
Consórcio internacional busca desenvolvimento de novos medicamentos para doenças negligenciadas e malária
Pesquisas e desenvolvimento de novos medicamentos contra doenças negligenciadas e malária terão investimento de R$ 43,5 mi. Objetivo do consórcio é identificar candidatos pré-clínicos com chances de se tornarem novos medicamentos para o tratamento da leishmaniose visceral, doença de Chagas e malária
09/12/2019
Entre 2012 e 2018, apenas 3,1% dos novos medicamentos que chegaram ao mercado eram voltados para doenças como malária, leishmaniose e tuberculose
As doenças tropicais remontam ao período colonial, quando navegadores europeus realizaram suas expedições ao então Novo Mundo e depararam-se com uma série de enfermidades parasitárias que se propagavam rapidamente por conta das altas temperaturas e da umidade daquelas regiões. Mais de cinco séculos depois, as doenças tropicais permanecem um desafio para a saúde global. A escassez de tratamentos seguros, eficazes e acessíveis, acentuada pela histórica invisibilidade destas doenças perante a indústria farmacêutica, termina por levar centenas de milhares de pessoas à morte anualmente em diversos países pobres ou em desenvolvimento.
Em 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elegeu 17 patologias tropicais como prioritárias. Embora apresentem diferenças do ponto de vista do contágio, todas têm dois pontos cruciais em comum: são causadas por agentes infecciosos e atingem, principalmente, pessoas que vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade. A lista de doenças negligenciadas (NTDs, pela sigla em inglês) hoje compreende 21 enfermidades, dentre as quais estão a doença de Chagas e as leishmanioses. No Brasil, dados sobre desigualdade levaram o Ministério de Saúde a agregar malária e tuberculose ao grupo desde 2008.
Os poucos medicamentos que existem para essas doenças são caros, têm baixa eficácia e/ou têm efeitos colaterais indesejáveis. Para tentar mudar essa realidade, no final de novembro, a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla em inglês) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), junto a Universidade de São Paulo (USP),a organização internacional Medicines for Malaria Venture (MMV) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), firmaram acordo para a criação de uma rede global de colaboração para a pesquisa de novos medicamentos voltados a doença de Chagas, leishmanioses e malária. A ideia do projeto é estimular o desenvolvimento de capacidades para a pesquisa de novos fármacos no Brasil por meio do intercâmbio das melhores práticas de conhecimento.
Apoiado pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da Fapesp, o consórcio internacional receberá investimentos de R$ 43,5 milhões ao longo dos próximos cinco anos. O financiamento será compartilhado entre a própria Fundação (R$ 7,8 milhões), DNDi e MMV (R$ 12,8 milhões), além de Unicamp e USP (R$ 22,9 milhões).
“O grande diferencial deste consórcio é a criação de uma rede internacional, multidisciplinar, pensada a partir dos modelos de excelência dos grandes institutos de pesquisa globais, mas que está voltada para as necessidades das populações dos países endêmicos. Trata-se de um esforço conjunto pelo mesmo propósito: obter tratamentos seguros e eficazes para a doença de Chagas, leishmanioses e malária, resumiu Jadel Müller Kratz, gerente de Pesquisa & Desenvolvimento da DNDi. Ainda segundo ele, esse é um importante marco na ciência para a descoberta de novos agentes antiparasitários, pois reúne a Fapesp, duas das principais universidades brasileiras e organizações sem fins lucrativos cuja missão é entregar novas alternativas terapêuticas para o combate a doenças parasitárias. “A colaboração entre os grupos de pesquisa e o intercâmbio entre os pesquisadores brasileiros e estrangeiros é um aspecto importante da parceria. A internacionalização da ciência brasileira é fundamental”, acrescentou. O objetivo da DNDi é entregar um composto pré-clínico que possa, após ensaios posteriores, tornar-se um novo tratamento para Chagas e leishmaniose visceral.
Já o trabalho da MMV envolverá a criação de um medicamento oral de dose única para a malária. De acordo com o diretor científico da entidade, Timothy Wells, a descoberta de novos medicamentos permitirá que países endêmicos desta enfermidade, como o Brasil, eliminem a doença de dentro de suas fronteiras e também apoiar a erradicação global. “Estamos muito satisfeitos em poder contar com os conhecimentos especializados dos cientistas brasileiros da Unicamp e da USP e combiná-los com a experiência da MMV em malária para desenvolver medicamentos antimaláricos para a população brasileira e de outros países”, afirmou.
Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química da Unicamp, responsável pela coordenação geral do projeto, ressaltou que essa parceria certamente abrirá caminho para futuras colaborações, promoverá interações entre cientistas com diferentes conhecimentos do Brasil e do exterior e desencadeará a nucleação de Recursos Humanos no campo da descoberta de medicamentos. “Certamente abrirá portas para novas ideias de empreendedorismo e inovação tecnológica no estado de São Paulo, bem como colocará os cientistas brasileiros na seleta lista mundial de pesquisadores treinados em ciência translacional”, destacou. Ainda segundo ele, o consórcio vai levar à consolidação de um modelo de parceria global que contribui com a inovação, o avanço do conhecimento na área de descoberta de novos medicamentos para doenças parasitárias tropicais, a aceleração dos cronogramas de pesquisa e o compartilhamento de dados.
Processo de P&D
O processo de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos é complexo, longo e se faz necessário um forte investimento a longo prazo. Quando se trata do descobrimento de novas moléculas, segundo Charles Mowbray, Diretor de Drug Discovery da DNDi, é muito importante ter uma visão clara do que se pretende desenvolver. “O Perfil de Produto Alvo (TPP por suas siglas em inglês), descreve as características que o medicamento precisa ter para ser adequado para os pacientes que precisamos tratar” explicou.
Depois dessa definição, o primeiro passo consiste na identificação e validação de compostos ativos (hits), originados de bibliotecas de compostos. Uma vez identificada uma nova série química, ela passa por processos cíclicos de otimização multiparamétrica (farmacodinâmica, farmacocinética e segurança). A otimização segue os critérios definidos nos perfis de produto-alvo até que um candidato pré-clínico com características aceitáveis de eficácia e segurança seja obtido, ou a série química abandonada.
O potencial medicamento deve seguir, então, para os testes pré-clínicos laboratoriais (in vitro) e em animais (in vivo), com objetivo de determinar se ele é seguro para ser testado em humanos. O dossiê de pesquisa é apresentado a órgãos regulatórios e comitês de ética em pesquisa, que validam se o novo medicamento pode ser testado em pessoas.
A etapa seguinte é de ensaios clínicos em humanos.
• Fase I – teste inicial de segurança em pequeno grupo de voluntários saudáveis, de forma a definir qual a maior dose possível tolerada por seres humanos e o seu perfil farmacocinético;
• Fase II – teste de segurança e eficácia em pequeno número de pacientes com a doença, para verificar se o medicamento de fato é efetivo e para definir seu regime terapêutico (frequência, dosagem);
• Fase III – com a dose e o regime terapêutico geralmente definidos, essa fase amplia o número de pacientes testados e avalia a efetividade comparativa da droga em relação aos tratamentos existentes (ou a placebo, se for o caso). Nesta fase, são mapeados também os potenciais efeitos adversos e contraindicações.
“O processo de criação de um novo medicamento pode demorar mais de 10 anos. São várias etapas, desde a pesquisa básica até os ensaios clínicos, até se obter todas as garantias de segurança e eficácia do tratamento em questão e, aí sim, levá-lo aos pacientes”, lembra Kratz.
Chagas e leishmanioses: silenciamento e estigma
Com mais de 100 anos de existência, a doença de Chagas mata 14 mil pessoas por ano na América Latina, mais do que qualquer outra enfermidade parasitária. Estima-se que haja 6 milhões de infectados pelo Trypanosoma cruzi na região e outras 70 milhões em risco de contrair a doença em todo o mundo. Entretanto, menos de 10% dos pacientes são diagnosticados e apenas 1% recebe o tratamento adequado. Um relatório da OMS sobre NTDs, publicado em 2012, vai além das estatísticas epidemiológicas e aponta que as mortes prematuras por Chagas acarretam uma perda de cerca de 800 dias úteis/ano e um gasto de R$1,2 bilhão em produtividade desperdiçada por conta de cardiopatias e outras lesões decorrentes da doença.
As leishmanioses seguem trajetória parecida. Causadas por mais de 20 espécies do protozoário Leishmania, transmitidos ao homem por outras 30 variações de mosquito-palha, elas ainda têm sua incidência e taxa de letalidade incertas devido à falta de notificação em áreas mais remotas. Em sua forma visceral, pode levar a óbito em 90% dos casos. Já nas manifestações cutânea e mucocutânea, deixa lesões que afastam os infectados de sua vida produtiva e do convívio social.
“Apesar da significativa carga global, estas doenças foram ignoradas pela indústria farmacêutica, que nunca as viu como um negócio propriamente dito. Por consequência, ainda faltam alternativas terapêuticas que possam promover uma melhora na qualidade de vida das pessoas acometidas por estas enfermidades, lamenta Kratz. Até 2016, o Brasil era um dos 12 maiores financiadores globais de pesquisas para doenças negligenciadas. O Relatório recente sobre o financiamento mundial de inovação para doenças negligenciadas (G-Finder2, na sigla em inglês), entretanto, mostrou retração de 42% no setor ao longo do ano seguinte. Trata-se de um revés para o setor de descoberta de fármacos que, por demandar tempo, necessita de investimento robusto e contínuo.
O documento revelou também que menos de 5% do financiamento foi investido no grupo das doenças extremamente negligenciadas, ou seja, doença do sono, leishmaniose visceral e doença de Chagas, ainda que mais de 500 milhões de pessoas sejam ameaçadas por estas três doenças parasitárias. As doenças negligenciadas são um problema global de saúde pública, mas a P&D das indústrias farmacêuticas é orientada quase sempre pelo lucro, estando o setor industrial privado focado nas doenças globais para as quais medicamentos podem ser produzidos e comercializados com geração de lucros. Com baixo poder aquisitivo e sem influência política, os pacientes e sistemas de saúde mais pobres não conseguem gerar o retorno financeiro exigido pela maior parte das empresas voltadas ao lucro.
Nos últimos anos houve avanços e colaborações importantes na área que ajudaram a povoar o pipeline de desenvolvimento atual. Para maximizar as chances de acesso a novos medicamentos pelos pacientes negligenciados é crucial que todos os agentes envolvidos no P&D mantenham o foco de seus esforços no entendimento das doenças e na melhoria das estratégias de investigação, sem esquecer a importância da valorização da ciência e da promoção de um ambiente favorável para a pesquisa. O Brasil tem um grande potencial no que se refere à descoberta de novos medicamentos contra doenças negligenciadas e o financiamento da Fapesp e parceiros vem ajudar a cobrir essa lacuna.
(Com informações da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla em inglês)
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**