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DTNs: relatório da OMS destaca conquistas, mas adverte para riscos que afetam países endêmicos, como Brasil

Queda expressiva no número de pessoas em risco convive com cortes de financiamento, estagnação em áreas essenciais e desafios para sustentar programas nacionais

15/12/2025

OMS estima que 1,495 bilhão de pessoas necessitavam de intervenções contra DTNs em 2023, número 122 milhões inferior ao registrado em 2022

A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou recentemente o “Global Report on Neglected Tropical Diseases 2025” , documento que consolida dados referentes aos anos de 2023 e 2024 e avalia o progresso em relação às metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para as Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) até 2030. Os números mostram apontam avanços significativos, mas também apontam fragilidades que podem comprometer décadas de esforços em regiões endêmicas. O relatório registra queda no número de pessoas que necessitam de intervenções de saúde pública, além de redução na carga global das DTNs, medida por anos de vida ajustados por incapacidade. Em 2023, cerca de 1,495 bilhão de pessoas exigiam alguma ação, o que representa 122 milhões a menos do que em 2022 e uma redução estimada de aproximadamente de 32% em comparação com 2010. Também houve diminuição nas mortes associadas a essas enfermidades e expansão na distribuição de medicamentos doados.

Apesar dos indicadores favoráveis, o documento alerta que o cenário global permanece vulnerável. Entre 2018 e 2023, a assistência oficial ao desenvolvimento destinada às DTNs encolheu 41%. Esse corte afetou diretamente campanhas de tratamento em massa, ações de vigilância, capacidade laboratorial, acesso a métodos diagnósticos e a continuidade de iniciativas comunitárias. Países relataram interrupções no fornecimento de medicamentos, suspensão de treinamentos e adiamento de atividades programadas. A OMS destaca que essa retração coincide com o aumento da demanda por respostas a emergências sanitárias e aos impactos de eventos climáticos extremos, ampliando disputas orçamentárias e afetando de forma desproporcional as DTNs.

Outro ponto ressaltado é a lentidão na expansão dos serviços de água, saneamento e higiene, consideradas essenciais para interromper a transmissão de várias doenças negligenciadas. Países com maior carga dessas enfermidades, persistem déficits estruturais que mantém ciclos de transmissão em áreas rurais, periferias urbanas e territórios remotos. A vigilância epidemiológica também enfrenta lacunas expressivas, sobretudo para doenças subnotificadas ou concentradas em populações vulneráveis, o que dificulta estimativas precisas da carga real e o planejamento de intervenções proporcionais ao risco.

O relatório aborda ainda os impactos sociais e econômicos das DTNs. Em várias regiões, pessoas afetadas enfrentam custos diretos relacionados a transporte, exames diagnósticos e perda de produtividade, fatores que contribuem para a vulnerabilidade econômica e reforçam ciclos de pobreza. As desigualdades históricas se manifestam de forma persistente nos territórios mais afetados, atrasando o acesso a soluções e ampliando a invisibilidade dessas doenças na agenda pública.

Mesmo diante desses entraves, o documento menciona avanços relevantes. Em 2023, mais de 867 milhões de pessoas receberam tratamento para uma ou mais doenças negligenciadas. Diversos países integraram ações voltadas às DTNs aos sistemas nacionais de saúde e fortaleceram iniciativas intersetoriais envolvendo educação, assistência social e saneamento. Quatorze países africanos elaboraram planos nacionais de sustentabilidade baseados em financiamento doméstico, medida considerada estratégica para reduzir a dependência de doadores internacionais. O relatório também destaca maior visibilidade das DTNs em fóruns globais e avanços na inovação tecnológica. Em 2024, foram pré-qualificadas seis novas formulações de medicamentos, um ingrediente farmacêutico ativo e uma nova vacina contra dengue. Além disso, houve facilitação na aquisição de mais de um milhão de testes diagnósticos destinados a cinco doenças negligenciadas.

Hanseníase, leishmanioses e doença de Chagas seguem como pontos críticos para o Brasil

O relatório menciona aspectos diretamente relevantes para ao Brasil, País que ainda convive com hanseníase, geo-helmintíases, esquistossomose, doença de Chagas, leishmanioses e diferentes arboviroses. A OMS enfatiza que a hanseníase ainda exige atenção especial em países de alta carga, com destaque para vigilância ativa, diagnóstico precoce, manejo de sequelas e redução dos atrasos no acesso ao tratamento. Desigualdades territoriais e barreiras sociais seguem dificultando a detecção oportuna da doença, especialmente em comunidades rurais, ribeirinhas e populações em situação de vulnerabilidade no Brasil.

No que se refere às leishmanioses, o documento recomenda a ampliação do acesso ao diagnóstico, o fortalecimento da vigilância de reservatórios, o aprimoramento da gestão ambiental e a garantia de estoques regulares de medicamentos. O relatório observa que mudanças ambientais, urbanização desordenada e a expansão de áreas de mata para regiões periurbanas alteram padrões de transmissão, fenômeno observado em várias cidades brasileiras afetadas tanto pela forma visceral quanto pela tegumentar da doença.

Em relação à esquistossomose, a OMS reforça a necessidade de programas sustentados de quimioterapia preventiva, vigilância ambiental contínua e expansão do saneamento básico. No contexto brasileiro, onde a transmissão permanece focalizada em determinados territórios, o documento recomenda estratégias integradas que articulem saúde, saneamento e educação comunitária.

O relatório também incorpora orientações relacionadas às arboviroses e destaca a ampliação da oferta de testes diagnósticos, bem como a pré-qualificação de uma vacina contra dengue. Embora dengue não integre a lista clássica de doenças tropicais negligenciadas, a OMS a inclui no relatório devido ao impacto crescente nas regiões tropicais e da necessidade de abordagens integradas de vigilância e controle.

Outro ponto de interesse diz respeito à doença de Chagas. A OMS recomenda a intensificação do rastreamento da transmissão congênita e ampliação do acesso ao diagnóstico em adultos, especialmente em áreas rurais e em populações historicamente negligenciadas. O relatório também reforça a importância de laboratórios estruturalmente adequados, da disponibilidade regular de medicamentos e da vigilância de vetores secundários, que ganham relevância em cenários de mudanças ambientais.

Avanços recentes no Brasil no âmbito da iniciativa de eliminação da OPAS

Nesse contexto, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) mantém a Iniciativa de Eliminação, que apoia países das Américas, incluindo o Brasil, no fortalecimento de ações voltadas às doenças negligenciadas e na implementação de estratégias integradas de controle, vigilância, diagnóstico e prevenção. O relatório destaca que, com esse apoio, o Brasil avançou em áreas específicas, como a consolidação da interrupção da transmissão da filariose linfática em áreas historicamente endêmicas, a expansão de inquéritos e estratégias que impulsionam a eliminação do tracoma como causa de cegueira e a manutenção de resultados positivos no controle da oncocercose, que permanece sob vigilância ativa e avaliações contínuas para comprovar a interrupção da transmissão. Esses avanços posicionam o país entre aqueles com melhor desempenho regional no enfrentamento das DTNs.

A sustentabilidade financeira dos programas nacionais permanece como um dos principais desafios. O relatório enfatiza os riscos associados à dependência excessiva de doações internacionais e recomenda que países endêmicos ampliem investimentos próprios, consolidem rotinas regulares de vigilância, formem equipes permanentes e integrem as ações voltadas às DTNs à atenção primária à saúde. Em países com  diversidade epidemiológica extensa, como o Brasil, essa integração é considerada decisiva para evitar retrocessos em períodos de instabilidade orçamentária. A manutenção dos avanços alcançados depende de estabilidade financeira, fortalecimento institucional, acesso contínuo a tecnologias adequadas e integração multissetorial. Na ausência desses elementos, países com elevada carga de doenças negligenciadas permanecem vulneráveis à estagnação ou ao retrocesso.

Em 2025, o Programa Global de Doenças Tropicais Negligenciadas da OMS completa 20 anos. Desde sua criação, em 2005, o esforço conjunto envolvendo autoridades nacionais de saúde, fabricantes da indústria farmacêutica, parceiros de desenvolvimento e organizações filantrópicas contribuiu para uma redução mensurável na carga global de DTNs, embora desafios estruturais relevantes ainda persistam.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**