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Acidentes ofídicos: análise de 17 mil casos aponta relação com urbanização desordenada e desigualdade no acesso à saúde

Pesquisa analisou 12 anos de notificações e identificou possíveis mudanças no perfil epidemiológico dos acidentes com serpentes, incluindo maior ocorrência em áreas urbanas e periurbanas

10/10/2025

Estudo mostra que maioria das ocorrências envolve homens adultos, revela deslocamentos significativos entre local da picada e residência da vítima e reforça a necessidade de estratégias diferenciadas de prevenção e logística de antivenenos

Um levantamento realizado por pesquisadores do Instituto Butantan, da Universidade de São Paulo (USP), da Secretaria Estadual de Saúde (SES-SP) e do Ministério da Saúde analisou 17.740 acidentes por serpentes peçonhentas notificados em São Paulo entre 2010 e 2022. A pesquisa intitulada “Quais características e onde há maior risco de acidente ofídico no estado de São Paulo?, publicada em junho na Revista Brasileira de Epidemiologia, buscou compreender padrões espaciais e sazonais, além do perfil das vítimas, para subsidiar políticas públicas. Tradicionalmente vistos como problema rural, os acidentes ofídicos hoje emergem como questão de saúde que atravessa fronteiras urbanas, ambientais e sociais.

A análise mostrou que a maioria dos casos foi causada por serpentes do gênero Bothrops (61%), seguidas por Crotalus (12%) e Micrurus (1,2%). Homens entre 20 e 59 anos representaram o grupo mais afetado, e os membros inferiores foram as regiões do corpo mais atingidas. Embora a tradição epidemiológica associe acidentes ofídicos ao ambiente rural, 55% das ocorrências foram registradas em áreas urbanas e periurbanas. “Essa transição pode ser interpretada como reflexo de transformações ambientais. Os acidentes parecem não estar mais restritos ao ambiente rural, o que exige vigilância também em áreas urbanas e periurbanas”, observou a Dra. Fan Hui Wen, médica infectologista, diretora técnica de produção de soros do Instituto Butantan e uma das autoras. O estudo utilizou dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).

Outro achado relevante foi que parte significativa dos acidentes ocorreu fora do município de residência da vítima. No caso das jararacas, 13% das picadas foram registradas em localidades diferentes do domicílio; entre cascavéis, esse índice chegou a 15%. A distância média percorrida entre o acidente e o município de residência foi de cerca de 50 quilômetros, chegando a ultrapassar 700 quilômetros em alguns casos. Para a Dra. Wen, esse cenário reforça a necessidade de que o sistema de saúde planeje a distribuição dos estoques de antivenenos considerando fluxos de mobilidade e não apenas as notificações locais. “Identificar os municípios de risco permite otimizar recursos e salvar vidas”, destacou.

O mapeamento identificou áreas críticas específicas. Municípios da região do Vale do Ribeira e do litoral sul, como Iporanga, Sete Barras e Barra do Turvo, apresentaram alta incidência de acidentes por Bothrops. Rifaina, São Francisco e Santa Mercedes destacaram-se pelos casos de Crotalus, enquanto Juquitiba e São Lourenço da Serra concentraram parte dos acidentes por Micrurus. De acordo com a Dra. Wen, esse padrão demonstra que os riscos são heterogêneos e dependem tanto da biologia das serpentes quanto das características ecológicas e ambientais de cada região.

Os acidentes apresentaram também forte sazonalidade, com maior número de notificações nos meses quentes e chuvosos, período em que as serpentes estão mais ativas e há maior disponibilidade de presas. Enquanto jararacas e corais-verdadeiras apresentaram redução no inverno, os acidentes com cascavéis mantiveram frequência mais estável ao longo do ano. Segundo a pesquisadora, essas informações evidenciam a necessidade de ajustar os estoques de antivenenos e as ações de vigilância de acordo com o calendário climático.

A análise também revelou desigualdades no acesso ao atendimento. Embora mais da metade das notificações tenha ocorrido em áreas urbanas, os óbitos se concentraram em zonas rurais, onde o tempo até a chegada ao serviço de saúde é mais longo. “O tempo decorrido entre a picada e o atendimento é determinante para o desfecho clínico. A disponibilidade de soros em unidades estratégicas e a capacitação de profissionais de saúde continuam sendo pilares fundamentais na resposta aos acidentes”, atentou a Dra. Wen.

O estudo se insere em um esforço global. Desde 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica os acidentes ofídicos como Doença Tropical Negligenciada (DTN) e estabeleceu como meta reduzir pela metade as mortes e incapacidades até 2030. No último ano, o estado de São Paulo registrou 2.133 casos de picadas por serpentes peçonhentas, segundo o Painel Epidemiológico do Ministério da Saúde, ocupando a quarta posição no ranking nacional. No Brasil, o Instituto Butantan desempenha papel central na produção e distribuição de antivenenos em parceria com o Ministério da Saúde. Para a Dra. Wen, a pesquisa contribui ao fornecer informações técnicas valiosas para ajustes nas políticas nacionais, além de destacar a importância da vigilância local.

Apesar de reconhecer a possibilidade de subnotificação e lacunas em alguns registros, a Dra. Wen enfatiza que a série histórica de 12 anos, associada ao georreferenciamento das notificações, constitui uma base sólida para ações de saúde pública. “A principal contribuição está em evidenciar que os acidentes com serpentes, antes vistos como problema eminentemente rural, hoje também se inserem no contexto da urbanização desordenada, da fragmentação ambiental e da mobilidade populacional”, conclui.

Os resultados apresentados no artigo fazem parte da tese de doutorado da pesquisadora Gisele Dias de Freitas, orientada pelo Prof. Francisco Chiaravalloti-Neto, cuja linha de pesquisa envolve a análise espacial em epidemiologia de doenças tropicais negligenciadas.

Para apoiar o atendimento, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde do Estado de São Paulo (CIEVS) mantém um mapa online atualizado com a localização dos hospitais de referência em todo o estado, recurso que facilita a identificação das unidades mais próximas em situações de emergência.

A participação da Dra. Wen na produção científica e na formulação de políticas públicas também se reflete em sua atuação em congressos especializados. Ela está confirmada como palestrante e moderadora no MEDTROP 2025, onde vai abordar os temas “Atualização em acidentes ofídicos e escorpiônicos” e “Abordagens recentes para o tratamento complementar do ofidismo”, respectivamente.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**