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Importação contínua de malária mantém Pernambuco em alerta e expõe fragilidades no acesso ao diagnóstico

Estudo publicado na RSBMT analisa 22 anos de casos importados e revela padrões epidemiológicos, atrasos no diagnóstico e risco permanente de reintrodução da doença

15/12/2025

Um estudo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT) intitulado Clinical and epidemiological profiles of confirmed malaria cases in the state of Pernambuco, Brazil, from 2001 to 2022″, analisou 350 casos confirmados de malária notificados em Pernambuco ao longo de 22 anos (2001 e 2022) e revelou um cenário que exige vigilância contínua, mesmo em um estado sem transmissão autóctone da doença. A ocorrência regular de casos importados indica uma condição epidemiológica que mantém o risco de reintrodução, especialmente em regiões onde o vetor encontra condições ambientais favoráveis.

A investigação, conduzida por pesquisadores da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), reuniu dados clínicos, sociodemográficos e operacionais que permitem compreender como padrões de mobilidade, tempo até o diagnóstico e características das infecções moldam a dinâmica da doença no estado. Os resultados apontam predominância de adultos jovens, majoritariamente homens, residentes em áreas urbanas, expostos a ambientes endêmicos por motivos ocupacionais ou de viagem. Para o Dr. Diego Lins Guedes, um dos autores do estudo, a manutenção de casos importados demonstra que Pernambuco permanece vulnerável, e a resposta depende do diagnóstico rápido e da atenção dos profissionais de saúde ao histórico de deslocamento dos pacientes. Segundo ele, os padrões observados se repetem ao longo de duas décadas e sustentam o risco permanente de reintrodução da doença.

A origem das infecções confirma que o estado recebe casos tanto da Amazônia quanto do continente africano, sobretudo Angola, país que mantém fluxo migratório expressivo com o Brasil. Ao longo da série histórica, 52% dos casos tiveram origem na Amazônia brasileira, principalmente nos estados do Amazonas, Rondônia e Pará, enquanto 33,3% foram provenientes de Angola. As fichas de notificação registraram exposições associadas a viagens, obras de infraestrutura, atividades de mineração e outras situações relacionadas a deslocamentos temporários ou profissionais.

De acordo com o Dr. Guedes, os homens representaram três quartos das notificações, e a idade mediana foi de 32 anos, caracterizando um perfil de adultos economicamente ativos. A maioria residia em áreas urbanas e declarava baixa ou média escolaridade. Uma parcela expressiva dos formulários, porém, informou apenas a categoria “outros” para a atividade exercida nos 15 dias anteriores ao início dos sintomas, o que limita a compreensão mais detalhada sobre os contextos de exposição.

O tempo entre o início dos sintomas e a realização do teste diagnóstico revelou diferenças relevantes entre os grupos estudados. O intervalo médio foi de quatro dias, mas entre indígenas chegou a dez dias, e entre pessoas com menor escolaridade também se manteve elevado. A análise estatística indicou, no entanto, que essas variáveis não se sustentaram como determinantes independentes após o ajuste para deslocamento geográfico, sugerindo a influência de fatores estruturais não captadas pelos sistemas de notificação. Para o pesquisador, aspectos sociais e logísticos interferem no acesso oportuno aos serviços de saúde, e muitos deles não são adequadamente registrados nas bases de dados disponíveis.

Em relação às espécies identificadas, Plasmodium vivax representou 49,7% dos casos enquanto P. falciparum, foi responsável por 47,5%. As maiores cargas parasitárias estiveram associadas principalmente ao P. falciparum, espécie capaz de infectar hemácias em diferentes estágios de maturação, o que explica seu maior potencial de gravidade clínica. O estudo também registrou um caso de P. ovale, diagnosticado em 2022 em um indivíduo  vindo do Gabão, indicando a diversidade geográfica das infecções importadas.

As informações relacionadas ao tratamento também apontam limitações importantes nos registros. Uma parcela significativa dos casos foi classificada como tendo recebido “outro esquema terapêutico”, sem especificação dos medicamentos utilizados. Também foram identificados episódios de prescrição inadequada para infecções por P. falciparum, revelando fragilidades no manejo clínico da doença. “A ausência de registros sobre evolução clínica, hospitalizações e óbitos nas fichas de notificação, a única fonte de dados disponível para análise, impediu a avaliação da gravidade dos casos ao longo da série histórica. Esses dados constam em outros sistemas de informação, mas não estavam disponíveis no conjunto utilizado no estudo. Em regiões áreas não endêmicas, esse tipo de informação é fundamental, já que a população não possui imunidade adquirida. Em 2019, por exemplo, a letalidade da malária na região extra-amazônica foi 123 vezes maior do que a observada na Amazônia”, complementa o Dr. Guedes.

O autor reforça que a vigilância em áreas não endêmicas depende da incorporação sistemática da suspeita de malária na avaliação clínica, sobretudo durante períodos nos quais dengue e outras arboviroses concentram a atenção dos serviços de saúde e compartilham sintomas inespecíficos semelhantes. “Muitos pacientes não relatam espontaneamente viagens recentes, o que exige investigação ativa e criteriosa por parte dos profissionais de saúde”, atenta.

Ainda segundo o pesquisador, a possibilidade de reintrodução da malária em Pernambuco permanece concreta. O episódio registrado no estado da Paraíba em 2019, a cerca de 100 quilômetros do Recife, ilustra a vulnerabilidade de regiões com circulação de vetores competentes e elevada mobilidade humana. “A combinação entre deslocamento populacional, atraso no diagnóstico e presença de Anopheles cria uma condição que exige vigilância contínua e integrada”, acrescenta.

Para o Dr. Guedes, o conjunto de informações reunidas ao longo de mais de duas décadas revela a complexa interseção entre comportamento humano, desigualdades sociais, mobilidade populacional e capacidade de resposta do sistema de saúde. “Nosso estudo aponta a necessidade de estratégias contínuas de monitoramento, qualificação profissional e uso adequado dos instrumentos diagnósticos disponíveis. Em áreas onde a malária não apresenta transmissão local sustentada, a prontidão para reconhecer precocemente a doença é determinante para evitar desfechos graves e impedir o restabelecimento da transmissão”, conclui.

Mãe e filha morrem vítimas de malária após viagem internacional

No Sul de Minas Gerais, uma moradora do município de Pouso Alegre e sua mãe morreram após serem infectadas por Plasmodium falciparum durante uma viagem internacional. A prefeitura informou que a filha buscou atendimento médico no dia 9 de novembro, recebeu alta, mas retornou ao serviço de saúde dois dias depois, já com agravamento do quadro clínico. Ela foi internada e faleceu em 12 de novembro. A mãe, hospitalizada no estado de São Paulo, também não resistiu. Segundo familiares, ambas haviam realizado uma viagem à Europa com escala na África e permaneceram algumas horas em Angola, país que mantém transmissão ativa de malária.

Confira o artigo Clinical and epidemiological profiles of confirmed malaria cases in the state of Pernambuco, Brazil, from 2001 to 2022” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0038-2025
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**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**