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Cientistas infectam mulheres com Zika vírus para desenvolver tratamentos e vacinas

Enquanto do ponto de vista ético o estudo traz riscos ao infectar deliberadamente as mulheres, do ponto de vista científico pode trazer benefícios

09/11/2023

As notificações de casos de Zika cresceram no Brasil. De janeiro até 8 de julho deste ano, foram registrados 8.499 casos, um aumento de quase 44% em relação ao mesmo período de 2022

Investigadores nos Estados Unidos infectaram pela primeira vez, deliberadamente, pessoas com cepas do Zika vírus (ZIKV) em um estudo cujo propósito foi ajudar a melhorar a compreensão sobre a doença e acelerar os esforços para desenvolver tratamentos e vacinas. Os resultados foram apresentados na reunião anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene (ASTMH), realizada em Chicago, entre os dias 18 a 22 de outubro, e publicados na revista Nature. Neste estudo, os pesquisadores, liderados pela Dra. Anna Durbin, professora da Universidade Johns Hopkins, recrutaram 28 voluntárias para analisar se poderiam ser infectadas com segurança por uma das duas cepas diferentes do vírus. Dentre as voluntárias, oito receberam placebo e, das 20 que de fato foram infectadas, 10 para cada cepa, todas desenvolveram infecções confirmadas por exames, mas apresentaram apenas sintomas leves.

Também chamados de “teste de desafio humano” ou estudo controlado de modelo de infecção humana, esses tipos de estudos, apesar de necessários, são cercado de controvérsias: do ponto de vista ético, trazem riscos ao infectar deliberadamente as mulheres; do ponto de vista científico, podem trazer benefícios ao abrirem portas para os pesquisadores investigarem a resposta do sistema imunológico quando exposto a um determinado agente patogênico e facilitarem testes para novos tratamentos e desenvolvimento de vacinas para aplicação em larga escala.

O Dr. Rafael Franca, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-SP), explica que, do ponto de vista ético, existe o risco de infectar deliberadamente as pessoas; mas do ponto de vista científico, se trouxer benefícios, se tiver todas as certificações e aprovações do Comitê de Ética, o estudo pode seguir adiante. “É controverso porque a pessoa, ao ser exposta deliberadamente a um patógeno, terá mais ou menos complicações, dependendo da resposta à infecção e do tipo e gravidade dela. Quando é uma infecção tratável, uma parasitose, por exemplo, onde existe tratamento licenciado, droga validada, o risco é menor, visto que,  se algo sair errado, há tratamento. Mas, no caso de patógenos onde não tem tratamento aprovado, isso é mais complexo, pois se a pessoa desenvolver sintomas graves, não há muitas opções, nem tratamento específico”, observa.

As regras contratuais para este tipo de estudo variam muito, e cada país tem a sua própria regulação. Por exemplo, nos Estados Unidos, os participantes podem ser pagos. No Brasil isso não é permitido. “A regulamentação do Comitê de Ética diz que os benefícios do estudo devem se sobrepor ao risco. Do ponto de vista ético, isso é muito subjetivo e cada projeto é avaliado e julgado dentro daquilo que é apresentado pelo pesquisador. Não existe nada na legislação brasileira que proíba esse tipo de estudo e a única determinação do Comitê é que os riscos têm que ser vencidos pelos benefícios que o estudo traz. Cada projeto vai ser avaliado dentro dos critérios em que ele foi desenvolvido”, detalha o Dr. Franca. No caso desta pesquisa com o Zika Vírus, os órgãos reguladores norte-americanos e a Organização Mundial de Saúde (OMS) entenderam que o novo modelo era seguro e cientificamente importante.

Mas será que existe um equilíbrio entre a busca do avanço científico e a proteção dos direitos e bem-estar dos participantes em estudos de desafio com humanos? Para o Dr. Franca, o equilíbrio está dentro da apresentação do projeto de pesquisa. “Participar do projeto traz um risco, mas também pode garantir um novo tratamento, uma melhoria, um avanço. As pessoas participam de forma voluntária, ninguém é obrigado, os participantes não recebem pagamento para isso. Todos os riscos são informados, todos têm direito à assistência médica e podem se retirar do estudo a qualquer momento”, destaca. Apesar da controvérsia, o Dr. Franca considera o estudo realizado um ganho científico. Segundo ele, com modelos de infecção humana controlada é possível avançar no desenvolvimento de vacinas, terapias e tratamentos de maneira muito mais rápida e barata, já que não há necessidade de usar estudos de fase de triagem clínica com muitos participantes. “O número é reduzido porque todos os eventos são controlados e isso barateia o custo do estudo e encurta o tempo. Efetivamente, o objetivo de validar a terapia ou a vacina é muito mais rápido”, assinala.

Nova epidemia de Zika é uma questão de tempo

Para o Dr. Franca, uma nova epidemia de Zika é totalmente possível, uma vez que o vírus não desapareceu. “Apesar de estar circulando em menor quantidade, provavelmente devido à exposição inicial nos primeiros anos da epidemia, a qual gerou anticorpos protetores e também por ser vírus pouco mutante do ponto de vista de evolução viral – ou seja, o vírus se mantém estável ao longo do tempo –, as pessoas, inevitavelmente, estão expostas ao vetor (Aedes aegypti). Ou seja, quando se tem uma população suscetível e um vírus que circula com a presença do vetor em áreas endêmicas, há sim o risco do surgimento de novas epidemias. Não há como prever quando e quão grande seriam, mas, sim, existe o risco de novas epidemias de zika”, conclui.

Enquanto isso, as notificações de Zika crescem. Em 2023, do início do ano até 8 de julho, foram registrados 8.499 casos. Um aumento de quase 44% em relação ao mesmo período do ano passado (5.910). O Sudeste lidera o ranking entre as regiões, com um aumento de 1.633% nos casos. O Nordeste vem em segundo lugar (2.937), mas os casos caíram 40%. Em 2022, o Brasil registrou 9 mil casos prováveis, sendo 591 em gestantes, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Em comparação a 2021, houve um aumento de 42% no número de casos da doença. Os estados que mais registraram casos prováveis em gestantes foram Rio Grande do Norte (210), Bahia (53), Paraíba (53), Alagoas (48) e Pernambuco (43), concentrando 68,9% dos casos do País.

Entre 2015 e 2016, o Brasil enfrentou um dos maiores surtos da doença, com um aumento expressivo no número de recém-nascidos diagnosticados com microcefalia (malformação do cérebro), principal consequência da infecção em gestantes. Segundo o Ministério da Saúde (MS), foram quase 2 mil casos confirmados de bebês com síndrome congênita associada à infecção pelo vírus. Antes da epidemia, a média de casos era 9 por ano.

Revelado mecanismo por trás de microcefalia em bebês de gestantes infectadas

Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) identificaram o mecanismo por trás do desenvolvimento do quadro de microcefalia em bebês cujas mães foram infectadas pelo ZIKV durante a gestação. De acordo com o estudo “Assessing the role of Ndel1 oligopeptidase activity in congenital Zika syndrome: Potential predictor of congenital syndrome endophenotype and treatment response“, publicado no Journal of Neurochemistry, em junho, as fêmeas de camundongos infectadas pelo vírus durante a gestação e que desenvolveram microcefalia apresentam menor atividade da enzima chamada Ndel1 – importante para processos de proliferação, diferenciação e migração dos neurônios durante o desenvolvimento embrionário. A descoberta pode, no futuro, servir de base para o desenvolvimento de um biomarcador para o diagnóstico precoce de microcefalia em bebês infectados no período embrionário.

Identificadas moléculas que podem ser usadas em teste específico para Zika

Um estudo conduzido pelo Instituto Butantan, Instituto Adolfo Lutz, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP/SJRP) identificou dois peptídeos da proteína NS1 que detectam a presença de anticorpos específicos contra Zika, o que permite desenvolver novos testes mais precisos. O trabalho intitulado “Identification of Zika Virus NS1-Derived Peptides with Potential Applications in Serological Tests”, que tem como objetivo preparar o Brasil para futuras epidemias da doença, foi publicado na revista Viruses em fevereiro.

Comissões aprovam testes e indenizações

Em maio, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal aprovou o projeto de lei (PL) 1.855/2019, que obriga os planos de saúde a cobrir o teste sorológico para Zika vírus para pacientes grávidas. A sorologia para o ZIKV é um exame importante durante o acompanhamento pré-natal. Em junho, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) da Câmara dos Deputados aprovou proposta que concede pensão vitalícia às pessoas com microcefalia ou síndrome de Guillain-Barré adquiridas pela contaminação por Zika vírus. Esses cidadãos também terão direito à indenização de R$ 50 mil por danos. O benefício criado é mais amplo do que o já existente. A Lei 13.985/20 criou pensão especial de um salário mínimo para as crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2019 e beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC). A proposta tramita em caráter conclusivo e ainda será analisada pelas comissões de Finanças e Tributação, e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Silencioso, vírus exige vigilância e controle

Desde sua primeira detecção no Brasil, em março de 2015, a transmissão local do Zika foi confirmada em todos os países e territórios das Américas, com exceção do Chile continental, Uruguai e Canadá. Dez países da região respondem por 89% dos casos de Zika registrados entre 2014 e 2023, com Brasil, Colômbia e Venezuela no topo da lista. Uma nova epidemia de Zika pode acontecer a qualquer momento e o desenvolvimento de uma vacina, tratamentos são de extrema importância, assim como testes mais precisos para o monitoramento da doença, especialmente para acompanhar as gestantes e prevenir a microcefalia. Embora a transmissão seja contínua na América Latina, a prevalência global é baixa.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**