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Coqueluche: ressurgimento de doença evitável alerta saúde pública mundial

Pelo menos 17 países da União Europeia registraram aumento de casos de coqueluche entre janeiro e dezembro de 2023

30/07/2024

No primeiro semestre deste ano, o número de casos de coqueluche na cidade de São Paulo aumentou em impressionantes 1178%

Nos últimos anos, o mundo tem enfrentado um aumento nos casos de coqueluche, uma infecção respiratória altamente contagiosa. Pelo menos 17 países da União Europeia registraram aumento de casos da doença entre janeiro e dezembro de 2023. Neste período, foram notificados 25.130 casos, e somente entre janeiro e março deste ano, 32.037, principalmente em crianças com menos de 1 ano e entre 1 e 9 anos. Na China, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças informou que até fevereiro de 2024, houve 32.380 casos e 13 óbitos. Na Bolívia, de janeiro a agosto de 2023, houve 693 casos confirmados, sendo 435 (62,8%) em crianças com menos de 5 anos, e oito óbitos.

O aumento dos casos de coqueluche em todo o mundo preocupa as autoridades no Brasil, e o Ministério da Saúde recomenda um esforço das secretarias estaduais e municipais para ampliarem a vacinação. No Rio de Janeiro, a Secretaria Estadual de Saúde registrou um aumento de mais de 300% nos casos até julho deste ano, em comparação com todo o ano de 2023. Em São Paulo, a situação é ainda mais alarmante: na capital, houve um aumento de 1178% nos primeiros seis meses do ano. Foram registrados 165 casos na cidade, frente aos 14 casos no mesmo período do ano passado.

De acordo com a infectologista Dra. Marinella Della Negra, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER), o aumento das infecções pode ser atribuído a vários fatores. Existem algumas razões muito claras, já conhecidas, e outras que são fruto de pesquisas atuais. As clássicas incluem baixa cobertura vacinal, não atingir as metas de vacinação, migrações e imigrações de populações não vacinadas, especialmente na Europa, e o surgimento de variantes da bactéria que apresentam quadros clínicos diferentes e menos clássicos.

Sobre os principais fatores que contribuem para o ressurgimento da coqueluche em populações vacinadas, a infectologista admite que este é um tema complexo. “O que temos observado em locais com alta cobertura da vacina acelular é o surgimento de variantes imunologicamente diferentes que podem acometer tanto crianças quanto adultos vacinados, pois são antigenicamente diferentes. Além disso, os quadros clínicos não são os clássicos da doença, o que dificulta o diagnóstico”, esclarece. Ainda de acordo com a Dra. Della Negra, muitos profissionais de saúde mais jovens nunca tiveram contato com a coqueluche. “Além de não terem visto casos clássicos da doença, já que a vacinação resulta em quadros mais amenos, o diagnóstico acaba retardado. Tudo isso contribui para o aumento do número de pacientes e portadores de Bordetella circulante, como observamos atualmente no Brasil e no mundo”, diz.

A médica explica que as novas tecnologias, como a PCR, têm ajudado no diagnóstico precoce, desde que o médico suspeite e reconheça que, especialmente em crianças, uma tosse prolongada não é comum. “Os testes disponíveis, como os painéis, são muito úteis. Contudo, o mais importante é que o profissional de saúde suspeite, reconheça os sintomas, solicite o exame e investigue adequadamente, pois a tosse na coqueluche atual, especialmente em crianças vacinadas, não é a tosse clássica com episódios graves e prolongados de guinchos e vômitos. Hoje, elas apresentam um quadro mais ameno, com tosse contínua, que, embora desconfortável, não é tão severa quanto nos casos clássicos em crianças não vacinadas”, frisa. A médica ressalta ainda a importância de realizar a profilaxia dos contactantes.

Desafios enfrentados na luta contra a coqueluche

Um dos principais desafios das autoridades de saúde pública é conscientizar a população sobre a importância da vacinação. Apesar do surgimento de variantes da bactéria, que podem escapar parcialmente da imunidade conferida pela vacina acelular, a imunização regular continua sendo fundamental. “A vacina atual é muito eficaz. Mesmo que uma pessoa vacinada contraia a doença, os sintomas são muito mais leves do que em casos não vacinados. É essencial que as pessoas continuem se imunizando para prevenir a infecção ou, pelo menos, reduzir a gravidade dos sintomas. Casos graves em pessoas não vacinadas podem levar à morte. Precisamos garantir que a população compreenda a necessidade da vacinação”, enfatiza ao acrescentar a necessidade de campanhas informativas sobre os diferentes quadros clínicos da coqueluche, especialmente para os profissionais de saúde que atendem crianças.

Outro desafio importante é a identificação e o tratamento de portadores assintomáticos da bactéria, que podem transmitir a doença sem apresentar sintomas. Para a infectologista, a saúde pública deve focar na detecção desses casos, no tratamento dos doentes e na vacinação como medidas primárias para controlar a doença. Embora haja debates sobre a eficácia da profilaxia, a Dra. Della Negra acredita que a profilaxia com antibióticos por cinco dias para os contactantes é válida, especialmente para aqueles que cuidam de crianças, como pais, avós, professores e profissionais em creche. Para ela, é fundamental romper o ciclo de transmissão da Bordetella para prevenir quadros mais graves.

A resistência antimicrobiana é outra preocupação crescente, embora a infectologista esclareça que, atualmente, os antibióticos utilizados para tratar a coqueluche ainda são eficazes. Embora existam relatos na literatura de cepas de Bordetella pertussis que não respondem aos tratamentos convencionais, a infectologista menciona que esses casos ainda estão sendo estudados e, atualmente, não há uma lista definitiva de antibióticos alternativos. “Até o momento, a Bordetella pertussis responde bem aos macrolídeos e ao sulfametoxazol com trimetoprima. Estudos estão em andamento para entender melhor as variantes da bactéria, especialmente aquelas que podem infectar pessoas vacinadas e apresentar resistência aos tratamentos usuais. Há relatos iniciais de resistência na China e na Finlândia; contudo, não há evidências suficientes para mudar os tratamentos padrão”, assinala.

Por fim, a Dra. Della Negra salienta a importância da vigilância contínua e da pesquisa. “Os profissionais de saúde devem estar atentos à tosse prolongada em crianças e suspeitar de coqueluche, realizando os exames necessários para um diagnóstico precoce. A rede pública de saúde também deve facilitar o diagnóstico com a disponibilização de painéis de testes adequados. Pensar em coqueluche e investigar o agente é fundamental para romper a cadeia de transmissão e controlar a doença”, encerra.

Uma década de vacinação materna contra coqueluche reduziu sua eficácia?

Um estudo recente publicado na revista científica Nature intitulado “Maternal pertussis immunization and the blunting of routine vaccine effectiveness: a meta-analysis and modeling study trouxe novos insights sobre os impactos da imunização materna contra a coqueluche. A pesquisa, conduzida por um grupo de cientistas do Instituto Max Planck, revisou sistematicamente a literatura disponível sobre o risco relativo da coqueluche após a imunização primária em bebês nascidos de mães vacinadas em comparação com aqueles nascidos de mães não vacinadas. Os resultados mostraram uma incerteza estatística significativa, com um risco relativo médio ponderado de 0,71, indicando que a evidência atual pode não ser suficiente para excluir reduções modestas na eficácia da vacinação primária.

Para interpretar esses dados, os pesquisadores desenvolveram um novo modelo matemático que incluiu mecanismos explícitos de atenuação e avaliaram o impacto de curto e longo prazo da imunização materna na dinâmica de transmissão da coqueluche. Os pesquisadores analisaram dados de quatro estudos com um seguimento de até seis anos e encontraram uma considerável incerteza estatística, com um risco relativo médio ponderado de 0,71. Isso sugere que, embora a imunização materna proteja os recém-nascidos, pode haver uma redução modesta na eficácia das vacinas de rotina aplicadas em idades posteriores. O modelo revelou que as dinâmicas transitórias da doença podem mascarar os efeitos de atenuação por pelo menos uma década após a implementação da imunização materna. Portanto, a evidência epidemiológica atual pode não ser suficiente para excluir reduções na eficácia das vacinas de rotina.

Apesar da potencial redução na eficácia das vacinas primárias, o estudo prevê que a imunização materna continuará a ser uma estratégia eficaz para proteger os recém-nascidos não vacinados. Essas conclusões apoiam as recomendações de saúde pública que promovem a imunização materna como uma medida crucial para prevenir a coqueluche em bebês, especialmente em face dos surtos recentes. Este estudo sublinha a necessidade contínua de monitoramento e pesquisa sobre a eficácia das vacinas e as estratégias de imunização. Com os surtos recentes de coqueluche ao redor do mundo, entender as dinâmicas de imunização é vital para proteger as populações mais vulneráveis e garantir a eficácia duradoura das campanhas de vacinação.

Em outro artigo, intitulado “Pertussis vaccines, epidemiology and evolution, publicado em junho na revista Nature, os pesquisadores exploram a epidemiologia contemporânea da coqueluche e discutem as controvérsias em torno dos mecanismos responsáveis pelo ressurgimento da doença. O artigo destaca a importância da vacinação na prevenção da coqueluche, ao mesmo tempo que sublinha os desafios contínuos devido à evolução bacteriana e à necessidade de melhorias nas estratégias de imunização.

Sobre a doença

A coqueluche é uma infecção respiratória causada pela bactéria Bordetella pertussis, que tem como principal sintoma a tosse. Transmitida pelo ar, a doença se espalha facilmente quando uma pessoa infectada tem tosse ou espirra. Na fase inicial, os pacientes apresentam febre, coriza e tosse noturna, com um quadro semelhante à gripe, que dura cerca de uma semana. Depois disso, os acessos de tosse se agravam e, quando ocorrem, dificultam a respiração. O tratamento é feito com antibióticos e a recuperação costuma ocorrer em até seis semanas. No entanto, principalmente em crianças, a infecção pode evoluir para quadros graves e levar à morte. Apesar da febre ser considerada leve, a duração dos sintomas pode variar entre seis e dez semanas.

Felizmente, a coqueluche é facilmente prevenível por meio de vacinas. Os esforços globais de imunização em larga escala na década de 1940 reduziram as taxas de transmissão em 90% na maioria dos países. Infelizmente, por razões ainda desconhecidas, a doença vem encenando um retorno nas últimas duas décadas. Bebês, especialmente recém-nascidos, são mais vulneráveis à doença, dado seu desenvolvimento imunológico abaixo do ideal e falta de imunização. Para combater isso, várias nações (desde 2012) e a Organização Mundial da Saúde (desde 2015) recomendaram e iniciaram programas de imunização materna.

A imunização com a tríplice bacteriana infantil está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). O esquema é de três doses, aplicadas entre os 2 e 4 meses de idade. O diagnóstico da doença só é feito por meio de exames laboratoriais específicos para identificar a presença da bactéria causadora da doença, o que pode gerar subnotificação de casos. O tratamento é realizado com antibióticos.

No Brasil, o último pico de coqueluche foi em 2014, com 8.614 casos confirmados. De 2015 a 2019, os casos confirmados variaram entre 3.110 e 1.562. A partir de 2020, houve uma redução significativa dos casos devido à pandemia de Covid-19 e ao isolamento social. De 2019 a 2023, todas as 27 unidades federativas do Brasil notificaram casos de coqueluche. Pernambuco teve o maior número de casos (776), seguido por São Paulo (300), Minas Gerais (253), Paraná (158), Rio Grande do Sul (148) e Bahia (122). Nesse período, foram registradas 12 mortes pela doença, sendo 11 em 2019 e uma em 2020.

Saiba mais:

Confira “O perfil epidemiológico da Coqueluche no Brasil entre 2013 e 2022 e seus impactos de confirmação diagnóstica via exames laboratoriais publicado no Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**