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Brasil elimina transmissão da filariose linfática como problema de saúde pública

Eliminação da doença como problema de saúde pública representa um marco significativo no enfrentamento às doenças tropicais negligenciadas no País

03/12/2024

Concedida pela OMS, a certificação destaca o Brasil como o 20º país no mundo a eliminar a doença, reconhecida como uma das principais causas de incapacidade permanente ou de longo prazo

O Brasil recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) a certificação pela eliminação da transmissão da filariose linfática como problema de saúde pública, um marco significativo na luta contra doenças tropicais negligenciadas (DTN). Esse resultado é fruto de décadas de esforços integrados entre governos, pesquisadores e comunidades, consolidando o País como uma referência no enfrentamento da doença, também conhecida como elefantíase.

“Essa vitória não é resultado de uma ação isolada, mas sim de um compromisso coletivo iniciado há mais de 25 anos, envolvendo medidas rigorosas de diagnóstico, tratamento e vigilância epidemiológica. Isso demonstra que o planejamento estratégico aliado a políticas públicas bem executadas faz toda a diferença”, afirma o Dr. Gilberto Fontes, parasitologista da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e um dos principais especialistas brasileiros em filariose linfática.

Doença negligenciada e seus impactos

A filariose linfática é causada pelo Wuchereria bancrofti, um verme transmitido por mosquitos como o Culex quinquefasciatus. Após a infecção, o parasito se desenvolve e se aloja nos vasos linfáticos, causando inflamação crônica que pode evoluir para deformidades graves, como a elefantíase – uma condição debilitante que impacta profundamente a autoestima e a qualidade de vida das pessoas. “A filariose é uma doença que afeta as populações mais vulneráveis, aquelas sem acesso a saneamento básico e serviços de saúde. Apesar de não ser fatal, ela impõe um enorme peso emocional e social sobre os indivíduos acometidos e suas famílias”, destaca o Dr. Fontes.

Embora o Brasil tenha eliminado a transmissão da doença, isso não significa a erradicação global da doença, como enfatiza o parasitologista. “Erradicar significa que não há mais casos em qualquer lugar do mundo. Esse não é o caso da filariose linfática, que permanece endêmica em diversos países da África e da Ásia, afetando cerca de 100 milhões de pessoas, especialmente na Índia e em países africanos. No Brasil, eliminamos a transmissão, mas ainda precisamos lidar com pacientes crônicos que requerem acompanhamento médico e social”, explica. Esses pacientes, embora não sejam mais transmissores, continuam a sofrer com sequelas, como a elefantíase. “É fundamental garantir suporte contínuo para essas pessoas, porque a eliminação da transmissão não resolve o impacto físico e emocional que elas carregam”, reforça o especialista.

Caminho até a certificação

O reconhecimento pela OMS coroa um trabalho iniciado em 1997 com o Programa Nacional de Eliminação da Filariose Linfática, que implementou uma série de ações estratégicas. Entre elas, destacou-se o tratamento em massa com a administração de dietilcarbamazina (DEC) em áreas endêmicas, com foco especial na Região Metropolitana do Recife, onde está localizado o Serviço de Referência Nacional em Filarioses do Instituto Aggeu Magalhães (IAM), último reduto ativo da doença no Brasil. Paralelamente, foram realizadas campanhas de educação em saúde para conscientizar a população sobre os riscos da filariose e as medidas preventivas necessárias. Em algumas áreas, também ocorreram melhorias no saneamento básico, visando reduzir a exposição aos mosquitos transmissores, além de um monitoramento epidemiológico rigoroso, essencial para identificar e tratar possíveis novos casos. Os primeiros levantamentos nacionais sobre a filariose ocorreram entre 1950 e 1958, identificando 11 focos de transmissão no País. As cidades mais afetadas incluíam Belém e Recife. Com o tempo, o foco principal e remanescente concentrou-se na Região Metropolitana do Recife, onde foi realizado o tratamento em massa. “Entre 2003 e 2016, foi realizado o tratamento em massa no Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes, alcançando milhares de pessoas. Desde 2017, não registramos novos casos. Esse resultado só foi possível graças à colaboração entre o Ministério da Saúde, estados, municípios, instituições de pesquisa e a academia”, afirma o Dr. Fontes.

Desafios persistentes

Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos para manter a certificação de eliminação da filariose linfática como problema de saúde pública. Entre as principais medidas necessárias está a manutenção de um sistema de vigilância epidemiológica robusto, capaz de monitorar áreas anteriormente endêmicas, realizar busca ativa de casos suspeitos e garantir o treinamento contínuo de profissionais de saúde. A questão migratória também exige atenção especial, particularmente devido ao fluxo de migrantes provenientes de áreas endêmicas, como Haiti, Ásia e África, que podem representar um risco de reintrodução da doença no Brasil. Essas populações vulneráveis precisam ser integradas em ações de vigilância e cuidado, garantindo que a eliminação da transmissão seja mantida a longo prazo.

“Com o aumento dos fluxos migratórios, como os do Haiti após o terremoto de 2010, precisamos reforçar a vigilância nas áreas de entrada do País. O laboratório de Referência Nacional em Filarioses e os Laboratórios Centrais (LACENs) estão preparados para identificar qualquer caso suspeito, mas esse é um trabalho que precisa ser contínuo”, atenta o Dr. Fontes. Estudos publicados na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT), “Wuchereria bancrofti infection in Haitian immigrants and the risk of re-emergence of lymphatic filariasis in the Brazilian Amazon, indicam  que o risco de transmissão da W. bancrofti por migrantes haitianos é baixo, mas ressaltam que a vigilância constante é essencial para prevenir reintroduções da doença. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem desempenhado um papel fundamental nesse esforço, garantindo assistência tanto à população local quanto aos migrantes, sem qualquer discriminação, reforçando o compromisso com a saúde pública e a equidade.

Outro desafio destacado pelo Dr. Gilberto Fontes é a necessidade de capacitação técnica para o diagnóstico preciso da filariose linfática. “O diagnóstico pode ser desafiador, pois as microfilárias – formas do parasito presentes no sangue dos infectados – não estão disponíveis para detecção a qualquer hora do dia. As microfilárias apresentam periodicidade noturna, o que exige que a coleta de sangue seja realizada entre 22h e 1h. Sem essa precisão, há o risco de diagnósticos incorretos e atrasos no tratamento”, explica. O especialista alerta para as consequências dos erros diagnósticos, que podem levar a resultados falso-negativos. “Isso pode resultar na ausência de tratamento, agravamento da doença e desenvolvimento de complicações crônicas irreversíveis. Por isso, a capacitação contínua dos profissionais de saúde e a conscientização sobre esses aspectos técnicos são fundamentais para garantir um manejo eficaz dos casos”, reforça o parasitologista.

Reconhecimento e legado

O Brasil agora compartilha sua experiência com outros países das Américas, como Guiana, Haiti e República Dominicana, que ainda enfrentam desafios na eliminação da filariose linfática. “Participamos de encontros organizados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), onde compartilhamos nossas estratégias. Nossa trajetória serve de inspiração para outros países em situações semelhantes”, diz o Dr. Fontes. A certificação da OMS não é apenas uma conquista técnica, mas também um marco na saúde pública brasileira. “Essa vitória reforça a importância de políticas integradas, pesquisa científica e investimento contínuo em saúde. É uma mensagem clara de que, mesmo em cenários desafiadores, é possível alcançar resultados extraordinários”, conclui.

A eliminação da filariose linfática como problema de saúde pública posiciona o Brasil como uma referência global no enfrentamento de doenças tropicais negligenciadas, evidenciando o impacto transformador de um sistema de saúde que prioriza o cuidado universal e a prevenção. Com a certificação, o Brasil passa a integrar um seleto grupo de 20 países e territórios que alcançaram essa conquista. Entre eles estão Malawi, Togo, Egito, Iêmen, Bangladesh, Maldivas, Sri Lanka, Tailândia, Camboja, Ilhas Cook, Quiribati, Laos, Ilhas Marshall, Niue, Palau, Tonga, Vanuatu, Vietnã e Wallis e Futuna. Nas Américas, entretanto, três países ainda enfrentam o desafio de eliminar a doença: República Dominicana, Guiana e Haiti. Para essas regiões, a OMS recomenda a administração em massa de medicamentos como estratégia principal para interromper a transmissão da filariose linfática.

A meta global estabelecida pela OMS é eliminar pelo menos 20 DTN até 2030, incluindo a filariose linfática, reafirmando o compromisso internacional com a saúde pública e a redução das desigualdades sanitárias. O Brasil tem desempenhado um papel de liderança no cumprimento dessas metas, não apenas em relação à filariose linfática, mas também no enfrentamento de outras doenças como tracoma, oncocercose e geohelmintoses. O País já está próximo de alcançar a eliminação de várias dessas condições, impulsionado pelos esforços conjuntos entre o Ministério da Saúde, instituições públicas de saúde e centros de pesquisa, que continuam a gerar resultados positivos e fortalecer a saúde pública nacional.

A busca pela eliminação da oncocercose, causada por outro filarídeo parasita, nas comunidades Yanomami, localizadas na Amazônia, é um exemplo de sucesso, com o Brasil avançando significativamente para eliminar todos os focos dessa doença. Além disso, o País tem investido na eliminação de outras doenças, como a esquistossomose, por meio de programas de tratamento em larga escala. “Alcançamos a eliminação da transmissão da filariose linfática, um feito notável, mas a erradicação total da doença ainda é um objetivo distante. O País continua monitorando cuidadosamente a presença da doença e trabalhando para evitar novos casos, especialmente entre migrantes. O compromisso com políticas de saúde pública, como o SUS, e com a vigilância epidemiológica é fundamental para garantir o sucesso a longo prazo no controle das DTN, alinhando-se com as metas globais da OMS para 2030”, finaliza o Dr. Fontes.

Sobre o Serviço de Referência Nacional em Filarioses

O Serviço de Referência Nacional em Filarioses atende às demandas do Ministério da Saúde, oferecendo atendimento clínico, urológico, ultrassonográfico e laboratorial aos pacientes do Sistema Único de Saúde, para investigação e manejo das filaríases. Acreditado pelo Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA) e submetido à acreditação da Organização Nacional de Acreditação (ONA), o Serviço busca continuamente promover qualidade e segurança nas atividades realizadas. Além disso, o Serviço de Referência Nacional em Filarioses oferece formação de recursos humanos e consultoria para serviços de saúde e instituições de ensino, tanto no Brasil quanto no exterior. Já foi acreditado pela Joint Commission International (JCI), reconhecendo seu cumprimento dos requisitos e padrões internacionais de atenção ao paciente.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**