Chikungunya: estudo revela como vírus leva à morte
Achados reforçam a necessidade de atualização dos protocolos de tratamento e vigilância
03/04/2024Crédito da imagem: acervo dos pesquisadores
Uma investigação liderada por especialistas em virologia, medicina, epidemiologia, física e estatística revelou novos insights sobre a ação letal do vírus chikungunya (CHIKV) no organismo humano. Publicado na renomada revista Cell Host & Microbe, o estudo intitulado “Pathophysiology of chikungunya virus infection associated with fatal outcomes” revela os mecanismos de infecção do sistema nervoso central em casos fatais da doença, reforçando a necessidade de atualização dos protocolos de tratamento e vigilância. Transmitido pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, o vírus foi responsável por mais de 900 mortes no Brasil entre 2015 e 2023. O CHIKV é capaz de se espalhar pelo sangue, atingir múltiplos órgãos e atravessar a barreira hematoencefálica, que protege o sistema nervoso central. Com mais de 10 milhões de casos registrados em cerca de 125 países nos últimos 20 anos, incluindo 2 milhões somente no Brasil, onde é endêmico há mais de uma década, a doença ainda é erroneamente considerada como menos mortal do que a dengue.
O estudo analisou meticulosamente dados de 32 pacientes falecidos, empregando uma variedade de técnicas laboratoriais avançadas, como histopatologia, quantificação de citocinas, metabolômica, proteômica e análises genômicas virais. A pesquisa mostrou a presença do CHIKV no líquido cefalorraquidiano e no cérebro, indicando sua capacidade de ultrapassar a barreira hematoencefálica, uma proteção natural do sistema nervoso central contra patógenos. Os pesquisadores identificaram dois mecanismos pelos quais o vírus invade o sistema nervoso central: primeiro, infectando monócitos CD14+CD16+ e migrando através da barreira hematoencefálica na presença de altos níveis de CCL-2, uma proteína reguladora de inflamação; segundo, afetando proteínas cruciais na integridade das células epiteliais da barreira hematoencefálica. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. William Marciel de Souza, professor na University of Kentucky e primeiro autor do estudo.
Confira a entrevista na íntegra.
SBMT: Os resultados do estudo revelaram novos mecanismos pelos quais o vírus invade o sistema nervoso central. Como essas descobertas podem influenciar os protocolos de tratamento para pacientes com infecção?
Dr. William Marciel de Souza: O estudo revelou mecanismos biológicos de como o vírus chikungunya pode invadir o sistema nervoso central, e também causar morte, e isso pode influenciar significativamente o manejo clínico. Primeiro, os achados podem auxiliar profissionais de saúde na compreensão de que a chikungunya, além de uma doença debilitante, também pode ser fatal com uma estimativa de 1 morte a cada 1.000 casos. Segundo, o estudo fornece informações importantes para o desenvolvimento de melhores tratamentos, especialmente para casos graves. Por exemplo, identificamos potenciais biomarcadores, que poderão auxiliar no diagnóstico precoce e na diferenciação entre casos graves e leves. Também, descrevemos características biológicas que distinguem os casos graves dos leves, como a inflamação descontrolada e alterações hemodinâmicas, abrindo caminho para o desenvolvimento de terapias mais direcionadas. Em resumo, acreditamos que os resultados abram caminho para uma série de estudos que visam o entendimento da doença e o desenvolvimento de estratégias de tratamento para a chikungunya, com potencial para reduzir a mortalidade e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
SBMT: Uma das descobertas significativas foi a presença do CHIKV no líquido cefalorraquidiano, indicando sua capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica. Como isso pode impactar o desenvolvimento de terapias direcionadas para evitar danos neurológicos em pacientes infectados?
Dr. William Marciel de Souza: O estudo demonstra que o vírus chikungunya pode invadir o sistema nervoso central em casos fatais, comprovado pela detecção do vírus no líquido cefalorraquidiano e no cérebro de pacientes. Em seguida, demostramos como este fenômeno ocorre usando experimentos in vitro. Essa descoberta contribui para a melhor compreensão da chikungunya, revelando que, além de causar dor nas articulações, o vírus pode apresentar outras manifestações, incluindo danos neurológicas. Entretanto, mais estudos são necessários para determinar a frequência da neuroinvasão em casos fatais e não fatais da doença, bem como desenvolvimento de terapias ou procedimentos para mitigar os danos causando por esta infecção no sistema nervoso central.
SBMT: Além dos sintomas mais conhecidos da chikungunya, como febre e dores articulares, o estudo destacou danos neurológicos associados à infecção. Quais as implicações clínicas desses danos e como os profissionais de saúde podem identificá-los precocemente?
Dr. William Marciel de Souza: Os danos neurológicos foram observados através de análises histopatológicas de tecidos de órgãos dos pacientes que foram a óbito. Além da presença do vírus chikungunya, também observamos congestão (acúmulo anormal de líquido), bem como infiltração de células de defesa, e despolarização anóxica, que é a ausência de oxigênio no cérebro. Mas, também observamos a presença do vírus e congestão em outros órgãos analisados, como fígado, baço, coração e rins. Mostrando que a infecção fatal por chikungunya ocorrem de maneira sistêmica. Desta forma, profissionais de saúde devem estar atentos à possibilidade de manifestações graves em pacientes, a fim de minimizar complicações.
SBMT: No estudo foram observadas alterações na cascata de coagulação sanguínea e danos hemodinâmicos nos órgãos dos pacientes infectados. Como essas descobertas podem contribuir para um melhor entendimento das complicações sistêmicas da doença?
Dr. William Marciel de Souza: A análise de proteínas e metabolitos do soro de pacientes com chikungunya que foram a óbito revelou alterações em diversas proteínas relacionadas à coagulação sanguínea e ao controle hemodinâmico. Isso fornece importante pistas para entender o acúmulo anormal de líquidos em múltiplos órgãos que foi observado durante a autópsia. No entanto, os mecanismos moleculares por trás desse processo precisam ser melhor explorados em novos estudos.
SBMT: Diante da ausência de programas de imunização contra o vírus, quais as principais recomendações o senhor destacaria para as equipes de saúde pública no enfrentamento da doença, com base nos achados do estudo?
Dr. William Marciel de Souza: A recente aprovação da primeira vacina contra chikungunya nos EUA é uma ótima notícia e um passo importante para a erradicação da doença. No entanto, como a vacinação em larga escala ainda não é realidade em países endêmicos, como o Brasil, as epidemias de chikungunya provavelmente continuarão a ocorrer. Neste contexto, o controle do vetor, com a participação da população e das equipes de saúde pública, é a principal estratégia para conter a doença. Além disso, a compreensão dos mecanismos biológicos da doença, como demonstrada neste estudo, também contribui para o desenvolvimento de tratamentos eficazes, biomarcadores prognósticos e melhores estratégias de manejo clínico.
SBMT: Gostaria de acrescentar algo?
Dr. William Marciel de Souza: É importante ressaltar, que o risco de morte por chikungunya provavelmente varia entre países e depende de diversos fatores, como a qualidade da vigilância e do sistema de saúde, a presença de comorbidades como hipertensão, diabetes e obesidade, e a idade, com neonatos e pessoas acima de 65 anos sendo provavelmente mais suscetíveis. Além disso, estimar o impacto da doença é desafiador devido recursos limitados, e co-ocorrência de outras arboviroses com sintomas semelhantes, como dengue. Consequentemente, isso pode levar a subnotificação de casos e óbitos por chikungunya. Deste modo, a chikungunya deve ser considerada como uma possível causa de morte em países endêmicos a ser investigada. Além disso, elucidar outros mecanismos (por exemplo, cascata de coagulação) e validação dos biomarcadores associados ao envolvimento neurológico podem contribuir para o tratamento. Por fim, a recente vacina contra chikungunya, aparentemente eficaz contra diferentes linhagens do vírus, abre a possibilidade de eliminar a doença através de programas de imunização em larga escala em países endêmicos como o Brasil.
Mais informações: https://desouzalab.com/
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**