que 65,7% dos triatomíneos coletados em Barra do Garças (MT) estavam infectados por T. cruzi e que 32,8% apresentavam DNA humano, o que sugere contato direto com moradores
10/09/2025
Estudo publicado na RSBMT demostra que triatomíneos estão se adaptando ao ambiente urbano em Mato Grosso, o que amplia o risco de transmissão de Trypanosoma cruzi
A doença de Chagas, classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma enfermidade tropical negligenciada, volta ao centro do debate científico com novos achados em Mato Grosso. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES-MT), publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT), identificou triatomíneos infectados por Trypanosoma cruzi dentro de residências urbanas de Barra do Garças, região do Médio Araguaia. O artigo, intitulado “Home invasion of triatomines (Hemiptera: Reduviidae) in the urban area of Mato Grosso, Brazil”, analisou 235 triatomíneos capturados entre 2017 e 2019. Os resultados são preocupantes: 65,7% dos insetos estavam infectados pelo agente etiológico da doença de Chagas e 32,8% apresentaram DNA humano, evidência de alimentação em pessoas.
A maioria dos exemplares foi coletada em Barra do Garças (95,7%), com predomínio da espécie Triatoma williami (89,7%). Também foram identificadas as espécies Rhodnius neglectus (8,8%), Panstrongylus geniculatus (0,88%) e Panstrongylus diasi (0,44%). “Encontramos uma elevada taxa de infecção natural por T. cruzi, principalmente em T. williami. Esse dado acende um sinal de alerta, pois demonstra risco real de transmissão em áreas onde esse fenômeno era pouco documentado”, afirmou a pesquisadora Dra. Ludier Kesser Santos-Silva, coordenadora do estudo.
Além da presença dos vetores, os pesquisadores encontraram colônias completas (com ovos, ninfas e adultos) de T. williami instaladas dentro de residências, como quartos, cozinhas e salas. “A formação de colônias domiciliares indica um processo de domiciliação da espécie e amplia o risco de contato direto com os moradores”, destacou a Dra. Mirian Francisca Martins, da Vigilância em Saúde Ambiental do SES-MT e pesquisadora do estudo.
A análise molecular revelou ainda a presença de quatro linhagens de T. cruzi (TcI, TcII, TcIII e TcIV). Entre elas, a TcII se destaca por estar associada às formas clínicas mais graves da doença, como cardiopatias e mega síndromes digestivas. “Destacar essa linhagem em insetos que se alimentaram de sangue humano eleva o risco de evolução clínica severa nos casos de transmissão”, assinalou a pesquisadora. Do ponto de vista ambiental, a maior concentração de barbeiros foi registrada em bairros localizados nas proximidades do Parque Estadual da Serra Azul. A fragmentação do habitat silvestre e a iluminação artificial parecem favorecer o deslocamento dos insetos para as éreas urbanas. A densidade dos triatomíneos diminuiu proporcionalmente à distância em relação ao parque. Os autores apontam que o crescimento desordenado das cidades tem estreitado a interface entre ambientes naturais residenciais, favorecendo o risco de transmissão vetorial.
A doença de Chagas, descoberta por Carlos Chagas em 1909, afeta cerca de sete milhões de pessoas no mundo, principalmente na América Latina. No Brasil, entre 1,2 e 4,6 milhões de pessoas vivem com a infecção. Embora o País tenha alcançado importantes marcos, como a eliminação do Triatoma infestans em 2006, vetor considerado o principal transmissor no ambiente domiciliar, a adaptação de outras espécies vetoras, como o T. williami identificado em Barra do Garças, representa um novo desafio para o controle da doença. Evidências semelhantes têm sido registradas em outras regiões. Estudos recentes apontam altas proporções de barbeiros em estados como Rio Grande do Norte (acima de 20%) e Piauí (Mais de 40%). A ocorrência crescente em áreas urbanas reforça a hipótese de transmissão silenciosa, subestimada pelos sistemas tradicionais de vigilância. “Nossos resultados sugerem que a transmissão pode estar ocorrendo de forma silenciosa. O registro de triatomíneos invadindo domicílios, a presença de insetos infectados e a formação de colônias dentro das casas foram detectados a partir do sistema de vigilância em saúde. Isso demosntra o papel central da vigilância entomológica. O alto número de insetos infectados que se alimentaram de sangue humano revela que o risco existe e não pode ser ignorado”, avaliou a Dra. Santos-Silva.
Além das implicações clínicas, a doença de Chagas impõe altos custos ao sistema público de saúde, principalmente no manejo de suas formas crônicas. A cardiopatia chagásica é uma das principais causas de insuficiência cardíaca em áreas endêmicas, comprometendo a qualidade de vida e a capacidade produtividade de pessoas em idade economicamente ativa. Diante desse cenário, os pesquisadores recomendam o fortalecimento da vigilância entomológica, investimento em educação em saúde e capacitação contínua de agentes de endemias e agentes comunitários de saúde. Em Barra do Garças, foi implantada uma rede com 13 Postos de Informação de Triatomíneos (PITs) nas Unidades Básicas de Saúde para apoiar o monitoramento passivo da doença. “A população precisa saber identificar o barbeiro e comunicar imediatamente as equipes de saúde. A participação comunitária é decisiva para o sucesso das ações de vigilância”, ressaltou a Dra. Santos-Silva.
O estudo reforça a importância da articulação entre serviço, ensino e pesquisa no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Para os autores, as evidências levantadas em Barra do Garças servem de alerta que, mesmo em áreas urbanas, a transmissão vetorial de T. cruzi permanece uma ameaça real. “Enfrentar a doença de Chagas hoje exige integrar ciência, vigilância e participação social, garantindo que os avanços obtidos nas últimas décadas não se percam. Nosso objetivo é utilizar os dados levantados pelos serviços de vigilância aliados a métodos mais sensíveis, como a biologia molecular, para otimizar a detecção de T. cruzi em triatomíneos. O cenário que observamos requer atenção imediata e pode estar presente em diversas regiões com características semelhantes”, concluíram os pesquisadores.
Confira o artigo “Home invasion of triatomines (Hemiptera: Reduviidae) in the urban area of Mato Grosso, Brazil” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0119-2025.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**