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Delírio Parasitário: bichos reais ou imaginários?

Delírio Parasitário consiste em queixas de “bichos” no corpo, quase sempre na pele, mas às vezes em orifícios e internamente

06/05/2024

O delírio parasitário é uma síndrome importante e de ocorrência pouco conhecida, que merece atenção de entomologistas e clínicos, especialmente dermatologistas e psiquiatra

Os humanos podem ser invadidos por numerosos agressores, incluindo ácaros, insetos e helmintos, que podem causar vários sintomas, como eritema, prurido, furúnculos, etc. No entanto, além das invasões por agressores reais, uma série de lesões habituais de origem não invasiva podem ser atribuídos a agressores externos, nada se encontrando mesmo após numerosos e cuidadosos exames na pele.

Historicamente, a síndrome foi documentada pela primeira vez em 1656 pelo inglês James Harrington (1611-1657). Em 1894, foi chamada de acarofobia (medo de ácaros) por Georges Thibière (1856-1926) e, em 1896, de neurodermia parasitofóbica, por León Perrin (1853-1922). É o chamado delírio parasitário (DP), que passou a ser denominada em 1946 síndrome de Ekbom, em homenagem ao grande neurologista sueco Karl-Axel Ekbom (1907-1977), que publicou descrições seminais em 1937-1938 (além de descrever a síndrome de pernas inquietas, ou de Willis-Ekbom). O delírio parasitário pode ser incluído no “delírio de infestação” (DI), que inclui a suposta presença de não parasitos (bactérias, vírus, fibras etc.) no corpo.

DP/DI não foi incluída na 10ª Classificação Internacional de Doenças (Trabert, 1995) (doença delirante persistente, por alguns incluída no código F22), e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Sociedade Americana de Transtornos Mentais, está classificada como Transtorno Delirante, do tipo somático.

Às vezes, é utilizado para DI o nome Morgellons, relacionado originalmente à extrusão de fibras pela pele, (Ferreira et al., 2016); sua associação com Borrelia spp. precisa ser mais bem verificada (Middelveen et al., 2018).

A pele é o maior órgão do corpo, constitui a primeira barreira do organismo contra o meio ambiente e tem estreita ligação com o sistema nervoso. Isto já foi notado por um príncipe persa em 1.700 a.C. e por Hipócrates e Aristóteles, com citação na Bíblia e em Rei Lear e Romeu e Julieta, tendo sido proposta a especialidade de psicodermatologia (Munoli, 2020; Hasbiallah, 2022).

É usualmente considerado ocorrer a DP predominantemente em pacientes de terceira idade, daí o nome dado por Ekbom de präseniler Dermatozoenwahn [delírio dermatozóico pré-senil] do sexo feminino e em consumidores de cocaína ou anfetaminas, mas os estudos indicam sua ocorrência em ambos os sexos e em todas as faixas de idade, com predominância significativa (2,5:1) no sexo feminino no grupo acima de 50 anos (Trabert, 1995). É possível que a maior incidência em idades mais avançadas seja devida à maior ocorrência de neuropatia associada a diabetes mellitus, má irrigação cutânea, sensação de decadência e uso de muitos medicamentos (Hinkle, 2009), Além dos fatores idade, raça e gênero, também a sazonalidade da afecção foi analisada (Goddard, 2002).

Ainda que não seja uma síndrome comum, foi publicada uma metanálise de 1.223 casos nos cem anos anteriores, arrolando também 12 nomes, em vários idiomas, já atribuídos à síndrome (Trabert, 1995). Apesar do interesse dos psiquiatras na síndrome, os pacientes são em geral atendidos por dermatologistas, e às vezes por entomologistas, por não considerarem ter problemas psiquiátricos (Trabert, 1995). Foram analisados 59 casos observados em 20 anos em dois laboratórios de entomologia na Itália (Romiti et al., 2022). A incidência por 100.000 habitantes em 15 estudos arrolados variou de 0,148 a 32,3-80,4 (Murphy-Hollies et al., 2024). Uma revisão de atividades de um laboratório australiano em 30 anos (1988-2017) incluiu referências para o estudo de DP (Geary et al., 2021).

A atual obsessão por limpeza e esterilidade, promovida pelos produtores de materiais que “eliminam 99,99% das bactérias”, e a associação dos insetos com infecções, além do uso excessivo de inseticidas (usualmente com piretroides, que causam prurido) aumentam a quantidade de casos de DP. O formigamento, mais comum em mulheres após a menopausa e em consumidores de metanfetaminas, também pode levar a DP (Geary et al., 2021).

No entanto, como os pacientes procuram vários especialistas, na esperança de ter solução para seu problema, às vezes é difícil produzir estatísticas precisas de prevalência e incidência (N. Brownstone – comun. pessoal). Tentativas de desenvolvimento de plataformas para esta organização dos dados foram desenvolvidas (Kohorst et al., 2012; Brownstone & Koo, 2022), assim como um guia para atendimento de pacientes para o Reino Unido (Ahmed et al., 2022). Foi publicado um esquema de manejo de DP na Austrália (https://www.health.wa.gov.au/Articles/A_E/Delusional-Infestation-guide-for-Pest-Management-Technicians).

A DP consiste em queixas de “bichos” no corpo, quase sempre na pele, mas às vezes em orifícios (Verma et al, 2019) e internamente (Pereira et al., 2020). Os pacientes acreditam estar com agressores no corpo, e para registrar sua presença ou tentar eliminá-los se coçam em excesso, utilizam de forma off-label pesticidas de amplo espectro ou outras substâncias perigosas, como gasolina, podem abandonar ou destruir a casa e pertences, ter insônia e baixo desempenho em empregos.

Costumam levar material para médicos e entomologistas, na esperança de esclarecimento e cura, na chamada “síndrome da caixa de fósforos” e, em tempos de facilidade para obter fotos, de “sinal de imagem digital”. Em um laboratório americano, a parcela de queixas enviadas por e-mail ultrapassou a das que chegaram por correio a partir de 2020 (Murphy-Hollies et al., 2024).

Os casos podem ser individuais ou induzidos por outros pacientes, em geral parentes mais velhos, quando então se fala em folie à deux; primeiramente descrita por Baillanger em 1860 como folie communiquée, tem sido observada em 5-15% dos casos de DP (Chuleung et al., 2003). Até casos em animais de estimação têm sido observados, em que os tutores concluem erroneamente haver invasores e tentam eliminá-los (Lepping, 2020).

Os pacientes não se conformam com o diagnóstico de ausência de agressores, insistindo com os mesmos profissionais ou procurando outros. Os exames, de preferência de material obtido da pele pelo profissional, precisam ser muito cuidadosos. Por exemplo, caso de suposto DP foram provocados por infestação pelos ácaros Dermanyssus gallinae (Navarrete-Dechent & Uribe, 2018) e larvas de moscas foram encontradas no intestino de um paciente na Índia. Insetos colêmbolos foram encontrados na cabeça de pacientes com aparente DP no Irã (Semati et al., 2023). Tisanópteros e outros insetos e ácaros devem também ser pesquisados no ambiente frequentado pelos pacientes, como no caso de soldados (americanos em treinamento no Havaí) com múltiplas lesões cutâneas (Carness et al., 2016), com suspeita nesse caso e com relato citado de DP associada aos primeiros insetos.

Os sintomas são também causados por pelo menos 19 causas, incluindo alcoolismo, infecção por HIV, deficiência de ferro ou vitamina B12, opioides, mal de Parkinson e seu tratamento, hiper e hipotireoidismo, demência por corpos de Lewi etc., e numerosos medicamentos, alguns de uso comum, como ibuprofeno, sinvastatina e omeprazol; outras etiologias de prurido e parestesia, também fatores que podem desencadear a DP, foram arroladas (Kinsey, 2016). A convivência com ectoparasitos, como percevejos, pulgas e piolhos, pode também precipitar o DP (Doggett, 2021).

A intoxicação por certos componentes de hidróxido de cálcio dos selantes dentários, além de outras substâncias, tem sido identificada como causa de “síndrome neurocutânea”, que pode fazer pensar em DP. Foi considerado haver sempre uma causa tóxica ou presença de ectoparasitos para as lesões, que precisariam ser investigadas e eliminadas (Amin, 2021).

A partir dos sintomas, o paciente pode apresentar delírio, que é precipitado por males de várias origens, como abuso sexual, dificuldades econômicas, solidão e uso de várias substâncias psicoativas, como heroína, Zolpiden e cocaína, de que está sendo agredido por invasores, tentando desesperadamente obter diagnóstico e cura. A negação da utilização de drogas ilegais pelos pacientes pode complicar a determinação da etiologia. O antibiótico trimetoprina-sulfametoxazol, utilizado por três dias no tratamento de celulite de pálpebra esquerda causou psicose, com sensação de “bichos” no mesmo olho, que cedeu oito horas após a interrupção; a paciente, de 53 anos, utilizava vários outros medicamentos (Iqbal et al., 2022).

A constatação de que nada foi encontrado dificilmente é aceita pelo paciente (“a ausência de prova não é a prova de ausência”); a realização de biópsia, com acompanhamento do paciente, pode ajudar a convencê-lo (Shen et al., 2023). Os entomologistas, que podem ser o último recurso dos pacientes, com menos prática de atendimento de pacientes que os clínicos, precisam ser compassivos; no fim das contas, em boa parcela deles se encontra parasitos.

É preciso sempre considerar a possibilidade de ideação suicida, se nada for encontrado (Murphy-Hollies et al., 2024). Podem também ser promovidos processos contra os profissionais, quando não conseguem resolver a questão ou são considerados omissos (Shelomi, 2015). A interação entre dermatologistas e outros especialistas (como os entomologistas) com os psiquiatras é desejável, em clínicas multidisciplinares, algo difícil nos Estados Unidos (Starzyk & Koo, 2021).

O atendimento ao paciente precisa ser muito cuidadoso, com os seguintes passos: 1) oferecer acolhimento e escuta ativa, validando a queixa e o sofrimento do paciente, mas, também, avisando serem necessários maiores estudos, pois o paciente já está muito sensível com as negativas de doença; 2) se o paciente mostrar material coletado, deve-se fornecer lâminas com fita adesiva transparente, para que ele colete o material com cuidado para exame futuro ao microscópio, mostrando o material para ele quando for examinado; 3) procurar causas possíveis do problema (hematócrito completo, painel metabólico completo, hematócrito de sedimentação, hormônio estimulante de tireoide, urina, HIV, sorologias de hepatite, níveis de vitamina B12 e folato); 4) verificar se o caso é primário, usualmente em mulheres de idade avançada, ou secundário, por algum problema metabólico; 5) mesmo com quadro sugestivo de psicose, não se deve falar nisto no primeiro encontro, para evitar estresse e desistência (Jeon et al., 2018; Brownstone & Koo, 2023). O manejo de pacientes com DP foi revisado, ressaltando a necessidade de os dermatologistas terem cuidado com o atendimento e atenção com a psicodermatologia, pelos scores de satisfação utilizados nos Estados Unidos (Brownstone et al., 2021).

Os principais distúrbios psiquiátricos associados a DP são depressão, esquizofrenia e ansiedade. A fisiopatologia da síndrome ainda não é bem conhecida e precisa ser mais bem estudada (Assunção et al., 2021). A origem neuropática do prurido, às vezes associado a dor, foi revisada, sendo necessário esclarecer o mecanismo fisiológico (Meixiong et al., 2020), e drogas psicoativas podem minorar o prurido (Reszke & Szepietowski, 2019). Uma revisão de dados de imagens cerebrais de casos de DP (DI no trabalho) indicou disfunção da rede fronto-tálamo-estriado-parietal, com maior ativação de áreas relacionadas com o prurido (Chan et al., 2020)

Em conclusão, o delírio parasitário é uma síndrome importante e de ocorrência pouco conhecida, que merece grande atenção de entomologistas e clínicos, especialmente dermatologistas e psiquiatras. A raridade de relatos de DP na América Latina (Assunção et al., 2021) e a escassez de conhecimento sobre a síndrome recomendam a ampliação da divulgação.

Agradecimentos: A Stephen Dogget e Nicholas Brownstone pelo fornecimento de informações e bibliografia.

Carlos Brisola Marcondes

Departamento de Microbiologia, Parasitologia e Imunologia (aposentado)

Centro de Ciências Biológicas

Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis (SC)

Edson Pillotto Duarte

Serviço de Neurologia

Hospital Universitário

Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis (SC)

Mariana Valença

Psicóloga e Neuropsicóloga

CEDRA – Centro de Avaliação, Reabilitação e Desenvolvimento da Aprendizagem.

Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis

Florianópolis (SC)

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**