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Ciência em xeque: ataques à evidência científica buscam destruir a confiança nas instituições

A ciência também é vítima de informações falsas divulgadas como se fossem notícias verdadeiras

09/05/2020
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Negar a ciência que, em última instância, é a fronteira final de defesa dos cidadãos socialmente vulneráveis, é aceitar o caos

Ironicamente, em plena era da informação não faltam teorias conspiratórias espalhadas e amplificadas pelas redes sociais e a desconfiança e o desprezo pelo pensamento científico são cada vez mais comuns. A proliferação de teorias e o negacionismo a temas como a eficiência das vacinas, a origem do HIV, a forma da Terra, a evolução das espécies e mudanças climáticas são exemplos de como, em alguns grupos, as crenças e convicções pessoais passam a ter mais importância que as evidências apresentadas pelos cientistas. Os recentes ataques à ciência que estamos vivendo tentam colocá-la em xeque e ela, quase que diariamente, acaba vítima das fake news. É bem verdade que informações falsas sempre existiram, mas com a internet, elas passaram a ser compartilhadas em uma velocidade, ritmo e escala nunca antes visto. Em Atenas, Sócrates morreu por sua crença na verdade. Nos séculos medievais, Galileu foi reprimido. Na atualidade, muitos cientistas, intelectuais, políticos, lamentam as movimentações que rejeitam a evidência científica. Então, como é possível fazer com que os cidadãos tenham confiança na ciência? A validação do conhecimento se mostra fundamental para criar soluções eficazes frente aos novos desafios que se apresentam, e com compromisso ético.

O professor Dr. Henry Burnett, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ressalta que a oposição ciência X anticiência a rigor é falsa, pois se fundamenta sobre um princípio de ignorância que pode ter duas fontes: a ignorância no sentido de desconhecimento, baixo letramento, e a ignorância no sentido grosseiro de autoritarismo. “A diferença é sutil, mas determinante. Negar a ciência porque se desconhece seus fundamentos é uma coisa, negar a ciência para impor um regime de exceção é outra muito distinta”, a primeira é um problema educacional, a segunda um problema ético, destaca, e complementa que não se trata da conhecida oposição entre Ciência e Religião, de outra ordem, onde a segunda “dispensa experimentos, pois está baseada na fé”. Ainda de acordo com ele, esse movimento se deve ao quadro institucional no qual estamos inseridos. “A vergonha internacional não é apenas termos eleito democraticamente um político inexpressivo, mas porque essa aparente insignificância do indivíduo Bolsonaro pode nos levar a um quadro irreversível de retrocesso, que pode lançar o Brasil em mais um longo período de violência institucionalizada, como de resto já estamos vivenciando, sobretudo contra os negros, os índios e os pobres, mas tudo pode sempre piorar”, assinala. Para o Dr. Burnett, negar a ciência que, em última instância, é a fronteira final de defesa dos cidadãos socialmente vulneráveis, é aceitar o caos.

Em relação aos movimentos que rejeitam a evidência científica, o professor do departamento de sociologia e antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com graduação em Física pela Università degli Studi La Sapienza, Roma, Itália, e mestrado em Comunicação da Ciência pela International School for Advanced Studies, Trieste, Itália, Dr. Yurij Castelfranchi, é categórico ao dizer que o movimento anticiência não existe. Ele explica que as manifestações “anticiência” não são questionamentos científicos propriamente ditos, mas uma clara investida no sentido de desconstruir discursivamente a credibilidade científica com o objetivo de defender posições econômicas, políticas ou até religiosas próprias. Assim, qualquer tentativa de trazer ao debate o método científico nesta discussão é inócua. “Grupos que não aceitam determinadas evidências, dados, fatos científicos ou teorias, são grupos que rejeitam, na sua grande maioria, as evidências científicas, ou seja, não é um movimento único e coerente que rejeita a ciência como um todo, ao contrário, ela, em geral, é bastante reconhecida até no interior desses grupos. De acordo com o professor, o grande problema são os grupos organizados que fazem ações para criar desconfiança na ciência, o que diminui o consenso científico e constrói controvérsia onde ela não existe.

Doutor em Lógica & Filosofia da Ciência, autor de cinco livros, o Professor do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o Dr. Gustavo Andrés Caponi, admite que atacar a ciência trata-se, é claro, de algo muito lamentável e perigoso. Em sua opinião, as manifestações mais cruas do irracionalismo contemporâneo estão motorizadas por uma radicalização do pensamento conservador e pelo crescimento do fundamentalismo religioso. Em particular: o neo-pentecostal. “No Brasil, dada a fraqueza do laicismo e dado o forte arraigo da religião na cultura, esse ataque à ciência vai continuar incomodando”, justifica. O Dr. Burnett concorda e acrescenta que podemos esperar o pior. Para ele, ao mesmo tempo em que estamos diante de um quadro ridículo, como a ‘tese’ sobre a Terra redonda, não podemos rir, pois o negacionismo tem antecedentes na história recente da Europa, e as consequências são fartamente conhecidas. “Desconsiderar o movimento retrógrado que atinge as Universidades, o sistema jurídico, a distribuição de renda, o reconhecimento dos excluídos, é abrir caminho para seu estabelecimento como princípio organizador de nossa vida política”, explica o professor Burnett.

Irrelevantes anteriormente, grupos ganham força

Tem sido crescente a presença desses grupos entre lideranças em diversos países. São pessoas que prezam por uma política que não é baseada em evidências científicas. Não se trata de um movimento homogêneo, mas de uma relação complexa de intensas disputas pela informação, na qual a ciência tem sido um dos alvos principais de ataques. Então faz todo o sentido questionar de onde vem, por que esses grupos irrelevantes anteriormente acabaram adquirindo tanta força a ponto de afetar políticas públicas e a saúde pública, como no caso dos grupos antivacinas e negacionistas climáticos. Por que essas instâncias, contra a aceitação de determinadas evidências científicas, estão ficando cada vez mais fortes, embora, não sejam agregadas em uma ideia mais geral de irracionalidade generalizada. Temos grupos organizados tão perigosos que atacam a evidência científica e como consequência ameaçam bases importantes da Democracia, das políticas públicas, da segurança sanitária, entre outras. E quando os resultados científicos não apoiam seus interesses, colocam a ciência em descrédito.

A força desses grupos organizados não vem da ignorância das pessoas, da irracionalidade, ela não é a causa, ela é o objetivo, o produto, o efeito. Não é a ignorância que gera o ódio contra a ciência, ao contrário, são os movimentos organizados que criam o dissenso, que atacam o convívio social. Esse é o efeito desejado. Eles constroem a ignorância. “A força desses grupos não vem do analfabetismo científico, da falta de educação, pelo contrário, visto que esses grupos podem ser muito fortes em países aonde a alfabetização científica é maior. A falta de informação ou a falta de conhecimento não é a causa principal, é um dos efeitos”, reforça o Dr. Castelfranchi. De onde vem? Principalmente de uma crise mais ampla, que não se trata da confiança do público em relação à ciência, mas uma crise no funcionamento dos pilares do convívio social democrático. A crise vem de um ataque à democracia.

Esses grupos são organizados e articulados e sabem que uma importante tática para enfraquecer a democracia é criar dúvida, inventar controvérsia. E qual objetivo? Grupos de neopopulismo digital, por exemplo, desejam criar sentimento de desconfiança generalizada, quer seja por interesses políticos ou econômicos. A finalidade é o enfraquecimento do tecido da sociedade civil, da esfera pública, da qualidade do debate, enfraquecer a força das bases comuns do convívio civil democrático, atacar os pilares da Democracia. Os ataques principais desses grupos se dão pela quebra de confiança das pessoas na política, na possibilidade de fazer política democraticamente, portanto, nas instituições da Democracia. Eles atacam principalmente os políticos para criar ódio e desconfiança e a seguir atacam os demais pilares de uma democracia, como por exemplo, o judiciário e depois a ciência – quando a evidência científica se coloca como uma maneira imparcial, objetiva, de tomada de decisões. E, finalmente o jornalismo. Ciência e mídia são os pilares do convívio civil que acredita na possibilidade do conhecimento comum de algo que não é polarizado.

Alguns líderes que negam o conhecimento científico e propagam teorias da conspiração globais, estão colaborando para o avanço da insensatez e da desinformação. E não é só a falta de informação que está em jogo, são crenças e valores que entram em conflito com determinado aspecto, teoria, evidência ou área da ciência, porque a evidência científica os obrigaria a abrir mão de seus valores e escolhas políticas. O Dr. Castelfranchi atenta para as fake news e a urgência no investimento em estudos sobre elas e disputas sobre a informação, sobretudo a científica. Para ele, não é a alfabetização que nos torna imune a uma fake news se compartilhamos o que gostamos e queremos acreditar. Em sua opinião, plataformas de fake check ou The Bank são necessários, mas não suficientes. “As pessoas só vão acessar ou conferir conteúdos vindos do ‘inimigo’, mas quando a notícia, fato, ou boato conforta nossa própria posição moral-política certamente não iremos verificar”, explicita ao reforçar que sites de checagem são indispensável, mas não são suficientes.

Como agir diante do ataque à ciência

Segundo o Dr. Burnett, não parece que estamos diante de um problema político simplesmente, de uma oposição entre direita e esquerda, estamos diante de um retrocesso sem paralelo na história do Brasil, um movimento que, por exemplo, pode vir a abolir o jogo político e o que vai acontecer daqui por diante depende da capacidade de coesão entre vertentes ideológicas antagônicas. Para ele, muito das pequenas conquistas que alcançamos depois da redemocratização já foram destruídas, mas, em sua visão, a sociedade ainda tem as condições necessárias para reagir. “Entretanto, a elite brasileira é uma das mais desconectadas com os problemas sociais do País; olha simplesmente para seus privilégios adquiridos, como se nada mais houvesse”, lamenta ao realçar que não vê como a elite e os cientistas poderiam equacionar suas necessidades e responsabilidades de modo harmônico. Eis o grande nó do nosso presente. O professor é enfático ao concluir que infelizmente não se trata somente de um movimento externo, que também assola outros países. “Estamos diante de um problema nosso, ou seja, o Brasil precisa enfrentar uma de suas mais complexas características, que não tem a ver simplesmente com uma educação pública deficiente, mas com a herança perene do escravismo. O clamor de parcela significativa da sociedade pelo fim da democracia é uma chaga de um país à deriva”, reconhece. Já para o professor Caponi, a melhor forma de lidar com essa onda seria defender o laicismo, a outra seria melhorar a educação científica em todas suas formas.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**