Nova bactéria transmitida por carrapatos é identificada em cães
Espécie inédita do gênero Rickettsia foi isolada, cultivada e sequenciada em estudo científico nos Estados Unidos
23/12/2025
Análises genômicas permitiram a caracterização de uma nova espécie de Rickettsia detectada em cães com sinais clínicos compatíveis com riquetsioses
Pesquisadores da Universidade Estadual da Carolina do Norte confirmaram a existência de uma nova espécie bacteriana transmitida por carrapatos associada a doença em cães. O microrganismo, denominado Rickettsia finnyi, em homenagem ao primeiro cão, chamado Finny, no qual a bactéria foi identificada, foi descrito no estudo “Isolation and Characterization of Rickettsia finnyi, Novel Pathogenic Spotted Fever Group Rickettsia in Dogs, United States”, publicado na revista científica Emerging Infectious Diseases, periódico editado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
A bactéria foi inicialmente detectada em cães em 2018, durante investigações clínicas de animais que apresentavam febre, apatia e alterações hematológicas, especialmente trombocitopenia. Na época, os exames laboratoriais indicavam infecção por riquétsias do grupo da febre maculosa, que inclui agentes já conhecidos por causar doenças graves em animais e em pessoas, como Rickettsia rickettsii. A confirmação de que se tratava de uma espécie distinta exigiu vários anos de análises complementares, dada a complexidade técnica envolvida na caracterização desse tipo de microrganismo.
As riquétsias são bactérias intracelulares obrigatórias, o que dificulta seu isolamento e cultivo em laboratório. No estudo, os pesquisadores conseguiram isolar o agente diretamente do sangue de cães naturalmente infectados e cultivá-lo em linhagens celulares específicas, etapa considerada essencial para a descrição formal de uma nova espécie. O sucesso nesse processo permitiu o sequenciamento completo do genoma bacteriano, com aproximadamente 1,27 milhão de pares de bases, além de análises filogenéticas detalhadas.
Os resultados demonstraram que o genoma da bactéria apresentava semelhanças com outras riquétsias do grupo da febre maculosa, como Rickettsia rickettsii, mas também diferenças genéticas consistentes. Métricas taxonômicas reconhecidas internacionalmente, como a média de identidade nucleotídica e a hibridização digital de DNA, confirmaram que o microrganismo não correspondia a nenhuma espécie previamente descrita. Com base nesses critérios, os autores propuseram formalmente o nome Rickettsia finnyi, com depósito das culturas em coleções de referência, conforme exigido pelos protocolos científicos.
O estudo descreve que ao menos 17 cães apresentaram infecção natural pela nova bactéria, todos com sinais clínicos compatíveis com riquetsioses. A presença de genes associados à invasão celular e à sobrevivência intracelular, identificados no genoma, sugere um perfil biológico semelhante ao de outras riquétsias patogênicas já conhecidas. Ainda assim, os autores destacam que a gravidade e o espectro clínico da infecção em cães permanecem em investigação.
Embora o agente tenha sido associado a carrapatos, a pesquisa não identificou de forma definitiva o vetor responsável pela transmissão. Sequências genéticas compatíveis com Rickettsia finnyi já haviam sido detectadas anteriormente em carrapatos da espécie Amblyomma americanum, conhecido como lone star tick, coletados em ambiente natural. No entanto, os próprios pesquisadores ressaltaram que essa associação não constitui prova direta de transmissão e que estudos adicionais são necessários para esclarecer o ciclo completo do patógeno.
Até o momento, não há registro de infecção humana causada por Rickettsia finnyi. O estudo não documenta casos em pessoas nem estabelece risco epidemiológico para a população humana. Ainda assim, a identificação da bactéria em cães tem relevância do ponto de vista da vigilância, uma vez que esses animais compartilham o mesmo ambiente que os humanos e estão frequentemente expostos aos mesmos vetores.
Na avaliação do médico veterinário e pesquisador Dr. Filipe Dantas-Torres, especialista em doenças transmitidas por vetores, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE), a descoberta demonstra a relevância dos cães como indicadores precoces da circulação de patógenos. Segundo ele, esses animais compartilham o mesmo espaço ecológico que os humanos e estão frequentemente expostos aos mesmos carrapatos, o que os caracteriza como importantes sentinelas epidemiológicas. “A identificação de uma nova Rickettsia do grupo da febre maculosa em cães contribui para revelar lacunas no conhecimento sobre a diversidade de microrganismos transmitidos por carrapatos e reforça a necessidade de vigilância integrada entre a saúde animal, humana e ambiental”, destaca.
Ainda segundo o Dr. Dantas-Torres, a descoberta ocorre em um contexto de crescente atenção à expansão e à reemergência de doenças transmitidas por carrapatos em diversas regiões. “Esses artrópodes figuram entre os principais vetores de zoonoses e são responsáveis pela transmissão de agentes bacterianos, virais e parasitários capazes de causar quadros graves. No Brasil, por exemplo, a febre maculosa permanece uma das zoonoses mais graves associadas a carrapatos, com registros recorrentes de casos humanos e elevada letalidade em determinados contextos”, complementa. Embora não haja evidências atuais de infecção humana por Rickettsia finnyi, a vigilância contínua e a pesquisa multidisciplinar são fundamentais para compreender a dinâmica desses agentes, orientar estratégias de monitoramento e antecipar possíveis impactos na saúde pública.