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Temperatura mais elevada reduz a incidência e mortalidade por COVID-19? Quais as repercussões sobre os Trópicos?

A temperatura elevada seria protetora para a transmissão da COVID-19? Estudo examinou as ligações entre o clima e a gravidade dos casos da doença

10/11/2020
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Se os resultados se mantiverem, isso representa um achado importante ao mostrar que em uma variedade de configurações, há fortes evidências de um aumento na severidade de COVID-19 com temperatura baixa e umidade elevada

O inverno está se aproximando rapidamente no hemisfério norte, e os pesquisadores alertam que os surtos de COVID-19 tendem a piorar, especialmente em regiões que não têm a propagação do vírus sob controle. As infecções causadas por muitos vírus respiratórios, incluindo Influenza e alguns coronavírus, aumentam no inverno e diminuem no verão. Pesquisadores dizem que é muito cedo para dizer se o SARS-CoV-2 se tornará um vírus sazonal. Mas evidências crescentes sugerem que um pequeno efeito sazonal provavelmente contribuirá para surtos maiores no inverno, com base no que se sabe sobre como o vírus se espalha e como as pessoas se comportam nos meses mais frios.

Uma pré-impressão, sem revisão por pares, publicada no medRxiv intitulada Effects of environmental factors on severity and mortality of COVID-19, examinou as ligações entre o clima e a gravidade dos casos COVID-19. De acordo com o estudo, a gravidade da COVID-19 na Europa caiu significativamente entre março e maio e a sazonalidade do vírus é a explicação mais provável. Ainda segundo a pesquisa, uma barreira mucosa e uma barreira mucociliar podem significativamente reduzir a carga viral e a progressão da doença, e sua inativação pela baixa umidade do ar em ambientes fechados pode contribuir significativamente para a gravidade da doença.

Com o objetivo de avaliar a associação da umidade e temperatura ambiente com a gravidade da doença COVID-19, o estudo analisou dados individuais de 6.914 pacientes com COVID-19 internados em hospitais de Bérgamo (Itália), Barcelona (Espanha), Coburg (Alemanha), Helsinki (Finlândia), Milão (Itália), Nottingham (Reino Unido), Varsóvia (Polônia) Zagreb (Croácia) e província de Zhejiang (China) desde o início da pandemia e comparou com as temperaturas ambientes e umidade do ar calculada em ambientes fechados. Além disso, analisou as informações sobre a gravidade do COVID-19 do aplicativo COVID Symptom Study, que está coletando informações de 37.187 indivíduos no Reino Unido.

Caso os mesmos achados se repitam em outras investigações, isso representa um resultado importante ao mostrar que, em uma variedade de configurações, há fortes evidências de um aumento na gravidade de COVID-19 com temperatura e umidade baixas, e estaria associado aos meses de inverno de climas temperados, o que é comum em outras infecções respiratórias, como a gripe sazonal. Questionado se a incidência e a mortalidade pela COVID-19 seriam menores nos Trópicos devido à temperatura mais elevada, o primeiro autor, Domagoj Kifer, do Departamento de Biofísica da Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade de Zagreb, Croácia, descontrai ao dizer que nunca morou nos Trópicos, mas logo volta ao falar sério e diz que não há temperaturas tão frias nos Trópicos que necessitem aquecimento. “Por outro lado, na Croácia, temos temperaturas de inverno inferiores a 0°C. Quando a temperatura do ar aumenta de 0°C para 20°C, a umidade relativa diminuiria de um máximo de 100% para 29%. Viver em um ambiente tão seco poderia reduzir a funcionalidade do muco. Ao comparamos a mortalidade em países tropicais, verificamos que sempre foi mais baixa na onda de inverno no hemisfério norte”, destaca. Ainda segundo ele, em relação ao efeito da temperatura ambiente sobre a gravidade da COVID-19, há alguma certeza, mas a dimensão desse efeito parece ser bastante pequena em comparação com outros fatores. Por isso, de acordo com o pesquisador, é difícil dizer algo sobre o efeito da temperatura ambiente com base em dados disponíveis. “Além disso, a mudança na temperatura ambiente média diária deveria ser maior para fazer algum efeito – não creio que se experimente tal efeito isso nos Trópicos”, opina.

Ar quente e umidade

O ar quente tem maior capacidade de umidade do que o ar frio. Se o ar frio (baixa capacidade de umidade) fica quente (maior capacidade de umidade), ele se torna seco. O ar seco torna o muco mais seco.

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Crédito: Domagoj Kifer

O eixo horizontal (x) mostra a temperatura ambiente, enquanto o eixo vertical (y) mostra a umidade absoluta, ou seja, a massa de particulas de água por volume de ar. As curvas mostram a umidade relativa que é o percentual de gramas pelo total de gramas que podem estar contidos em 1 metro cúbico de ar em dada temperatura. Ao aumentar a temperatura, o mesmo metro cúbico de ar poderá conter mais gramas de água.

Se considerarmos 1 metro cúbico de ar do ambiente externo, onde está a 0ºC e com 100% de umidade relativa, você terá 5g de água; então, se esquentarmos esse ar a 20ºC, ele ainda conterá 5g de água, mas agora terá apenas 29% de umidade relativa, pois 1 metro cúbico de água a 20ºC suporta até 17,5g de água (estimado pelo gráfico), resultando em 5g/m³ dividido por 17,5g/m³, resultando em 0,2857 ou 28,57% (acima de 29%).

Ou seja, se você tem ar quente com 100% de umidade relativa, nenhuma das moléculas de água consegue deixar o muco para o ar (o que tornaria o muco mais seco); em contrapartida, se você tem ar fio (a 10ºC) com 100% de umidade relativa (considere 10g/m³ como umidade absoluta), e aquecer esse ar à temperatura corporal de 37ºC, ele ainda terá cerca de 10g/m³ de umidade absoluta, mas que será aproximadamente 20% da umidade relativa (estimado do gráfico), o que permitiria que a água do muco fosse transportada para o ar, tornando o muco mais seco. Ao exalar o ar, que novamente se tornará frio (ambiente externo a 10ºC) – aquele ar conterá mais água do que é capaz de suportar a 10ºC, e o excesso de água se condensará em pequenas gotículas e parecerá uma névoa – o que é comum durante o inverno na Croácia. Essa água condensada é perdida do muco do nosso sistema respiratório, e por conta dessa água perdida, nosso muco se torna mais seco.

Combinação clima e população mais jovem

Como explicar a diferença entre a África e a América Latina e por que a África teve menos casos em relação a outros países? Kifer atenta seria errado comparar o número de casos ou o número de mortes, uma vez que as políticas de testes são provavelmente muito diferentes entre os países e os continentes. No entanto, ele admite que um número muito pequeno de pessoas morreu na África, o que, no seu entendimento, poderia ser uma combinação de clima e população mais jovem. “O ourworldindata.org aponta uma pequena redução na taxa de letalidade, no entanto, a razão potencial para isso pode ser a mudança na política de testes na África do Sul, pois o número de testes aumentou cerca de 2,5 vezes em meados de julho (inverno) em comparação com maio (outono). Existem muitos outros efeitos que também podem afetar a taxa de mortalidade, além da temperatura”, admite Kifer.

Ainda exemplificando os Trópicos, de acordo com ourworldindata.org, a Austrália decolou no final do inverno e teve uma taxa de letalidade de 3% em setembro (final do inverno no hemisfério sul) e 1,5% em maio (outono), apesar da testagem ter sido mais difundidos em setembro. Contudo, é difícil tirar quaisquer conclusões a partir desses números, uma vez que não é apenas função dos efeitos climáticos, mas de muitos outros também. Em relação às principais dificuldades em estimar o impacto do clima na disseminação da COVID-19, Kifer explica que é impossível estimá-la porque não se pode manter constantes todos os outros efeitos na disseminação, tais como, por exemplo, as decisões do governos sobre isolamento e distanciamento social, melhoria e cumprimento de protocolos de prevenção e higiene ambiental, entre outros.

Baixas temperaturas diminuem a limpeza normal do muco de vírus infectantes nas passagens nasais

De acordo com o estudo, ambientes internos muito secos criados pelo ar condicionado em países quentes (como o sul dos Estados Unidos) também podem contribuir para a gravidade da doença. De acordo com Kifer, o ar frio seco é na realidade mais prejudicial à nossa mucosa do que o ar quente e seco. Porém, em climas quentes, isso pode ser corrigido abrindo as janelas com frequência, o que restauraria a umidade interna. A publicação sugere ainda que o SARS-CoV-2 é mais letal no inverno porque se trata de um vírus sazonal. “A barreira de muco é a primeira linha de defesa. Acreditamos que devido ao ar seco (comum no inverno) a funcionalidade do muco seja reduzida – o que favorece a sazonalidade do vírus”, observa.

O estudo mostra uma associação entre temperatura e gravidade dos sintomas, mas não demonstra porque isso acontece. Indagado se as baixas temperaturas diminuem a limpeza normal do muco de vírus infectantes em nossas passagens nasais, Kifer comenta que, embora muitas vezes considerado uma barreira física, o muco é, na verdade, uma barreira biológica ativa que liga os vírus e bactérias às mucinas, um grupo de proteínas altamente glicosiladas que são segregadas às nossas barreiras mucosas. “As mucinas imitam a glicosilação da superfície celular e ao atuarem como chamariz para as lectinas virais prendem as partículas virais, que são depois transportadas para fora das vias respiratórias por eliminação mucociliar. Contudo, esta barreira só funciona se estiver bem hidratada para manter a sua integridade estrutural e permitir um fluxo constante de muco que remove vírus e outros agentes patogénicos das nossas vias respiratórias. Se expostas ao ar seco, estas barreiras secam e não podem desempenhar as suas funções de proteção”, acrescenta.

Quando a temperatura ambiente exterior cai, tendemos a aquecer esse ar frio quando este chega às nossas casas. O ar mais quente tem maior capacidade de umidade em comparação com o ar frio e ao aumentar a temperatura do ar estamos a reduzir a umidade relativa – estamos secando o ar, o que afeta a função do muco. “Embora as baixas temperaturas não diminuam diretamente a função protetora do muco, elas desempenham algum papel na mesma devido à capacidade relativamente baixa de umidade”, detalha Kifer ao complementar que aquecer não necessita acontecer “artificialmente” através de sistemas de climatização – quando respiramos ar frio ele se torna quente dentro do nosso corpo – e ganhando maior capacidade de umidade – e esse ar quente deixará nosso muco mais seco. “Em nosso estudo, não demonstramos por que isso acontece, estamos apenas sugerindo isso como mecanismo potencial”, justifica.

Se houver de fato uma onda de infecções, podemos ter um golpe duplo de doenças respiratórias graves. “A segunda onda poderia ser a resposta para a eliminação das restrições de movimentação – pelo menos na Croácia e provavelmente irá influenciar o surgimento de vírus neste inverno junto com o SARS-CoV-2. Felizmente, as mesmas medidas (ou seja, distanciamento social, higiene etc) nos protegem de todos os vírus ao mesmo tempo”, conclui. Mas o fato é que qualquer aumento na gravidade e mortalidade não seria apenas uma tragédia para aqueles que são afetados, mas também representam um fardo adicional para nossos sistemas de saúde, pois novos surtos e uma potencial segunda onda de infecções por COVID-19 nos próximos meses é quase que inevitável.