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Cólera retorna ao Brasil após 18 anos

Ministério da Saúde confirma o caso autóctone de cólera em Salvador, na Bahia

06/05/2024

Segundo dados da OMS, em 2024, 31 países registraram casos ou tiveram surtos de cólera em 2024. A doença mata até 143 mil pessoas por ano no mundo

Após um intervalo de quase duas décadas, o Ministério da Saúde anunciou, em 19 de abril, a detecção do primeiro caso de cólera no País. Desde 2005, quando o estado de Pernambuco registrou os últimos cinco casos autóctones, não havia ocorrências. Medidas preventivas e investigações adicionais estão em andamento, segundo nota divulgada pelo Ministério da Saúde.

O cólera é uma infecção intestinal aguda causada pela bactéria Vibrio cholerae. Seus sintomas incluem diarreia intensa, vômitos e desidratação severa, podendo ser fatal se não for tratada rapidamente. A transmissão ocorre principalmente por meio da ingestão de água ou alimentos contaminados, e a falta de saneamento básico contribui para a disseminação da doença. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 31 países registraram casos ou sofreram surtos de cólera em 2024. A África é o continente mais afetado, com 18 nações atingidas pela doença. Nas Américas, além do Brasil, o cólera está presente no Haiti e na República Dominicana. Anualmente, a doença mata até 143 mil pessoas em todo o mundo.

A vigilância e o rápido diagnóstico da doença são fundamentais para impedir sua propagação. A população deve adotar medidas preventivas simples, como lavar as mãos regularmente com água e sabão, consumir apenas água tratada e alimentos de fontes confiáveis, além de evitar o contato com águas contaminadas. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou a Dra. Cristiane W. Cardoso, Gerente do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde de Salvador (CIEVS SSA), especialista em Análise de dados em Epidemiologia, mestre em Ecologia e Biomonitoramento, doutora em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa, e membro da SBMT.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: A senhora poderia nos falar a respeito da notificação do caso e como foi realizada a investigação? Quais desdobramentos ainda estão ocorrendo?

Dra. Cristiane Cardoso: Inicialmente gostaria de ressaltar a importância da notificação por parte dos profissionais de saúde e pesquisadores às autoridades sanitárias quando na suspeita de determinada doença, agravo ou evento de saúde pública. Destaco que uma notificação necessita ser precisa e oportuna. O caso de cólera de residente de Salvador foi notificado por uma unidade de saúde da rede privada ao Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde de Salvador (CIEVS SSA) da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador. Essa unidade de saúde da rede privada seguiu um protocolo de investigação laboratorial que permitiu a identificação do Vibrio cholerae. A amostra foi encaminhada para o Laboratório Central do Estado da Bahia (LACEN-BA) que a enviou para o laboratório de referência Nacional (Fiocruz/RJ). O laboratório de referência identificou o Vibrio cholerae O1 Ogawa (toxigênico). A cólera é considerada uma das doenças diarreicas agudas (DDA), causada pela bactéria Vibrio cholerae toxigênico dos sorogrupos O1 ou O139, com potencial epidêmico. A partir da notificação realizada pela unidade de saúde da rede privada permitiu o desencadeamento das investigações epidemiológicas que estamos realizando sobre o caso.

Acionamos os CIEVS Bahia e o CIEVS Camaçari e as demais vigilâncias (vigilância sanitária, vigilância do trabalhador e vigilância ambiental) para ampliação das investigações e das medidas de controle. Trata-se de um indivíduo do sexo masculino, 60 anos de idade, sem histórico de deslocamento para áreas com ocorrência de casos confirmados, nem de contato com outro caso suspeito ou confirmado da doença. Iniciou com sintomas de desconforto abdominal e diarreia aquosa após finalizar um tratamento para H. pylori. Foi importante proceder com os exames laboratoriais e o caso foi confirmado para cólera, nos permitindo ampliar as investigações.

Dentre as nossas ações de vigilância, monitoramos os possíveis contatos e realizamos a coleta de amostras (fezes). Uma das amostras de um dos contatos próximos ao caso teve como resultado pelo Laboratório Central da Bahia (LACEN) o crescimento de V. cholerae. Essa amostra também seguiu para o laboratório de referência que confirmou se tratar do mesmo sorogrupo do caso (Vibrio cholerae O1 Ogawa-toxigênico). Dentre as demais amostras coletadas dos contatos (N=5), todas foram negativas para o Vibrio cholerae. Amostras de água e de alimento relacionadas ao caso foram examinadas e os resultados também foram negativas para o Vibrio cholerae.  

SBMT: O que levou o ressurgimento do cólera no Brasil após um intervalo tão longo?

Dra. Cristiane Cardoso: Essa é uma interessante pergunta de difícil resposta. O caso de Salvador chama atenção pois ocorreu após um período de 18 anos sem registro de casos no Brasil. Com as investigações em curso, ainda não é possível informar com clareza uma possível fonte de infecção. Existe a hipótese de que o caso já era colonizado pela bactéria (Vibrio cholerae), e por um declínio da sua imunidade, houve a oportunidade da manifestação da doença. Caso estejamos diante de uma transmissão sustentada do Vibrio cholerae em Salvador, o ressurgimento pode ser atribuído a diversos fatores, dentre os quais: 1) globalização – Lembrar que as doenças no passado restringiam-se aos portos marítimos e agora, se encontram nos aeroportos, atravessando continentes em questão de poucas horas; 2) variações climáticas – Que têm desempenhado um papel sutil na aceleração da reprodução dos patógenos, alteração dos períodos de incubação e no aumento da capacidade de transmissão e 3) As iniquidades sociais – Estamos voltados ao tratamento do indivíduo, sem avançar nas resoluções dos determinantes que sustentam os processos saúde-doença, como as questões de moradia, educação, saneamento básico, hábitos e costumes. Cada vez mais observamos a decomposição das populações, e um grande exemplo é o sério problema da imigração e dos refugiados. É possível que estejamos numa crise mundial de saúde pública. A Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu alerta considerando o ressurgimento do cólera como grau 3, uma vez que 31 países registraram casos ou declararam surto de cólera. Desde o início de 2023, já se contabiliza um cumulativo de 824 479 cases de cólera e 5900 óbitos no mundo. A crise sanitária se amplia, pois, o estoque global atual de vacinas contra cólera (utilizada em situações especiais) é menos da metade do estoque desejado (2.3 milhões de doses para um estoque desejado de 5 milhões).

SBMT: Diante do caso notificado, quais medidas estão sendo implementadas pelas autoridades de saúde, principalmente em regiões com condições precárias de saneamento básico no município?

Dra. Cristiane Cardoso: Por enquanto, ainda não observamos o desdobramento de mais casos. No entanto, diante do atual cenário, as autoridades sanitárias elaboram e emitiram notas técnicas a fim de orientar os profissionais de saúde e a população sobre o caso de cólera autóctone confirmado laboratorialmente no Brasil com recomendações para o fortalecimento das vigilâncias epidemiológicas de doenças diarreicas agudas e do cólera, além de notas técnicas para a vigilância em portos e aeroportos. A cólera é uma doença de transmissão fecal-oral, ou seja, pela ingestão de água ou alimentos contaminados (produção ou manipulação), ou pela contaminação pessoa a pessoa. Além disso, a bactéria faz parte do ambiente aquático, podendo se associar a mariscos (crustáceos e moluscos), peixes e algas, entre outros, possibilitando a transmissão através desses alimentos se forem consumidos crus ou malcozidos. Um ponto de reflexão é que apesar da pandemia da COVID-19 que sofremos, na qual claramente o hábito contínuo de lavar as mãos foi enfatizado, a sensação é que esse possível “aprendizado” de lavar as mãos não foi incorporado no dia a dia das pessoas. Claro que não podemos esquecer das condições de vida dos indivíduos, cujo oferta de saneamento básico pode não ser uma realidade e as questões de higiene, o que inclui o ato de lavar as mãos, são mais complexas.

SBMT: Quais ações de vigilância e monitoramento estão sendo tomadas no momento para evitar a ocorrência de novos casos no município?

Dra. Cristiane Cardoso: Ampliação das investigações epidemiológicas, sanitárias e ambientais, busca ativa de casos nas unidades de saúde, monitoramento dos contatos e sensibilização para os profissionais de saúde quanto a notificação e solicitação de amostras para envio ao laboratório. Informações de higiene pessoal e com os alimentos estão sendo reforçadas junto à população.

SBMT: Existe alguma preocupação com a possibilidade de disseminação do cólera para outras regiões do País?

Dra. Cristiane Cardoso: No momento, o cenário epidemiológico em questão tem sido considerado de baixo risco. Mas obviamente que é preciso nos mantermos vigilantes, tendo em vista o cenário mundial e todos os fatores e condições favoráveis para a disseminação das doenças transmissíveis, em especial num país tropical e continental como o Brasil. Vale ressaltar as questões das variações climáticas e o aumento de exposição das pessoas nas áreas de alagamento, especialmente em regiões que as condições sanitárias são precárias.  

SBMT: Quais são as lições aprendidas com esse caso de cólera autóctone para melhorar a infraestrutura de saúde e saneamento no Brasil a longo prazo?

Dra. Cristiane Cardoso: Uma primeira lição é estarmos cada vez mais convencidos da possiblidade do recrudescimento das doenças e tentarmos nos preparar em tempos de paz. Não esquecer do potencial epidêmico de uma doença como a cólera que desde a epidemia de Londres de 1840, manteve-se em 7 ondas epidêmicas em diversos países, inclusive no Brasil, reduzindo muitas vidas. Nesse caso autóctone em questão, sugere-se a importância da revisão dos protocolos laboratoriais atuais para detecção do V. cholerae e a revisão da definição de caso da doença e de contato. Considerando as possíveis mudanças no padrão das doenças e de seus agentes etiológicos, não é prudente nos limitarmos apenas ao que está escrito, e sim sermos capazes de ampliar o nosso olhar para as evidências e para o que ocorre para além dos livros e dos guias de vigilância em saúde.

SBMT: A senhora gostaria de acrescentar algo?

Dra. Cristiane Cardoso: Que estejamos sempre vigilantes. Para isso, devemos manter cada vez mais integrados a pesquisa e os serviços de saúde, na perspectiva de fortalecermos uma comunidade aberta a ciência com propósitos colaborativos e interdisciplinares. Afinal, os desafios são para todos nós.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**