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Barbeiros: os vampiros da realidade

Vou contar sua história para o mundo. Ainda que parecesse pouco no momento, era o que a jornalista Eliane Brum podia fazer, “e o possível nunca é pouco”

06/06/2017
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Dignidade – ‘Os vampiros da realidade só matam pobres’ conta histórias de pessoas completamente excluídas de um sistema de saúde

— Por favor, não me deixe morrer.

A menina me agarra pelos dois braços. Tem apenas 11 anos. Seus olhos, porém, são tão velhos quanto os meus. Ou mais. Sonia é o seu nome. Naquele instante em que ela me pede para mudar o mundo, eu afundo na impotência. “Eu vou contar a sua história”, responde Eliane Brum.

Quando comecei a pensar nesta matéria a ideia era produzir uma reportagem sensível, tocante e claro, informativa, sobre as pessoas afetadas pela doença de Chagas, mas foi quando me deparei com as histórias de Sonia e de Cristina. Neste momento sabia que precisava recontar suas histórias, porque simplesmente os meus olhos não conseguiam conter as lágrimas. Suas histórias compõem um dos capítulos do livro Dignidade (Leya) – ‘Os vampiros da realidade só matam pobres’. A publicação conta histórias de pessoas que viviam em situação de conflitos armados, fome, epidemias ou eram completamente excluídas de um sistema de saúde. A jornalista Eliane Brum escreveu sobre o Mal de Chagas na Bolívia, um dos países com maior prevalência da doença no mundo. Apesar de ser uma repórter experiente, ela conta que experimentou uma nova sensação convivendo com esta menina de 11 anos, pois se confrontou com o sentimento de impotência. Ao deixar a província, foi surpreendida com o pedido feito por Sonia para que não a deixasse morrer. Eliane respondeu o de costume: “Vou contar sua história para o mundo”. Ainda que parecesse pouco no momento, era o que ela podia fazer, “e o possível nunca é pouco”.

Eliane Brum foi fazer uma reportagem na Bolívia, em um projeto da Médicos Sem Fronteiras (MSF) sobre doença de Chagas. A autora conta que esteve em aldeias onde 70% das pessoas tinham Chagas, o barbeiro era um inseto-conceito onipresente e tudo isso só acontecia porque eram pobres demais para que a indústria farmacêutica se interessasse por eles. “Morriam porque eram os invisíveis entre os invisíveis. Ao mesmo tempo, eram pessoas muito doces, falantes de uma língua muito delicada, que é o quéchua. Em meio à brutalidade daquela realidade, tinham um estar no mundo poético, que a capturou para sempre”, detalha. Ao final da viagem, ao se despedir de Sonia, ela a agarrou e disse: “Não me deixe morrer”. A jornalista revela que já tinha estado em realidades ainda mais assustadoras, mas esta foi a primeira vez que alguém fez este pedido a ela. “Era uma criança com medo de morrer por uma doença negligenciada e percebi ali que, contar a sua história não seria suficiente para salvar a sua vida”, escreve.

A jornalista narra que há sempre várias maneiras de descrever a causa da morte de alguém. Já no caso de Cristina, a mais corriqueira seria dizer que ela morreu em decorrência de complicações causadas pela doença identificada pelo brasileiro Carlos Chagas no início do século XX. “É uma verdade que ela tenha morrido de doença de Chagas. Mas é uma verdade pequena. É preciso ampliar um pouco mais essa verdade. Cristina morreu porque a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar tratamento, vacina e cura para as doenças dos pobres”, conclui. Eliane recorda que há gente que vive morta. E há gente que morre viva. “Cristina Salazar López morreu viva”, relata

Eliane conta que Cristina explicou o que era a Vinchuca. E a partir dali não se falou mais em barbeiro, mas em Vinchuca, porque esta palavra expressa algo maior, mais completo e profundo do que um inseto. “Perguntei qual era o som da Vinchuca. Cristina disse: Soa como as folhas secas do milho ao vento. Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos. Perguntei qual era o cheiro da Vinchuca. Ela disse: Cheira como sangue velho”, escreve.

Era assim que Cristina contava essa história… Nas palavras de Eliane:

Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado.

Grande parte dos infectados pela doença não se recorda de quando ou como teria sido picado pelo barbeiro ou triatomíneo, inseto transmissor do parasita, mas muitos possuem antecedentes na família. Em geral, um parente de primeiro grau também tem a doença. Como as pessoas são infectadas ao nascer, às vezes ainda no útero da mãe, a evolução da doença começa quase junto com a vida. Lamentavelmente, 108 anos após a descoberta desta doença parasitária (a mais mortal da América Latina), existem cerca de seis a sete milhões de pessoas afetadas, sendo que 7 mil morrem anualmente. Estas mortes poderiam ser evitadas com diagnóstico e tratamento precoce. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença de Chagas está incluída entre as 18 doenças tropicais negligenciadas. Argentina e Brasil têm o maior número de pessoas com a doença no mundo e a Bolívia tem a maior prevalência.