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Arboviroses, covid-19 e vulnerabilidade social

A partir de agora haverá uma tendência da covid-19 invadir as comunidades pobres, que vivem em condições de aglomeração em habitações precárias e sem saneamento básico

11/04/2020
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É urgente adotar medidas que minimizem o impacto do coronavírus nas populações mais pobres do País

As mazelas sanitárias urbanas no Brasil são inúmeras, entre elas, destacam-se a dengue e outras arboviroses transmitidas por mosquitos do gênero Aedes, como as febres Zika e Chikungunya. Essas arboviroses representam desafios crônicos para o País e para os quais as respostas em saúde pública têm sido decepcionantes. A dengue aflige o Brasil desde meados dos anos 1980, provocando epidemias massivas periodicamente, afetando milhões de brasileiros, causando sofrimento e afastamento das atividades cotidianas e, eventualmente, a morte. A introdução de Zika e Chikungunya no País mais recentemente, gerou uma tripla carga de doença transmitida pelo mesmo vetor, aprofundando seu impacto social e econômico. De um lado, Zika, criando uma geração de crianças com graves distúrbios neurológicos associados à microcefalia e levando sofrimento e distúrbios psicológicos a vários núcleos familiares. Do outro lado, Chikungunya, mostrando uma face até então relativamente desconhecida das arboviroses, a dos efeitos crônicos e incapacitantes da infecção. Às dificuldades no enfretamento das arboviroses somam-se um sem número de outras doenças infecciosas como a tuberculose, HIV/aids, leishmaniose visceral, pneumonias bacterianas, meningites, leptospirose, hanseníase e influenza sazonal, que agravam ainda mais o cenário sanitário das populações das metrópoles brasileiras.

O doutor em Saúde Pública e Epidemiologia pela Harvard School of Public Health, Dr. Guilherme Werneck, destaca o crônico subfinanciamento do sistema único de saúde (SUS) agravado nos últimos anos pela priorização de um modelo econômico restritivo e avesso ao investimento em políticas sociais. Segundo ele, a aprovação da emenda constitucional no95 (conhecida como Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos) trouxe ainda mais incertezas e estrangulamentos no financiamento à saúde no País. “O resultado é a geração, com rapidez inédita, de uma legião de pessoas altamente vulnerável, empobrecida, vivendo majoritariamente na informalidade. É nesse contexto de vulnerabilidade social que a população brasileira, já vivendo num quadro de polarização epidemiológica onde coexistem altas cargas de doenças infecciosas, crônico-degenerativas, acidentes e violências, precisa lidar com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19)”, aponta.

Para o Dr. Werneck, que também é professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ), a Covid-19 tem demonstrado duas feições claras: apresenta uma alta capacidade de disseminação e uma letalidade mais baixa se comparada com outras epidemias recentes por coronavírus (SARS-CoV e MERS-CoV). A letalidade da Covid-19 de cerca de 2% tem sido aventada como um motivo para que não se trate a epidemia com a gravidade que ela merece. “Entretanto, percentuais são enganosos, porque podem representar números absolutos muito diferentes. A influenza A pandêmica de 2009 (H1N1pdm09), por exemplo, teve letalidade menor do que a da Covid-19, mas ceifou entre 150 mil a 575 mil vidas no mundo, mesmo havendo uma vacina disponível”, ressalta o médico. Em sua avaliação, o grande desafio apresentado pela Covid-19 é a rapidez com que se acumulam casos no mundo, sem que haja medida terapêutica ou vacina disponível. Em pouco mais de três meses desde o início da epidemia na China, no final de 2019, já foram registrados quase 800 mil casos e 40 mil mortes no mundo, e estima-se que ainda muitos casos e óbitos venham a ocorrer nos próximos meses.

Até 30 de Março de 2020, pouco menos de 1 mês desde a definitiva instalação da transmissão comunitária do Covid-19 no País, já foram registrados mais de 4,5 mil casos confirmados da doença e 165 óbitos, números certamente subestimados levando-se em consideração a limitada cobertura de testes diagnósticos, demora no processamento e divulgação dos resultados e subregistro de óbitos por Covid-19. Modelos matemáticos estimam que o número de infecções pelo novo coronavírus seja pelo menos 10 vezes maior e que no mínimo 1 a cada 5 óbitos pela doença não estejam sendo corretamente atribuídos a ela. “Esse quadro ainda representa uma dinâmica de transmissão majoritariamente concentrada em populações de classe média ou média-alta, aqueles que adquiriam a infecção no exterior e eventualmente transmitiram para seus contatos. A partir de agora haverá uma tendência a doença invadir as comunidades pobres, que vivem em condições de aglomeração em habitações precárias e sem saneamento básico”, atenta o Dr. Werneck, que também é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva Abrasco). O médico é categórico ao afirmar que o acometimento de vastas parcelas de população vulnerável pela Covid-19 poderá se configurar em uma verdadeira tragédia, com o colapso dos serviços de saúde e aumento substancial do número de mortes.

O epidemiologista espera que seja possível reverter essa expectativa, pelo menos parcialmente, com as medidas extremas de distanciamento social que vem sendo implementadas nas principais cidades brasileiras, que pese o visível desconforto do empresariado rentista nacional e parcela daqueles que hoje se encontram no poder. “Há também o SUS, o SUS vilipendiado, sendo paulatina e deliberadamente desmontado, mas o SUS que hoje pode dar a resposta à crise, o SUS que é o único acesso ao cuidado à saúde da maioria da população brasileira, o SUS que teima em resistir, o nosso SUS, que a crise atual fará a sociedade perceber a sua importância para a garantia do direito universal à saúde do seu povo, o maior ativo que uma nação pode ter”, finaliza o Dr. Werneck, que também é membro da comissão de redação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).