Doença de Chagas: adaptações genéticas ajudam populações amazônicas a resistir à infecção
Exposição ao patógeno disparou mecanismos de adaptação que, há mais de sete milênios, acabaram por selecionar um gene que confere resistência à doença
10/04/2023Um artigo intitulado “Indigenous people from Amazon show genetic signatures of pathogen-driven selection” publicado recentemente na revista Science Advances, descreve o primeiro exemplo nas Américas de seleção natural influenciada por um patógeno entre seres humanos. Os pesquisadores analisaram os dados genômicos de 118 indivíduos contemporâneos de 19 diferentes populações da Amazônia, a fim de encontrar vestígios de adaptação genética ao ambiente da floresta amazônica. A conclusão foi de que a maioria dos indígenas das etnias Arara, Gavião, Karitiana, Suruí, e outras oito da Amazônia trazem em seus corpos uma característica genética particular que aparentemente os protege da doença de Chagas. de variantes genéticas em genes relacionados à internalização do tripanossoma há milhares de anos, nessas populações também oferece uma explicação adicional para uma questão ainda não compreendida por completo, o fato da doença de Chagas, que afeta mais de 6 milhões de pessoas na América Latina, um terço delas no Brasil, ser menos comum entre os habitantes da Amazônia.
A geneticista e professora associada do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP) e pesquisadora do Instituto de Biologia Evolutiva (IBE) de Barcelona, na Espanha, que liderou o estudo, Dra. Tábita Hünemeier, explica que a pesquisa não procurava especificamente algo relacionado à susceptibilidade à doença de Chagas, mas sabiam que provavelmente poderiam encontrar alguma adaptação às doenças pré-contato (pré-chegada dos Europeus), dada a alta diversidade de patógenos da região. “Nossos resultados mostraram uma série de genes diferenciados nas populações amazônicas, relacionados à resposta a tripanossomas e traços cardiometabólicos. Ao investigarmos melhor a função desses genes, vimos que três deles estavam envolvidos, com evidência em estudos de associação genética, à doença de Chagas. Somando este achado a análises funcionais e epidemiológicas, elucidamos que um dos genes, o Protein Phosphatase 3 Catalytic Subunit Alpha (PPP3CA), conferia um menor risco de infecção quando mutado, e era altamente frequente nas populações amazônicas”, complementa a pesquisadora.
Ainda de acordo com a Dra. Hünemeier, esse é o primeiro exemplo de uma seleção guiada por patógenos em populações americanas. Na África e Europa existem paralelos com a malária e peste negra, respectivamente. Apoiada em estudos anteriores com amostras de 9 mil anos, a pesquisa conclui que as epidemias teriam selecionado positivamente os indivíduos com maior resistência a doenças tropicais, como a doença de Chagas, gerando uma resistência única nessa população. Estudos anteriores sugeriam que o gene PPP3CA poderia contribuir de alguma forma para a entrada do T. cruzi nas células.
Questionada por que a prevalência da doença de Chagas é tão baixa entre populações indígenas da Amazônia, a professora esclarece que o trabalho mostra o perfil genético das populações indígenas da Amazônia como um dos fatores importantes, apesar de possivelmente existirem várias respostas a esta pergunta. “Demonstramos uma provável epidemia de doença de Chagas no passado que favoreceu a sobrevivência de indivíduos com um perfil genético do gene PPP3CA distinto. Estes indivíduos, por terem menor risco de infecção e maior possibilidade de sobrevivência, tiveram mais descendentes, e com isso a frequência desse perfil diferenciado aumentou na população amazônica. Nosso estudo, por meio de diversos experimentos genômicos e funcionais, mostra que uma das causas prováveis é a presença de variantes genéticas em alta frequência, em genes relacionados à internalização do tripanossoma, em populações amazônicas. Neste sentido, o fator genético passa a ser considerado no contexto epidemiológico”, destaca a geneticista. Hoje, cerca de 85% dos indígenas amazônicos apresentam este perfil genético mais resistente à infecção por T. cruzi.
A pesquisa encontrou ainda adaptações genéticas associadas a características comportamentais de busca de novidades, uma característica genética que determina a busca por novas experiências. Ainda de acordo com o estudo, essa característica pode ter sido crucial para o estilo de vida caçador-coletor das populações amazônicas no passado, pois permitia que explorassem novos territórios e buscassem recursos. O estudo também detectou características cardiovasculares e metabólicas condizentes com a predominância genética observada em pesquisas anteriores, uma vez que já havia sido detectado 66% de obesidade, diabetes e doenças coronarianas em algumas populações amazônicas.
A Dra. Hünemeier ressalta que a descoberta de genes associados a doenças infecciosas é sempre um passo importante no avanço terapêutico. “Ao ligar o risco de infecção com uma variante genética, passamos a considerar o fator genético na predisposição ou risco a certas doenças. Entender como o parasita entra nas células, e como a carga de patógenos é diferente em diferentes perfil genéticos, pode nos levar a terapias que mimetizem este processo fisiológico, por exemplo”, detalha. A próxima etapa é testar funcionalmente os demais genes evidenciados sob seleção natural, e relacionados à infecção por T. cruzi, e a partir disso, buscar entender como eles interagem entre si e qual o papel dessa interação na infecção.
Por fim, a pesquisadora enfatiza a importância desta pesquisa ao demonstrar um fator genético na susceptibilidade à infecção pelo T. cruzi. Adicionalmente, a pesquisa ganha grande relevância por ter sido realizada em populações habitualmente negligenciadas em estudos médicos e genéticos, evidenciando uma relação dessas pessoas com uma enfermidade também negligenciada, como a doença de Chagas.
Dia Mundial da Doença de Chagas
O dia 14 de abri tem como objetivo aumentar a conscientização sobre essa silenciosa doença tropical, que causa cerca de 30 mil novas infecções a cada ano. A data foi comemorada pela primeira vez em 2020, após a aprovação e endosso recebido pela Assembleia Mundial da Saúde na Organização Mundial da Saúde (OMS), em maio de 2019. A SBMT reconhece a necessidade de mais visibilidade à doença de Chagas, que permanece um desafio para a saúde pública em escala global, e deseja que os esforços mundiais para conscientização de todos sobre a importância de melhorar a detecção precoce, ampliar a cobertura diagnóstica e o acesso equitativo à atenção clínica sejam intensificados.
Estima-se que até 30% dos pacientes com doença crônica possam desenvolver complicações a longo prazo, que podem ter consequências irreversíveis e crônicas para o sistema digestivo e para o coração. No entanto, se detectada precocemente, a doença pode ser curada ou seu curso clínico melhorado. Na fase crônica, o tratamento pode frear ou deter sua progressão. Com o objetivo de eliminar a doença de Chagas como problema de saúde pública, a OMS propõe interromper, até 2030, quatro formas de transmissão do T. cruzi: através de vetores, transfusão de sangue, transplante de órgãos e congênita.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**