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Acoziborol: medicamento pode colocar doença do sono na cama

Novo tratamento oral de dose única pode curar a tripanossomíase e ainda fornecer impulso para eliminação da doença

13/04/2022
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Durante a última epidemia, a prevalência atingiu 50% em várias aldeias de Angola, República Democrática do Congo e Sudão do Sul. A doença do sono foi a primeira ou segunda maior causa de mortalidade nessas comunidades, mesmo à frente do HIV/AIDS

Cerca de 10 mil novos casos de tripanossomíase humana africana (HAT, na sigla em inglês), mais conhecida por doença do sono, são relatados a cada ano. No entanto, estima-se que muitos casos não são diagnosticados. A triagem da população em risco é um grande investimento, tanto em termos de número de pessoas necessárias para realizá-las como de materiais, muitas vezes escassos nas áreas da África onde a tripanossomíase é encontrada. Aproximadamente 65 milhões de pessoas na África subsaariana correm risco de moderado a muito alto de serem infectadas. Durante décadas, o único tratamento disponível foi o melarsoprol, um derivado do arsênico que matou 1 em cada 20 pacientes.A doença pode ser fatal se não tratada.

Em 2012, um estudo encabeçado pela Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), permitiu o desenvolvimento do medicamento fexinidazol, totalmente oral e sem graves efeitos colaterais. Seu uso foi aprovado em novembro de 2018, representando uma nova página no tratamento da doença do sono. Em 2021, a Agência Nacional de Alimentos e Medicamentos (Food and Drug Administration, FDA, na sigla em inglês) aprovou o fexinidazol como o primeiro tratamento completamente oral para os dois estágios da doença do sono. Ele é indicado para a doença do sono causada pelo Trypanosoma brucei gambiense (g-HAT), a forma mais comum da doença na África ocidental e central, como um tratamento administrado uma vez ao dia durante 10 dias.

Um futuro de fácil acesso

Agora, um potencial tratamento contra a tripanossomíase africana humana de estágio 1 e estágio 2 causada por g-HAT pode curar a doença com dose única de um dia, o que vai simplificar a administração e fortalecer os esforços para a eliminação sustentada da doença do sono. Trata-se do acoziborol, um medicamento barato, seguro e eficaz administrado por via oral. O Dr. Wilfried Mutombo Kalonji, da República Democrática do Congo (RDC), líder de Projeto Clínico e Gerente Médico da DNDi, explica que o ensaio clínico principal de Fase II/III que avaliou a segurança e eficácia do fármaco em pacientes adultos e adolescentes com g-HAT foi concluído em 2020. Ele contou com 208 pacientes inscritos foi realizado em treze locais, doze na RDC e um na Guiné. Os resultados primários de segurança e eficácia são muito encorajadores. A publicação oficial será feita nos próximos meses, complementa. Posteriormente dois estudos clínicos adicionais para g-HAT foram lançados e estão sendo realizados na RDC e na Guiné: soropositivos e pediátricos.

Questionado se foram realizados estudos não clínicos adicionais para atender aos requisitos da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) e da Food and Drug Administration (FDA na sigla em inglês), o pesquisador afirma que sim. “O FDA solicitou um estudo de toxicidade adicional de 3 meses em 2 espécies (rato e cães) com doses acima da exposição observada em humanos. Este estudo está concluído, não foram observadas novas situações que necessitem de supervisão em humanos. Estudos complementares in-silico foram realizados (exploração do SymCYP, modelagem GastroPlus) para fins de registro. Um estudo de interação medicamentosa está planejado para iniciar em voluntários saudáveis no segundo trimestre de 2022”, detalha. Sobre a expectativa para que o medicamento receba luz verde regulatória, o Dr. Kalonji diz que o dossiê será submetido à EMA para parecer científico e à autoridade regulatória na RDC para ter a autorização de mercado e ser incluída nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) para tratamento com g-HAT e eliminação sustentada da transmissão até 2030. “Estamos comprometidos com a OMS a eliminar o HAT até 2030”, enfatiza.

Em relação à diferença entre o acoziborol e o fexinidazol, em termos de formulação, o Dr. Kalonji ressalta que ambos são medicamentos orais, o fexinidazol é administrado uma vez ao dia em conjunto com alimentos por dez dias de tratamento, enquanto o acoziborol é um tratamento de dose única administrado em jejum. Ele é eliminado lentamente após a dosagem, o que garante uma boa cobertura do tratamento. Para ele, a vantagem do acoziborol é a de ser um tratamento de dose única com alta segurança, que lhe confere um bom perfil para acompanhar a eliminação sustentável da HAT. “A aprovação do acoziborol vai representar um grande avanço para os pacientes. A doença está emergindo dos grilhões do estigma para se tornar uma doença normal. Também vai significar muita esperança para outras doenças negligenciadas porque elas podem ter tratamentos reproduzidos”, finaliza.

Desde 2001, o número de casos de tripanossomíase humana africana caiu 97%, mais de 40 milhões de pessoas foram examinadas e mais de 210 mil pacientes foram tratados. Mas a doença ainda está matando pessoas. Esse tratamento de dose única para a doença do sono pode ser um verdadeiro divisor de águas para pessoas em risco dessa doença mortal. Uma vez aprovado, o acoziborol será distribuído gratuitamente aos pacientes ou governos. Atualmente, não existe uma vacina eficaz contra os tripanossomos africanos e os medicamentos usados para tratar a doença do sono são limitados em seu uso e eficácia devido à toxicidade, resistência ou complexidade da administração.

Usando tecnologias genéticas de ponta, pesquisadores conseguiram mostrar que o acoziborol tem como alvo uma proteína chamada CPSF3. A modelagem de estrutura revelou as principais diferenças entre o CPSF3 humano e o parasita, no local onde o fármaco se liga, explicando por que o fármaco é seguro e não tóxico para os seres humanos. Em 2018, o estudo intitulado Clinical and veterinary trypanocidal benzoxaboroles target CPSF3 foi publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS).

RDC relata 387 casos de doença do sono na África em 2021, casos relatados na maioria das províncias

De acordo com reportagem publicada no Outbreak News Today, em 09 de fevereiro, vinte e duas das 26 províncias que compõem a RDC relataram tripanossomíase humana africana em 2021. No ano passado, o país registrou 387 casos. Estas estatísticas foram divulgadas em 30 de janeiro de 2022, por ocasião da comemoração do Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Diante dessas estatísticas, a eliminação dessa doença no país continua sendo um grande desafio. Mas é verdade que nos últimos anos o progresso envolveu avanços terapêuticos, particularmente a administração desde janeiro de 2020 do fexinidazol, um novo tratamento oral eficaz, que atua em todas as fases da doença. A RDC registra quase 85% dos casos da doença na África. Segundo a OMS, 5,6 milhões de pessoas estão em alto risco de infecção por esta doença.

Sobre a doença

Transmitida pela picada de uma mosca tsé-tsé infectada, após um período com sintomas não específicos, a doença do sono evolui e causa sintomas neuropsiquiátricos que incluem o comportamento anormal e um distúrbio debilitante nos padrões do sono que dá nome a esta doença negligenciada que ameaça milhões de pessoas em 36 países da África Subsaariana. Muitas das populações afetadas vivem em áreas rurais remotas com acesso limitado a serviços de saúde adequados, o que dificulta a vigilância e, portanto, o diagnóstico e o tratamento dos casos. Além disso, o deslocamento de populações, a guerra e a pobreza são fatores importantes que facilitam a transmissão. A incidência da doença difere de um país para outro, bem como em diferentes partes de um único país.

De acordo com a OMS, nos últimos 5 anos, mais de 70% dos casos notificados ocorreram na RDC, com uma média de menos de 1.000 casos declarados anualmente. Angola, República Centro-Africana, Chade, Congo, Gabão, Guiné, Malawi e Sudão do Sul declararam entre 10 e 100 novos casos em 2019, enquanto Camarões, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, Uganda, República Unida da Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué declararam entre 1 e 10 novos casos. Países como Burkina Faso, Gana, Quênia e Nigéria, relataram casos esporádicos nos últimos 10 anos. Benin, Botswana, Burundi, Etiópia, Gâmbia, Guiné Bissau, Libéria, Mali, Moçambique, Namíbia, Níger, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Suazilândia e Togo não notificam novos casos há mais de uma década. A transmissão da doença parece ter parado em alguns desses países, mas ainda há algumas áreas onde é difícil avaliar a situação exata porque as circunstâncias sociais instáveis e/ou a dificuldade de acessibilidade dificultam as atividades de vigilância e diagnóstico.

O controle da tripanossomíase africana atualmente gira em torno de duas estratégias principais: triagem populacional para garantir o tratamento precoce de pessoas infectadas e ajudar a reduzir o número de pessoas portadoras (menos pessoas portadoras do parasita representam menos probabilidade da mosca tsé-tsé se infectar ao se alimenta de sangue e menos probabilidade de passar o parasita para outro indivíduo em sua próxima refeição de sangue). Outra estratégica é reduzir a transmissão através da mosca usando inseticidas e implantando armadilhas e/ou telas nas residências para reduzir o número de insetos que entram.

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**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**