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Diarreia em paciente vivendo com HIV

A espiroquetose intestinal é uma doença rara, mas possível de ser diagnosticada se o médico estiver atento a este diagnóstico e alertar o patologista sobre esta possibilidade

14/04/2022
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Fragmento de mucosa do cólon Observa-se a grande quantidade de espiroquetas atapetando a mucosa colônica

Autores:

Lucas Martins Carlos da Silva 1; Vanessa Campos Andrade de Melo Pérsico 2; Jéssica Lajus Fortes Lima 3; Kleber Giovani Luz 4.

Estudante do nono período do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Médica Infectologista da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/UFRN.

Médica Patologista do Instituto de Diagnóstico Anatomopatológico MIDAP- Florianópolis – Santa Catarina.

Médico Infectologista, Professor Associado IV do Instituto de Medicina Tropical da UFRN.

Relato do Caso:

Paciente do sexo masculino, 49 anos, natural de Natal e procedente de Natal – Rio Grande do Norte, burocrata, faz sexo exclusivo com homens, com parceiro fixo há alguns anos. Vive com HIV, diagnosticado em 2015. Em uso de TARV (TDF/3TC + DTG). Nunca apresentou doenças oportunistas nem necessitou de internação pela doença. Fez uso de EFV entre 2015 e 2016, mas trocou por dolutegravir por ter apresentado pensamentos suicidas. Últimos exames: Carga Viral indetectável, CD4+ 594 (Dez/2021). Os sintomas tiveram início em janeiro de 2020.

Queixa principal:

Aumento da frequência de evacuações e fezes amolecidas há cerca de 20 dias

História da doença atual:

Paciente relata que há 20 dias apresenta aumento do número de evacuações para 3 vezes ao dia, apresentando fezes sempre pastosas e distensão abdominal em alguns momentos. Fezes com aspecto gorduroso, em pouca quantidade e não apresentava restos alimentares. Nega presença de: pus, sangue, muco, febre ou tenesmo. O quadro piora com a ingestão de leite e de bebidas alcoólicas.

Paciente queixa-se de que há 15 anos, seu hábito intestinal é de 2 evacuações ao dia, alternando entre fezes formadas e fezes pastosas. Sem distensão abdominal, pus, sangue, tenesmo. Em algumas ocasiões fez uso de antiparasitários com discreta melhora, mas sempre voltando ao mesmo hábito depois de algum tempo. História de Entamoeba coli e Entamoeba histolytica em um protoparasitológico anterior, com coprocultura negativa.

Em Dezembro/2021 apresentou quadro de rinossinusite aguda tratada com amoxicilina e clavulonato, havendo resolução do quadro respiratório.

Não sabe precisar se houve relação do uso da medicação com o aparecimento da diarreia.

Antecedentes mórbidos: Hipertensão arterial sistêmica em uso de candesartana, hipertrigliceridemia em uso de fenofibrato 160 mg.

Antecedentes familiares: pai e tia cardiopatas. Mãe com Parkinson. Irmãos com hipertensão arterial sistêmica e hipercolesterolemia. O Parceiro também tem diagnóstico de infecção pelo HIV e está em uso regular de medicação.

Hábitos de vida: dieta rica em carboidratos (pizzas, massas e refrigerante). Pedala e faz musculação. Bebe 1 taça de vinho três vezes na semana e nega tabagismo. Possui 2 cães saudáveis e nega contato com cães doentes. Vacinação atualizada

Traz exames de consulta anterior.

Exame físico:

Bom estado geral, vigil, consciente e orientado, corado, anictérico, acianótico, hidratado, sem linfonodomegalias palpáveis, Tempo de enchimento capilar menor que 2 segundos.

Sinais vitais: Frequência cardíaca: 84 bpm; Frequência respiratória: 14 ipm; Pressão arterial: 130×80 mmHg

Cavidade oral: dentes bem preservados e ausência de placas ou lesões em toda a boca

Aparelho cardiovascular: Rítimo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas, sem sopros.

Aparelho respiratório: murmúrio vesiculares presente e simétrico, sem ruídos adventícios

Abdome: Discreta distensão abdominal, depressível. ruídos hidroaéreos presentes, timpânico, Espaço de Traube livre, dor discreta à palpação e ausência de visceromegalias. DB –

Membros inferioresI: sem edemas e sem sinais de trombose venosa profunda

Neuro: pupilas fotorreagentes e isocóricas. Sem alterações de sensibilidade e motricidade

Ausência de lesões de pele

Exames complementares:

Carga viral indetectável; CD4+ 594; CD8+ 643, relação CD4/CD8 0,92 (Dez/2021)

(18/01/2022): Hb 15,1; Ht 45,1%; VCM 91,5; HCM 30,6; leuco 5780; seg 62%, bastões 1%, eosinófilos 1%, basófilos 0%, linfócitos 30%, monócitos 5%; plaquetas 313000; PCR 6,7 (VR < 10); Proteínas totais 6,5; albumina 3,9; globulina 2,6; VDRL NR; Sangue oculto nas fezes +; gordura fecal negativo; Anti transglutaminase IgA NR; Anti gliadina IgA NR; Anti endomísio NR; Calprotectina 689 (reagente quando > 50); tolerância à lactose: 96 (jejum), 101 (15 min), 100 (30 min), 99 (60 min) – deficiência quando glicemia sobe < 20-25; Cr: 1,2 (TFG: 70); ureia 46; GGT 31; TGO 26; TGP 29; Glicose: 95; HbA1c 5,8%; CT: 208; LDL:134,8; HDL: 43; TG 166; TSH 2,52; T4L 1,12; Vit D 36,7

Colonoscopia: Sem alterações macroscópicas. Aguarda resultado da biópsia

Coprocultura negativo para Salmonella e Shigella e E. coli invasora

Antígeno para Clostridium difficile negativo (por isso não realizou toxinas A e B)

Aguarda resultado dos painéis multiplex

Sorologias: Anti HCV NR; Toxo IgM e IgG negativos; CMV IgM – e IgG +; HTLV negativo; Chagas e esquistossomose negativo

Biópsia da ileocolonoscopia:

Cólon direito: mucosa exibe infiltrado inflamatório misto leve e presença de espiroquetas atapetando partes da superfície epitelial, compatível com espiroquetose intestinal. Sem achados de colite microscópica

Cólon esquerdo e reto: mucosa exibe infiltrado inflamatório misto leve e presença de espiroquetas atapetando partes da superfície epitelial, compatível com espiroquetose intestinal. Sem achados de colite microscópica (figura 1)

Figura -01 – Fragmento de mucosa do cólon. Observa-se a grande quantidade de espiroquetas atapetando a mucosa colônica.

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Conclusão: Diante desse caso, vemos a importância de seguir um passo-a-passo na investigação de doenças e de ter em mente não apenas os diagnósticos mais comuns. Pacientes que vivem com HIV, possuem uma maior probabilidade de ser infectados por microrganismos atípicos, os quais identificaremos, se seguirmos uma lógica de investigação baseada na síndrome apresentada pelo paciente, como a síndrome diarreica, nesse caso.

A espiroquetose intestinal é uma doença rara, mas possível de ser diagnosticada se o médico assistente estiver atento a este diagnóstico e alertar o patologista sobre esta possibilidade. Acomete principalmente imunodeprimidos, em especial, homens que fazem sexo com homens. É possível que neste caso em especial uma imunodeficiência local, ou seja, na mucosa tenha facilitado o surgimento da doença, visto que a contagem do CD4+ no sangue periférico estava dentro dos níveis normais, embora houvesse diminuição da relação CD4+/CD8+. Neste caso o paciente foi tratado com metronidazol por via oral com boa resposta clínica.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**