Contaminação por mercúrio no Brasil: um desafio crescente
Um problema que requer atenção urgente das autoridades e da sociedade
09/06/2023A contaminação por mercúrio é uma preocupação ambiental e de saúde pública em todo o mundo. No Brasil, um País rico em recursos naturais, a presença de mercúrio e suas consequências têm sido objeto de estudo e monitoramento por décadas. A contaminação ocorre principalmente devido à atividade de mineração, especialmente em regiões onde a extração de ouro é intensa. O mercúrio é usado para separar o ouro dos sedimentos, formando uma amálgama que facilita a extração do metal precioso. No entanto, essa prática tem consequências devastadoras para o meio ambiente e representa uma ameaça à saúde. Um dos principais problemas é a contaminação dos rios e dos peixes. O mercúrio liberado durante o processo de mineração acaba se depositando nas águas. Os peixes, em particular, acumulam o metal em seus tecidos ao longo do tempo e quando consumidos podem representar um risco significativo para a saúde, causando danos neurológicos e afetando o desenvolvimento fetal, por exemplo. O Pará, no norte do Brasil, é uma das regiões mais afetadas. A mineração de ouro no estado é intensa, e os rios da região têm níveis alarmantes de mercúrio. Comunidades ribeirinhas, que dependem da pesca como fonte de subsistência, estão sendo particularmente afetadas e enfrentam problemas de saúde e insegurança alimentar.
Os impactos adversos desse problema na saúde pública têm se tornado cada vez mais preocupantes, visto que a contaminação por mercúrio acarreta uma série de efeitos prejudiciais à saúde humana. Ele pode afetar o sistema nervoso central, resultando em danos cerebrais, problemas de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo em crianças expostas durante a gestação. Além disso, pode causar distúrbios renais, cardiovasculares e imunológicos, comprometimento da visão e do sistema respiratório. O mercúrio circula no meio ambiente, em diferentes compartimentos, podendo estar presente na água, no solo, na chuva, nas nuvens, nos peixes, em todos os diferentes animais que vivem em ambientes aquáticos, tanto no rio quanto no mar ou nos lagos. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. Paulo Cesar Basta, Médico e Pesquisador em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Coordenador da área TB Indígena da Rede Brasileira de Pesquisas em Tuberculose REDE-TB.
Confira a entrevista na íntegra.
SBMT: Qual é a extensão da contaminação por mercúrio no Brasil, tanto em termos de áreas geográficas afetadas quanto de populações expostas?
Dr. Paulo Cesar Basta:
É uma pergunta que eu diria que não tem uma resposta claramente definida, porque não temos uma dimensão exata da extensão das áreas contaminadas por mercúrio no Brasil. Os dados oficiais disponíveis hoje estão completamente defasados. Há um sistema de informação do Ministério da Saúde, chamado Sistema de Informação de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Solo Contaminado (SISSOLO), que sistematiza as informações e acompanha as populações identificadas, através do cadastramento contínuo das áreas potencialmente contaminadas, possibilitando a construção de indicadores ambientais e de saúde em praticamente todo o País. Entretanto, os dados que estão disponíveis para consulta pública estão defasados em, pelo menos, dez anos. Mas segundo consta, as principais áreas afetadas estão na região Sudeste, Nordeste e Sul, devido principalmente às plantas industriais situadas nessas regiões. Muitas indústrias que trabalham na produção de cloro-soda, de lâmpadas ou na fabricação de pilhas, processos nos quais o mercúrio é utilizado diretamente na produção ou que se encontra como resíduo do processo produtivo, acabam contaminando algumas áreas.
No que diz respeito ao garimpo, não temos uma dimensão clara sobre a extensão do problema, uma vez que boa parte das atividades de mineração de ouro realizadas no Brasil, hoje, são ilegais. Um monitoramento realizado pelo MapBiomas informa que, atualmente, mais de 50% das atividades de mineração de ouro no País são ilegais. Ou seja, são provenientes de garimpos clandestinos que atuam de modo ilegal, sobretudo em Terras Indígenas (TI), em unidades de conservação e em áreas de preservação ambiental, que são terras consideradas da União. Nesses locais, infelizmente, não temos nenhum registro oficial do uso do mercúrio e sobre o modo como ele é empregado nessas operações, tampouco a quantidade de mercúrio que é gerada como resíduo do processo e que vai poluir o ambiente. Há estimativas de que pelo menos 80% do mercúrio circulante hoje, na Amazônia, é proveniente dessas atividades ilegais de mineração. Alguns estudos da Polícia Federal indicam que para cada quilo de mercúrio empregado pelo garimpeiro para identificar o ouro, são utilizados de dois a oito quilos de mercúrio. Em média, cerca de três quilos de mercúrio são utilizados para cada quilo de ouro identificado. Alguns relatórios da Polícia Federal relatam que foram apreendidos 600 quilos de ouro ilegal, e, para extração destes, mais de duas toneladas de mercúrio foram utilizadas. Este é apenas um pequeno exemplo de um flagrante delito ocorrido na região do rio Tapajós, no Pará.
As Terras Indígenas mais afetadas hoje são: em primeiro lugar a TI Kayapó, que fica no estado do Pará; em segundo lugar, a TI Munduruku, que também se localiza no estado do Pará; e, em terceiro lugar, vem a TI Yanomami. Além dessas três principais Terras Indígenas afetadas, existem áreas em Rondônia que também estão sujeitas a contaminação, Amazonas, Mato Grosso e Amapá. Ou seja, em praticamente todos os estados da Amazônia Legal, com exceção do Acre, há registros de uso indiscriminado de mercúrio nas atividades de mineração ilegal de ouro.
E, lamentavelmente, esse problema não está restrito ao território brasileiro, à Amazônia brasileira. Vários países que fazem fronteira com o Brasil, na Região Amazônica, também registram essas atividades, como é o caso do Peru, onde o garimpo é muito importante, Colômbia, Venezuela e Guianas. É um problema que está amplamente disseminado na Pan-Amazônia. O trabalho que fizemos recentemente identificou a presença de níveis de concentração de mercúrio elevados, chegando a 1/5 de 1010 amostras de peixes que foram coletados de 17 cidades, incluindo seis capitais da Amazônia Legal brasileira. Isso dá uma pista do tamanho da extensão dessa contaminação e demonstra que há um amplo espalhamento do mercúrio no território brasileiro, sobretudo na Amazônia, decorrente das atividades ilegais de mineração de ouro. De toda forma, não podemos esquecer do passivo ambiental existente nas plantas industriais que estão nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste.
SBMT: Quais grupos populacionais mais vulneráveis aos efeitos da contaminação por mercúrio?
Dr. Paulo Cesar Basta: Embora o mercúrio seja um contaminante químico, ou seja, ele não tem nenhuma função biológica para os seres humanos, não é necessário a nenhuma etapa do metabolismo ou nenhuma atividade fisiológica, quando ele está presente no corpo humano, sua única função é atuar como um contaminante e provocar lesões nos tecidos, nos órgãos ou sistemas onde ele irá se depositar. Para qualquer pessoa, o mercúrio atua como um elemento tóxico, mas os grupos populacionais mais vulneráveis são constituídos principalmente por mulheres em idade fértil e crianças. Isto ocorre por uma razão bem particular. Quando a mulher está na idade fértil, sobretudo quando está gestante, e se alimenta de um pescado contaminado, o mercúrio que está no tecido muscular do peixe, na carne do peixe, vai ser ingerido junto com outros nutrientes, ômega três, aminoácidos, carboidratos, e junto com esses nutrientes será absorvido o metilmercúrio, uma forma particular do mercúrio que se concentra no tecido muscular dos pescados. O metilmercúrio quando ingerido pela grávida, cai na corrente sanguínea e vai se distribuir por todos os órgãos do sistema, e à medida que se acumula em determinados órgãos, vai provocando lesões, que vão ser manifestadas por meio de diferentes sinais e sintomas. O mais importante, no caso das gestantes, é que o mercúrio circulante no sangue passa para o bebê, que está sendo gestado no ventre da mãe, por intermédio da placenta, do cordão umbilical. Ou seja, o mercúrio circulante no corpo da mãe vai afetar o bebê que está em formação no ventre materno.
Estudos apontam que a concentração de mercúrio no cérebro do bebê atinge cifras de 5 a 7 vezes maiores do que os níveis de mercúrio circulante no sangue da mãe. Essa exposição no período pré-natal pode provocar sérios problemas para a criança. Dependendo do nível de exposição ao mercúrio, os sinais e sintomas têm um espectro de apresentação amplo que variam de manifestações clínicas leves até manifestações graves. Considerando as manifestações graves, se a mulher estiver muito contaminada, ela pode não conseguir levar a gestação até o final. A mulher pode ter abortos de repetição. Nos casos de contaminação extrema, a criança pode nascer com deformidades, malformação congênita, paralisia cerebral, situações de saúde bastante importantes que podem ser observadas no nascimento.
Quando a exposição ao mercúrio não é tão elevada, a criança pode ter sintomas brandos, e ao nascimento, aparentemente será uma criança normal, sem defeitos ou deformidades. Mas à medida que o tempo passa, percebe-se que a criança demora a sustentar a cabecinha, sentar, engatinhar, dar os primeiros passos, falar as primeiras palavras. Quando a criança cresce um pouco mais, e está com dois ou três anos, percebe-se que não se comunica de modo normal com outras, não brinca, não faz as mesmas brincadeiras que crianças da mesma idade que não foram afetadas pela exposição do mercúrio. Quando atinge a idade escolar, a criança começa a ter dificuldades de aprendizado, de concentração e de relacionamento interpessoal com os colegas. Logo, quando vamos investigar esse caso, percebemos que essa criança pode ter tido uma exposição ao mercúrio durante o período do pré-natal. Isso gera graves consequências que podem se estender por toda a vida.
Estudos apontam que para cada um micrograma de mercúrio identificado em uma amostra de cabelo de uma mãe grávida, a criança que está no ventre vai ter uma perda de 0,18 pontos no quociente de inteligência (QI). Então se a mulher estiver pesadamente contaminada, por exemplo, com 30 microgramas de mercúrio para cada grama de cabelo, que não é uma situação tão rara de acontecer na Amazônia, essa criança vai ter o seu QI severamente prejudicado. Conforme mencionado acima, esta perda cognitiva vai se estender para toda a vida e essa criança vai ter problemas na escola, terá dificuldades em completar o ensino fundamental, o ensino médio, e com isso terá problemas para acessar o ensino superior, e como consequência não terá um bom emprego, uma boa renda e terá problemas para sustentar sua família. As consequências da exposição ao mercúrio vão se estender por toda a vida, fazendo com que as desigualdades sociais fiquem cada vez mais evidentes, contribuindo para a concentração de renda e o aumento da pobreza.
SBMT: Quais as estratégias e políticas adotadas no Brasil para mitigar a contaminação por mercúrio?
Dr. Paulo Cesar Basta: Existe uma legislação ambiental específica que regulamenta as atividades de mineração no Brasil, a Lei 7.805, de 1989. De acordo com esta legislação, existem dois modelos para exploração mineral no País: um deles é a concessão de lavra garimpeira para que grandes empresas possam operar e fazer mineração no território nacional. Essas empresas devem apresentar estudos de impacto ambiental, relatórios de impacto ao meio ambiente, precisam respeitar uma série de instrumentos legais, informar a quantidade de mercúrio que é utilizado nos processos de extração de minérios, como é feito o manejo desse metal, se ele é recapturado do ambiente, se existe algum trabalho de remediação para as áreas contaminadas, enfim, existe uma legislação claramente definida para esta modalidade de concessão de lavra. Por sua vez, a outra modalidade prevista na lei 7,805 é a permissão de lavra garimpeira, a PLG. Essa permissão é dada a pessoas físicas ou a cooperativas de garimpeiros para atuar em áreas demarcadas, definidas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Essas áreas estão fora de Terras Indígenas, unidades de conservação, áreas de proteção ambiental, linhas de fronteira internacional, e terras devolutas ou de destinação específica, consideradas terras da União, do Governo Federal. Ou seja, não pode haver mineração nesses territórios. Para as plantas industriais também há, em tese, uma severa legislação ambiental, sanitária, que regulamenta essas atividades e que devem ser cumpridas à risca. Além disso, temos, no Brasil, algumas portarias e resoluções colegiadas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que regulamentam a comercialização de produtos alimentares, e dentre essas resoluções há uma destinada a controlar os níveis de mercúrio no pescado. Essa legislação prevê que os peixes, por exemplo, só podem ser comercializados se tiverem no máximo 0,5 microgramas de mercúrio para cada grama de tecido muscular. Se o nível de mercúrio estiver acima desse valor, ele não deve ser comercializado, porque pode incorrer em risco à saúde dos consumidores. Como mencionei acima, nosso estudo avaliou 1.010 pescados de 17 cidades da Amazônia, sendo que 1/5 desses pescados, mais precisamente 21,3%, apresentaram níveis de mercúrio acima desse índice de 0,5 microgramas estabelecido pela Anvisa, portanto, esses peixes não deveriam ser comercializados.
Ainda dentro da Anvisa, há legislações que definem o uso de metais, por exemplo, em produtos cosméticos e em produtos médicos farmacêuticos. Antigamente, tínhamos mercúrio nos termômetros, nos aparelhos para aferir pressão arterial, muitas vezes o etilmercúrio (outra forma de mercúrio orgânico) era utilizado como conservante de vacinas e alguns medicamentos, e além disso, o mercúrio era e continua sendo utilizado na odontologia (amálgamas para obturações, produzida com nitrato de prata e mercúrio). A partir de 2013, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulgou a Convenção de Minamata. A elaboração dessa convenção foi inspirada na tragédia que houve na década de 1950, na baía de Minamata, no Japão, quando a comunidade científica internacional teve conhecimento dos danos provocados pela contaminação por mercúrio à população local. Na época, centenas de pessoas morreram, milhares foram afetadas pelo mercúrio, houve quase uma epidemia de crianças nascendo com malformações congênitas, paralisia cerebral, quadros neurológicos graves decorrentes dessa contaminação. A partir desse evento, a comunidade internacional foi sendo sensibilizada sobre o problema, até que em 2013 foi promulgada a Convenção de Minamata, a qual prevê o banimento do mercúrio de todos os processos industriais no planeta, seja na indústria médico farmacêutica, na produção de lâmpadas, na indústria de cloro-álcalis, na produção de pilhas e baterias, em todos os processos industriais, sem exceção, sendo estabelecidos limites para que essas atividades fossem descontinuadas. Hoje, mais de 140 países são signatários da Convenção, sendo o Brasil um deles. Em nosso País, a Convenção foi internalizada como legislação brasileira em 2018, ainda na gestão do ex-presidente Michel Temer.
Desta forma, foi estabelecido um compromisso internacional do Brasil de eliminar todas as emissões de mercúrio para o meio ambiente. Dentro da Convenção de Minamata, há um capítulo específico que trata da mineração artesanal ou de pequena escala de ouro (garimpo). O Brasil assumiu publicamente, junto à comunidade internacional, que igualmente é signatário da Convenção de Minamata e que a mineração de ouro no País era não era insignificante. O documento entregue na ONU assumiu isso publicamente, e a partir dessa entrega, que aconteceu em 2021, temos três anos para apresentar um plano de manejo para eliminação do mercúrio na mineração artesanal.
Essas são algumas estratégias e políticas adotadas no Brasil. Entretanto, o Ministério da Saúde (MS) não tem um plano nacional para erradicação do mercúrio, não há centros de referência para o acolhimento às populações afetadas, não existem cursos específicos de formação e atualização dos profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS). Nossa experiência de campo na Amazônia mostra que a grande maioria dos profissionais não tem nenhum conhecimento sobre essa temática, não sabem reconhecer um paciente com sinais ou sintomas suspeitos de contaminação. Ou seja, há uma lacuna enorme na formação desses profissionais, sejam médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, odontólogos etc. Assim, nosso grupo de pesquisa na Fiocruz apresentou à nova gestão do Governo Federal, por intermédio do Ministério da Saúde, uma proposta, um plano de erradicação da contaminação por mercúrio no Brasil.
SBMT: Quais medidas preventivas podem ser recomendadas para reduzir a exposição ao mercúrio e proteger a saúde da população brasileira?
Dr. Paulo Cesar Basta: Eu diria que são necessárias ações integradas que devem ser realizadas de modo concomitante por diferentes órgãos, instituições e ministérios. O enfrentamento da contaminação por mercúrio não deve ser entendido como uma atribuição exclusiva do Ministério da Saúde. O Ministério da Justiça, por exemplo, tem que fazer um combate ao garimpo ilegal em Terras Indígenas e em outras áreas de preservação ambiental e unidades de conservação, que são terras da União, conforme mencionado anteriormente. Esse combate requer a desintrusão dessas áreas que estão hoje invadidas, ou seja, o governo tem que retirar garimpeiros desses territórios e garantir que eles não voltem e tampouco que saiam e migrem para outros lugares. Isso foi um fenômeno recente que aconteceu no Brasil na década de 1980, quando houve a interrupção das operações no garimpo de Serra Pelada, no Pará, e as atividades de garimpo pararam naquela região, havia milhares de trabalhadores atuando nesta atividade. Com a interrupção das atividades, houve um processo migratório em massa, fazendo com que milhares de pessoas se espalhassem em outras áreas da Amazônia. Parte dessa onda de garimpeiros ocupou a região do vale do Rio Tapajós, no Pará, e outra parte migrou para a Terra Indígena Yanomami. Este fenômeno ficou conhecido como a primeira corrida do ouro na Amazônia, responsável pela primeira invasão do Território Yanomami. Depois de serem retirados no início dos anos 1990 pelo ainda pelo governo Collor, os garimpeiros ficaram mais de 20 anos sem atuar na TI Yanomami. Entretanto, por volta de 2013-2014, com aumento significativo a partir de 2016, atingiu-se o pico de invasões em 2022, com números expressivos de garimpeiros voltando a atuar de forma ilegal na Terra Yanomami novamente. O trabalho que está sendo feito hoje no local, pelo Ministério da Justiça, tem que ser realizado em outras áreas do Brasil, como na Terra Indígena Kayapó, na Terra indígena Munduruku, no Amapá, em Rondônia, e no Amazonas. Esta é uma ação importante que o Ministério da Justiça precisa fazer junto com a Polícia Federal e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em todas as áreas invadidas hoje, na Amazônia.
O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, deve fazer o monitoramento das áreas que estão afetadas, buscar elaborar um conjunto de medidas para remediação das áreas contaminadas. Além de interromper o garimpo, as áreas devastadas que foram contaminadas por mercúrio, precisam ser reflorestadas. A floresta tem um papel importante não só na mitigação das mudanças climáticas e do controle da temperatura do planeta. Do mesmo modo que as árvores sequestram o carbono circulante na atmosfera, elas também sequestram o mercúrio e guardam este metal de uma forma inerte dentro do seu tronco, nas suas raízes, nas suas folhas. Desta forma, é importante ter ações definidas para remediação das áreas contaminadas. Essas ações devem ser planejadas e desenvolvidas pelo Ministério do Meio Ambiente. Uma vez que os garimpeiros forem retirados das áreas ilegalmente invadidas, o Ministério das Cidades deve pensar em estratégias para garantir que as pessoas que trabalhavam no garimpo sejam incorporadas à economia regional. Até que esse processo de acolhimento ocorra, essas pessoas precisam ter acesso a benefícios sociais do governo, tais como o Programa Bolsa Família, entre outros benefícios. Além de acesso aos programas de apoio do governo, devem ser criados projetos de desenvolvimento sustentável, valorizando as vocações do ambiente e das pessoas que lá vivem, como por exemplo, o incentivo às cadeias produtivas, a economia verde da floresta, com a venda de castanha, cacau, cupuaçu, açaí, cogumelo, e outros tantos produtos que podem ser produzidos de modo sustentável na floresta e que, além de alimentar as pessoas, podem gerar renda para as famílias.
Considerando a frequência de pescados contaminados, é importante que o Ministério da Pesca tenha uma atuação, de modo a criar um seguro para proteção à comunidade pesqueira. Com uma quantidade crescente de peixes contaminados por mercúrio e uma eventual proibição da comercialização desses pescados, a comunidade pesqueira vai sofrer sérios impactos sob o ponto de vista socioeconômico. Logo, é fundamental que se pense em ações para proteção dos pescadores. Assim como existe o seguro defeso, que reconhece que em determinadas épocas do ano o pescador não pode pescar para garantir a reprodução dos peixes e o abastecimento das comunidades, deve-se pensar em uma espécie de seguro mercúrio, por exemplo, aplicado nas situações em que áreas de pesca estão afetadas pela contaminação.
Por fim, mas não menos importante, é preciso pensar nas ações que devem ser desenvolvidas no âmbito do Ministério da Saúde. Essas ações incluem desde a elaboração de recomendações para o consumo seguro de peixes, orientadas para a ingestão das espécies menos contaminadas (peixes não carnívoros), até a concepção de um programa nacional para erradicação da contaminação por mercúrio. Esse programa deve prever a realização de ações integradas que envolvem a construção de centros de referência em pontos estratégicos, sobretudo nas áreas mais impactadas da Amazônia, a fim de acolher as populações afetadas que já apresentam sinais e sintomas decorrentes da exposição crônica ao mercúrio. Esses centros de referência precisam contar com profissionais em quantidade e qualidade suficiente para dar atendimento e acolhimento adequado às populações afetadas, realizar assistência à saúde em todos os níveis de complexidade, garantir a realização de exames complementares, quando for necessário, bem como iniciar tratamentos específicos, quando houver indicação. Para que isso aconteça, é necessário ofertar cursos de formação e atualização para os profissionais da ponta de modo continuado, para que eles estejam habilitados a atender às demandas locais, com base nas evidências científicas mais atuais. É preciso também que os casos de contaminação já existentes sejam notificados e entrem nas estatísticas oficiais, e com isso passem a integrar as bases de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Hoje, infelizmente, esse tipo de notificação não está ocorrendo, portanto, não há estatística oficial sobre o problema da contaminação. Este fato resulta em um registro importante, que encobre a ameaça corrente à saúde pública nacional.
Enfim, são várias ações, várias medidas que devem que ser realizadas de modo integrado entre diferentes instituições e ministérios do Governo Federal.
SBMT: Quais são os impactos da contaminação por mercúrio na saúde humana e quais órgãos são mais afetados pela exposição? Há evidências científicas sobre os efeitos a longo prazo da exposição crônica ao mercúrio na saúde humana?
Dr. Paulo Cesar Basta: O mercúrio que está dentro dos pescados, encontra-se em uma forma específica, o mercúrio orgânico, que também é chamado de metilmercúrio (MeHg). Esta forma do mercúrio é diferente do mercúrio metálico, também conhecido como prata líquida, azougue, ou mercúrio elementar (Hg0) que está na mão do garimpeiro. Há estudos que apontam que para cada quilo de ouro encontrado pelo garimpeiro, são utilizados, em média, três quilos de mercúrio metálico. Ou seja, esses dois quilos excedentes de mercúrio metálico são liberados no meio ambiente, sem nenhum tipo de cuidado ou tratamento prévio. Esse mercúrio metálico liberado no ambiente cai no leito do rio, e como ele tem uma densidade 13 vezes maior do que a da água, ele não se mistura com facilidade. Então, ele sofre bastante sedimentação, desce a coluna d’água e vai para o fundo do leito do rio. Lá, o mercúrio metálico sofre um processo de transformação mediado por microrganismos e se transforma no mercúrio orgânico, que é o metilmercúrio. O metilmercúrio, por sua vez, ingressa na cadeia trófica alimentar, afeta todos os seres vivos que habitam no rio, e assim vai se depositar no tecido muscular do pescado, na carne do peixe, exatamente na parte que utilizamos para nos alimentar. O ser humano, ao se alimentar do pescado, vai ingerir o metilmercúrio, que ao cair na corrente sanguínea pode se distribuir por todo o corpo e se fixar em diferentes órgãos ou sistemas, afetando principalmente o nervoso central (cérebro), o sistema cardiovascular, os rins, o sistema endócrino, diferentes glândulas, o fígado, enfim, levando a diferentes manifestações clínicas a depender do órgão ou sistema afetado. Isto dificulta a clara identificação dos suspeitos de contaminação por mercúrio pelos profissionais de saúde.
Os sinais e sintomas têm um amplo espectro clínico, variando desde sinais e sintomas brandos até formas mais graves. Na pergunta anterior, falamos sobre os efeitos para as populações vulneráveis, sobretudo os efeitos a longo prazo que podem afetar mulheres em idade fértil e crianças. As principais manifestações neurológicas podem ser divididas didaticamente em três componentes: alterações de ordem sensitiva, de ordem motora e de ordem cognitiva. As alterações sensitivas variam desde a diminuição da sensibilidade tátil, térmica e dolorosa nas extremidades das mãos e pés, à presença de gosto metálico na boca, ruído permanente no ouvido, perda da visão periférica, até alguns sinais de tontura, dor de cabeça crônica, irritabilidade, insônia, labilidade humoral, entre outros sinais e sintomas. As alterações motoras incluem tremores nas extremidades, que vão se transformando em fraqueza, esta pode avançar das mãos para os braços, dos pés para as pernas, e, de repente, a pessoa não consegue mais segurar um peso leve como um prato de comida, não consegue subir escada, fazer uma caminhada mais longa. À medida que a contaminação avança, a pessoa pode ficar com tremores graves, e lentamente ir perdendo os movimentos das pernas, sendo necessário utilizar cadeira de rodas ou outros equipamentos de apoio, simulando dessa forma a síndrome de Parkinson. Nas alterações cognitivas, os adultos começam a apresentar problemas de memória, esquecimento, dificuldade de fixação de conteúdo e de aprendizado, e à medida que a doença evolui, se agrava, começa a apresentar quadros semelhantes à síndrome de Alzheimer.
São eventos clínicos importantes com diferentes manifestações, que em conjunto, acabam dificultando a identificação dos casos pelos profissionais de saúde. Por essa razão, reforçamos a importância de se ofertar cursos regulares de atualização para os profissionais de saúde que atuam nas áreas afetadas. Existem muitas evidências sobre os efeitos de longo prazo da exposição ao mercúrio, notadamente os provocados pelo garimpo ao ambiente. Esses efeitos incluem além da devastação da floresta, a contaminação de pescados e outros animais. Mais recentemente, diferentes autores têm trabalhado na perspectiva de demonstrar efeitos à saúde humana. Nosso grupo de pesquisa na Fiocruz tem se dedicado, nos últimos tempos, a estudar os efeitos na saúde das populações indígenas e já acumulamos importantes trabalhos que revelam evidências inequívocas da associação de sintomas e sintomas neurológicos, bem como prejuízo ao neurodesenvolvimento infantil nas Terras Indígenas Yanomami e Munduruku.
SBMT: Os efeitos da contaminação por mercúrio podem variar dependendo da dose, duração e forma de exposição, bem como das características individuais de cada pessoa?
Dr. Paulo Cesar Basta: Sim, tudo isso de fato tem influência sobre os efeitos. O efeito da exposição é dose dependente. Quanto maior for a dose de exposição, maiores serão os danos nos tecidos afetados, e com isso, maiores serão as manifestações clínicas e os sintomas apresentados. A duração da exposição é outro fator importante a ser considerado. Existem exposições agudas que estão concentradas basicamente nos trabalhadores que utilizam o mercúrio metálico, pois a manipulação deste elemento químico pode provocar intoxicações agudas, caso exista um corte ou arranhão nas mãos do garimpeiro. Nesses casos, o mercúrio pode cair na corrente sanguínea e causar sérios transtornos.
Além disso, o mercúrio metálico utilizado para facilitar o processo de identificação do ouro em sedimentos, aquele que forma o amálgama, quando é aquecido, evapora, gerando uma fumaça do metal. Caso essa fumaça seja inalada, o metal poderá afetar os pulmões provocando uma pneumonia química. Por sua vez, o mercúrio metálico que é inalado cai na corrente sanguínea e pode ser distribuído por diferentes órgãos e sistemas, podendo afetar o sistema nervoso central (vertigens, convulsões, alucinações), os rins (insuficiência renal aguda), gerando um quadro de intoxicação aguda grave, com severas consequências. Nesses casos, são necessárias intervenções bastante agressivas, tais como: internação, uso de respiradores artificiais, quelantes para diminuir a quantidade de mercúrio circulante, entre outras. Por outro lado, há a exposição crônica que se dá por via digestiva, que está basicamente associada ao consumo do pescado contaminado, conforme falado anteriormente.
Saiba mais:
Projeto Ciência e Poesia: https://www.youtube.com/@cienciaepoesia/videos
Nota Técnica sobre a contaminação por mercúrio dos pescados da Amazônia: http://bit.ly/NotaGarimpo
Human Mercury Exposure in Yanomami Indigenous Villages from the Brazilian Amazon: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6028914/
Neurological Impacts of Chronic Methylmercury Exposure in Munduruku Indigenous Adults: Somatosensory, Motor, and Cognitive Abnormalities: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34639574/
Mercury Exposure in Munduruku Indigenous Communities from Brazilian Amazon: Methodological Background and an Overview of the Principal Results: https://www.mdpi.com/1660-4601/18/17/9222
Impacts of the Goldmining and Chronic Methylmercury Exposure on the Good-Living and Mental Health of Munduruku Native Communities in the Amazon Basin: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34501591/
Genetic Polymorphism of Delta Aminolevulinic Acid Dehydratase (ALAD) Gene and Symptoms of Chronic Mercury Exposure in Munduruku Indigenous Children within the Brazilian Amazon: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34444495/
Health Risk Assessment of Mercury Exposure from Fish Consumption in Munduruku Indigenous Communities in the Brazilian Amazon: https://www.mdpi.com/1660-4601/18/15/7940
Plano de erradicação da contaminação por mercúrio apresentado ao Ministério da Saúde: (Clique aqui)
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**