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Chagas congênita: uma luta silenciosa na saúde materno-infantil

A doença enfrenta desafios persistentes, como falta de conscientização pública, dificuldades no diagnóstico precoce e acesso limitado ao tratamento em algumas regiões afetadas

09/10/2023

O diagnóstico precoce é fundamental para o tratamento eficaz. Testes de detecção da infecção podem ser realizados em bebês nascidos de mães em risco de infecção por T. cruzi

A doença de Chagas congênita ocorre quando uma mãe infectada transmite o parasito T. cruzi para o bebê durante a gravidez ou no momento do parto. O risco de transmissão congênita é uma ameaça silenciosa, já que muitas mães podem não apresentar sintomas evidentes da doença. Bebês nascidos com a doença podem não manifestar sintomas imediatamente, mas a infecção pode progredir para uma forma mais grave com o tempo. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), existem 1,12 milhão de mulheres em idade fértil infectadas pelo protozoário na América Latina, onde são esperados anualmente entre 8 mil e 15 mil bebês nascidos com a doença.

A doença de Chagas congênita enfrenta desafios persistentes, como a falta de conscientização pública, dificuldades no diagnóstico precoce e o acesso limitado ao tratamento em algumas regiões afetadas. A Dra. Achilea Bittencourt, médica patologista e professora emérita da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pontua a necessidade de divulgar a importância do problema, que está muito esquecido. Segundo ela, também é fundamental que se faça reação sorológica para doença de Chagas nas pacientes provenientes de zonas endêmicas, nos exames de pré-natal e por ocasião do parto nas gestantes que não fizeram pré-natal. “O diagnóstico das crianças no período neonatal é problemático porque depende da presença de técnico treinado para realizar o teste parasitológico e de um laboratório em condições de fazer o teste de PCR para detecção do T.cruzi. A sorologia para doença de Chagas (pesquisa de anticorpos IGG) somente tem valor após o 8º mês de vida, devido à passagem de anticorpos maternos para a criança”, explica. Outro desafio assinalado pela pesquisadora consiste nas dificuldades de acompanhamento dessas crianças, tanto as infectadas, para o tratamento, como para confirmação do diagnóstico ou da suspeita diagnóstica. “Muitas vezes, as mães não colaboram ou não têm condições de colaborar”, lamenta.

A infecção congênita pelo T. cruzi pode ter sérias implicações para a saúde das crianças afetadas. Os sintomas podem variar de leves a graves e incluem febre, fadiga, irritabilidade e problemas gastrointestinais. A falta de tratamento adequado pode resultar na evolução da doença para sua forma crônica, causando complicações cardíacas e digestivas que podem se manifestar anos após o nascimento. Em relação às consequências a longo prazo, a médica enfatiza que dependem do grau de comprometimento ao nascer. “Mesmo as crianças que nascem assintomáticas, sem nenhuma alteração ao exame clínico, podem, no futuro, se não tratadas, desenvolver os mesmos problemas que os casos não congênitos”, diz, ao acrescentar que existe tratamento, sendo ele muito mais eficaz quando feito no primeiro ano de vida. Por isso, segundo a Dra. Bittencourt, é importante o diagnóstico precoce. Pacientes em tratamento devem ser devidamente acompanhados para avaliar a resposta terapêutica ou identificar reações colaterais.

Obstáculos na luta contra a doença de Chagas congênita

Estima-se que apenas 10% dos casos de doença de Chagas no Brasil são diagnosticados e menos de 1% são tratados. Somente na América Latina, a estimativa é de nascerem 9 mil bebês infectados a cada ano, sendo que 97% dos casos não são notificados. Apesar de estar em constante ascensão, a doença de Chagas congênita continua negligenciada. “A doença ficou negligenciada inclusive no meio médico. Com a acentuada redução da transmissão vetorial, não houve mais preocupação com a transmissão vertical, que é responsável pela transmissão da doença em áreas consideradas endêmicas e não endêmicas”, lembra a Dra. Bittencourt. A prevenção é feita tratando as mulheres infectadas em idade fértil, como está sendo realizado na cidade de Murcia, na Espanha, e na Argentina, em Santa Fé. Nessas cidades foi observado que mulheres já tratadas com drogas tripanomicidas não transmitem a infecção para o concepto.

Na opinião da Dra. Bittencourt, a superação dos obstáculos na luta contra a doença de Chagas congênita passa pela implementação de políticas de saúde. Contudo, ela reconhece que, apesar da doença ter ficado muito tempo esquecida após a erradicação da transmissão vetorial, recentemente, estão sendo elaborados projetos de Saúde Pública no sentido de reduzir a sua propagação, entre eles, o projeto Comunidades Unidas para Inovação, desenvolvimento e atenção à doença de Chagas (CUIDA), que será implementado em mais de 30 municípios de quatro países: Bolívia, Brasil, Colômbia e Paraguai, coordenado pela Dra. Andréa Silvestre, FIOCRUZ-RIO. No Brasil serão contemplados cinco estados das macrorregiões brasileiras (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).

O IntegraChagas é outro exemplo de projeto de adoção de políticas públicas. Ele propõe ações de diagnóstico, tratamento e cuidado para a população com doença de Chagas em quatro municípios de quatro regiões geográficas do Brasil. A transmissão vertical também será considerada nas mães positivas e os possíveis casos congênitos serão encaminhados para confirmação do diagnóstico e tratamento. Um braço deste projeto é o IntegraChagas, na Amazônia. Este estudo Piloto é coordenado pela Dra. Ângela Cristina Veríssimo Junqueira, da FIOCRUZ-Rio, e vai acontecer no município de Abaetetuba, no Pará, local onde ocorre o maior número de notificações de casos agudos da doença de Chagas na Amazônia, geralmente a partir da transmissão oral.

Além desses, mais dois projetos estão sendo iniciados na Bahia. O primeiro consiste na Pesquisa translacional em doença de Chagas no município de Irecê, que vai proceder ao diagnóstico e tratamento da doença de Chagas na população em geral e incluirá, também, estudo da transmissão vertical para controle e tratamento dos bebês infectados. A coordenação deste projeto é do Dr. Mitermeyer Galvão dos Reis, FIOCRUZ-BA e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT). O segundo é o projeto Oxente Chagas Bahia, a ser implementado nos Municípios de Tremedal e Novo Horizonte, que terá os mesmos objetivos e incluirá também o estudo da transmissão vertical utilizando, inicialmente, o teste rápido da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Este projeto é coordenado pelo Dr. Fred Luciano Neves, FIOCRUZ-BA.

“O esclarecimento sobre a doença nas escolas públicas e nos meios de comunicação é fundamental. Os projetos sobre doença de Chagas, sem dúvida, estão fazendo a adequada divulgação do tema. Com esses projetos em andamento voltaremos a ter esperança de controle e prevenção, pois são bem desenhados e orientados por profissionais competentes. No entanto, requerem muito esforço e espero que tenham custeio suficiente e duradouro para que possam ser devidamente implementados”, conclui a Dra. Bittencourt. Por outro lado, ela admite que nem todas as áreas poderão ser investigadas inicialmente. “Cumpre também aos obstetras e neonatologistas cooperar com o controle da doença de Chagas congênita. Hoje em dia, a disponibilidade de um teste rápido nacional e o PCR para o T.cruzi, ajuda muito na seleção prévia das mães e na suspeita diagnóstica precoce do recém-nascido”, complementa.

Por fim, a pesquisadora destaca a importância de que, no pré-natal, seja incluída a sorologia para doença de Chagas nas mães suspeitas de terem a doença – que estiveram em zonas endêmicas ou crianças cujas mães têm essa história. Já para as mães soropositivas, o neonatologista deve ser informado, para que tome as medidas necessárias com a criança. A doença de Chagas congênita é uma ameaça significativa à saúde infantil em regiões endêmicas e não-endêmicas. A conscientização pública, o diagnóstico precoce, o tratamento eficaz e o controle de vetores desempenham papéis fundamentais na prevenção e no alívio desse problema de saúde. Com esforços contínuos, é possível prevenir e tratar, proporcionando uma vida mais saudável às crianças afetadas e suas famílias. A colaboração entre profissionais de saúde, pesquisadores e autoridades de saúde também é fundamental para superar os obstáculos e reduzir o impacto da doença.

Confira o vídeo educativo sobre a transmissão congênita da doença de Chagas: https://www.youtube.com/watch?v=HL9_fehN6_0

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**