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Alerta: Brasil deve ficar atento e monitorar arboviroses neuroinvasivas

Atenção sobre doenças neuroinvasivas por arbovírus devem ser redobradas. Dengue pode comprometer o sistema nervoso por invasão direta, hipóxia, isquemia, hemorragia e autoimunidade

09/05/2020
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O impacto dos casos de comprometimento neurológico sobre a saúde dos indivíduos e sobre a capacidade instalada para a assistência na rede pública hospitalar são fatores preocupantes

As infecções por arbovírus podem resultar em um amplo espectro de síndromes clínicas, desde doença febril branda até febres hemorrágicas e formas neuroinvasivas. Em 2015, o Brasil assistiu uma explosão do número de casos de síndrome de Guillain-Barré e de microcefalia. Sob evidências cumulativas de que as infecções pelos arbovírus circulantes no País estariam relacionados à ocorrência de síndromes neurológicas congênitas e adquiridas, em 2017 o Ministério da Saúde lançou o “Manual de Vigilância Sentinela das Doenças Neuroinvasivas por Arbovírus”. O documento recomendava investigação rotineira para dengue, Zika e chikungunya dos casos neurológicos assistidos em unidades sentinelas distribuídas em cada unidade da federação. Atualmente, a estratégia de vigilância das doenças neuroinvasivas por arbovírus está sendo reformulada pelo Ministério da Saúde, com vistas à simplificação do instrumento de notificação e à descentralização e ampliação da investigação.

Para o doutor em virologia e coordenador da vigilância dos agravos com manifestações neurológicas da Fundação Municipal de Saúde de Teresina e da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí, Dr. Marcelo Adriano Vieira existem poucas situações tão dramáticas quanto presenciar um adulto ou uma criança perfeitamente saudável sofrer mudanças repentinas na sua personalidade e no seu comportamento, tornar-se agressivo, delirante, confuso, entrar em coma ou até mesmo morrer dentro de poucos dias depois do surgimento de sintomas leves (mal-estar, adinamia, hiporexia, mialgia e febre). “Mesmo quando são oferecidos os melhores esforços de tratamento e se consegue sobrevivência sem sequelas físicas aparentes, muitas vezes as famílias percebem que os pacientes vitimados por encefalite não são mais os mesmos ao retornarem para casa, por apresentarem personalidade diferente, irritabilidade, dificuldade de memória ou incoordenação motora”, complementa o neurologista.

O 10º boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre o monitoramento dos casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes indica que, em 2020, a incidência dos casos de dengue retorna ao canal endêmico, notando-se um comportamento ascendente da curva de incidência. “Por conseguinte, as atenções sobre as doenças neuroinvasivas por arbovírus devem ser redobradas, visto que a dengue pode comprometer o sistema nervoso por invasão direta, hipóxia, isquemia, hemorragia e autoimunidade”, atenta o Dr. Marcelo. Ainda de acordo com ele, os estudos realizados no estado do Piauí indicam que podem ocorrer de 0,6 a 3 casos de comprometimento neurológico a cada 1000 notificações das arboviroses dengue, Zika e/ou chikungunya. “Diante dessa expectativa, o impacto dos casos de comprometimento neurológico sobre a saúde dos indivíduos e sobre a capacidade instalada para a assistência na rede pública hospitalar são fatores preocupantes”, complementa.

Estimar a incidência exata das encefalites virais agudas é muito difícil, porque muitos casos são diagnosticados como meningite com complicações neurológicas ou são considerados como encefalopatias metabólicas ou vasculares ou como distúrbios psiquiátricos agudos. “Além disso, na maioria dos países a doença não é considerada de notificação compulsória e a identificação do vírus específico causador dificilmente é realizada”, ressalta. Entretanto, segundo ele, as encefalites virais ocorrem em frequência suficiente para que os profissionais de saúde precisem ter familiaridade com suas manifestações clínicas, métodos diagnósticos e diretrizes terapêuticas. Estudos realizados em populações limitadas mostraram incidência anual entre 1 – 13 casos / 100.000 habitantes.

O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) define como principais manifestações neurológicas de infecção por arbovírus: meningite (asséptica), encefalite e paralisia flácida aguda (mielite ou polirradiculoneurite). Entretanto, são admitidas como possíveis manifestações outras síndromes clínicas. De acordo com o neurologista, que atua também como consultor técnico da Coordenação Geral de Vigilância de Arboviroses, do Ministério da Saúde, a etiologia de muitos casos de encefalite permanece desconhecida. “Os melhores protocolos de investigação conseguem identificar a etiologia em aproximadamente metade dos casos, apenas. A reduzida especificidade da apresentação clínica dos diversos agentes causadores, a baixa sensibilidade do arsenal diagnóstico disponível para as causas conhecidas da doença, a utilização restrita de testes para agentes considerados incomuns e a possibilidade de infecção por agentes infecciosos até então desconhecidos tornam o diagnóstico etiológico das encefalites virais agudas um desafio”, reconhece.

Os guidelines atuais para manejo de casos de encefalite viral estimam que as tentativas de detecção genômica por meio de reação em cadeia de polimerase para herpes vírus e enterovírus no líquido cefalorraquidiano são capazes de identificar 90% dos casos com etiologia detectável. Todavia, esta projeção provavelmente não reflete a realidade brasileira, onde vários arbovírus neurotrópicos têm comprovada circulação e onde a maior parte da população encontra-se exposta aos mosquitos Aedes aegypti e Culex sp. Por conseguinte, a linha de investigação das síndromes neurológicas presumivelmente infecciosas ou para-infecciosas deverá levar em consideração estes fatores e os resultados das casuísticas locais.

Programa de vigilância de encefalites virais agudas no Piaui

Em 2013, um programa de vigilância de encefalites virais agudas e outras síndromes neurológicas foi iniciado em Teresina, Piauí. Um protocolo de investigação foi instituído, incluindo pesquisa de herpes vírus, enterovírus, arbovírus, vírus respiratórios e Campylobacter jejuni, em parceria com o Laboratório Central de Saúde Pública do Piauí (LACEN) e o Instituto Evandro Chagas. “No bojo deste programa, houve a detecção do primeiro caso humano de encefalite pelo vírus do Nilo Ocidental do Brasil, em 2014. A partir da detecção desse caso, o programa foi adaptado para ter máxima sensibilidade para detecção de novos casos, partindo da premissa de que a apresentação clínica da doença neuroinvasiva pelo vírus do Nilo Ocidental é, na maioria das vezes, indistinta entre as várias outras arboviroses, bem como de que há extensa sobreposição entre as manifestações clínicas das encefalites causadas por arbovírus, herpes vírus, enterovírus e vários outros agentes virais”, lembra o Dr. Vieira. O programa previa que todos os casos agudos de meningite asséptica, encefalite, mielite, encefalomielite e polirradiculoneurite no estado fossem notificados e investigados laboratorialmente.

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Casos registrados de febre do Nilo Ocidental em humanos e em animais no Brasil. Testes sorológicos de outros 39 casos humanos do estado do Piauí tiveram resultados positivos para o vírus do Nilo Ocidental, mas com reatividade cruzada com outros flavivírus. Achados sorológicos prévios também sugerem circulação do vírus do Nilo Ocidental entre equídeos e aves no Pantanal e no Nordeste brasileiros.

Um recorte de um ano de atividade do programa e já sob as recomendações do Ministério da Saúde mostrou que os arbovírus podem ser responsáveis por aproximadamente um terço dos casos de encefalite, mielite, encefalomielite e polirradiculoneurite no estado, fazendo frente à tradicional atribuição das infecções virais do sistema nervoso central aos herpes vírus e enterovírus e à bactéria Campylobacter jejuni como deflagradora de síndrome de Guillain-Barré. “No Piauí, as atividades do programa de vigilância foram desenvolvidas de forma descentralizada, conjugadas com a vigilância da febre do Nilo. O potencial ofensivo dos arbovírus ao sistema nervoso verificado no estudo pode mudar paradigmas frente às suspeitas de casos neurológicos ocorridos aparentemente fora de um contexto de infecção sistêmica caracterizada por febre, exantema, artralgia e mialgia” destaca o Dr. Vieira.

Antes do diagnóstico do primeiro caso humano de febre do Nilo Ocidental do País, inquéritos sorológicos realizados a partir de amostras de animais (aves e equídeos) no Pantanal e no Nordeste brasileiro mostraram a presença de anticorpos contra o vírus do Nilo Ocidental. Até o presente, casos humanos só foram registrados no Piauí. Três epizootias pelo vírus em equídeos foram confirmadas nos estados do Espírito Santo (2018), Ceará (2019) e São Paulo (2019) mas, paradoxalmente, nenhum caso humano foi confirmado ainda nesses locais. Um relatório técnico da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí sobre a vigilância da febre do Nilo Ocidental entre 2014 e 2018, aponta que foi possível inferir a etiologia de 49% dos casos notificados atribuíveis ao comprometimento infeccioso, parainfeccioso ou pós-infeccioso do sistema nervoso central. A casuística local surpreendeu ao evidenciar que os arbovírus despontaram como a etiologia mais frequente das infecções virais do sistema nervoso central, sobrepujando a clássica soberania dos herpes vírus e dos enterovírus exposta em séries de casos internacionais, considerado-se os casos com etiologia inferida.

De acordo com o Dr. Marcelo, o relato de febre, artralgia ou exantema esteve associado ao diagnóstico de infecção por arbovírus em pacientes com comprometimento neurológico. Entretanto, a investigação procedida sugere que a ausência dessas manifestações clínicas nas notificações não se constitui elemento adequado para dispensar a investigação laboratorial para as arboviroses, visto que esteve relacionada à razão de verossimilhança próxima da unidade. “Embora seja fundamental considerar a etiologia herpética diante de qualquer caso de encefalite em humanos (por conta das implicações terapêuticas relacionadas à urgência da administração de aciclovir), tais dados indicam a necessidade de se ponderar a possibilidade de algum arbovírus ser responsável pela infecção do sistema nervoso de qualquer paciente, mesmo na ausência de condicionantes epidemiológicos óbvios ou de manifestações clínicas sistêmicas indicativas de arbovirose”, conclui o neurologista.