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Difícil equilíbrio entre ciência, economia e política em tempos de pandemia

A ciência tornou-se a grande protagonista pautando o debate político e propondo formatos necessários e urgentes para políticas públicas e econômicas

10/08/2020
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A ciência sozinha não resolve todos os problemas, são igualmente necessárias políticas públicas adequadas baseadas no conhecimento produzido, bem como orientação aos políticos por parte dos cientistas

A ciência, que já andava tão contestada, se demonstra imprescindível no contexto da pandemia, maior desafio da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial e que vem produzindo repercussões e impactos globais, não apenas de ordem epidemiológica, mas também política e econômica. Texto assinado pelo pesquisador da Fiocruz Minas, Dr. Rômulo Paes, destaca que “as crises sanitárias consequentes das grandes epidemias e pandemias dos séculos XX e XXI guardam muitas semelhanças entre si. Elas promovem ora convergência ora confronto entre duas das mais influentes ações sociais organizadas: a ciência e a política. Como qualquer evento de grande impacto social, as doenças são matéria da política, tanto no sentido da ação pública voltada à disputa de poder, como a ação pública coordenada em resposta às demandas sanitárias e sociais que criam. É preciso que haja um acordo mínimo para que o primeiro conceito de política não inviabilize o segundo”.

Os cientistas que aconselham sobre a COVID-19 enfrentam uma situação muito complexa porque tudo acontece de forma muito rápida. A epidemiologia é atualizada quase em tempo real, mesmo quando os governos tentam ajustar as políticas baseada na ciência, os dados de infecção são revisados e revistos com base em novos fatos. Então qual é o peso da opinião dos cientistas nas decisões políticas? As autoridades públicas devem seguir sistematicamente os especialistas? Será que os cientistas receberam ou deram lição de política? É fato: a pandemia confronta os governos com questões ásperas. No caso específico da COVID-19, há ainda o agravante da incerteza, embora a ciência tenha avançado muito nesses seis meses de convívio e contato com essa doença.

Para o professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e editor associado do American Journal of Public Health, Kenneth Rochel de Camargo Jr., a questão da política sempre esteve contemplada para a maior parte das pessoas que trabalham, principalmente, na área de saúde Coletiva ou de Saúde Pública. “O Sistema Único de Saúde (SUS), política de saúde, foi uma das maiores contribuições da Saúde Coletiva”, lembra. Ainda segundo o professor, o problema é que a política se transformou de forma que a perspectiva sobre a ciência ficou partidarizada e, assim, aceitar ou não achados científicos passou a ser uma questão de ter ou não determinada afiliação política.

Na opinião do Dr. Camargo, a participação de epidemiologistas e virologistas nos governos é fundamental. “É esse corpo técnico, com formação em áreas específicas da saúde, que ajuda na formulação de políticas. Mas ele atenta: em vez de se tornarem referência – seria ótimo se as pessoas dessem ouvido aos experts –, no Brasil e nos Estados Unidos ocorre o contrário, os profissionais estão sendo ameaçados por informar corretamente a população sobre riscos da pandemia. “Vi colegas nos EUA, funcionários da Saúde Pública, pedir demissão dos cargos porque sofreram ameaças, inclusive de morte, por falar o óbvio, sobre a necessidade do distanciamento, sobre o uso de máscara de proteção”, lamenta.

A opinião dos pesquisadores em meio à pandemia acaba por afetar diretamente as opiniões dos cidadãos, as perspectivas das empresas, as políticas governamentais e a economia. Isso é natural e razoável. Mas o Dr. Camargo aponta aspectos que devem ser levados em consideração. “Quando uma questão envolve o coletivo e tem componente técnico, entendo que, minimamente, quem é expert em determinada área deve ter sua voz considerada”, salienta. Ainda de acordo com o professor, o problema envolve duas ordens: uma quando se afirma algo sem base sólida e garante falar em nome da ciência – como aconteceu com a cloroquina, que iniciou com a publicação de artigos e com declarações sem base factual e sem estudos adequados. A outra, quando há distorção do conhecimento científico propositalmente, seja econômico, político, ou outra ordem, que acarreta confusão na população. O Dr. Camargo reconhece que o grande problema é o cientista ‘mercenário’, contratado não para produzir pesquisa, mas para provocar a impressão de que existe controvérsia, divergência ou discordância onde ela não existe. Grande exemplo disso foi dado pela indústria do Tabaco, quando existiam avalanches de evidências que mostravam a relação do tabagismo com várias doenças e o esforço da indústria em tentar suscitar a ideia de que as evidências não era um conhecimento solidamente estabelecido.

Caos entre ciência, polícia, economia e pandemia

O Dr. Camargo explica que o caos se dá porque existem interesses conflitantes. Para ele, se os vários atores envolvidos colocassem o bem-estar geral em primeiro lugar dificilmente haveria uma situação de tantos conflitos. “Existem interesses econômicos e políticos de que as pessoas não sigam as recomendações de confinamento que vão na mesma direção, e de outro lado as pesquisas que apresentam dados robustos sobre o desenrolar da pandemia. Isso provoca grande desinformação, e envolve atores políticos propensos em gerar confusão para que não se faça o que deve ser feito”, observa. Em relação à ciência, o professor admite que as recomendações mudam ao longo do tempo e isso é da natureza da própria investigação científica. A recomendação do uso de máscaras por todas as pessoas é um exemplo disso.

Questionado sobre os principais desafios para a ciência que na pandemia acabou tragada pela política e pela economia, o Dr. Camargo é categórico ao afirmar que o maior deles é fazer com que as pessoas entendam e acreditem no que evidências e pesquisas demonstram. Para ele, outro desafio é comunicar isso e a dificuldade está na interação, pois a ciência tente a se encastelar e ficar dentro do seu mundo e não se dirigir de forma adequada à população. “Por exemplo, devemos apresentar não apenas o resultado da pesquisa, mas como se chegou à determinada conclusão. Da mesma forma, a testagem de medicamentos deveria divulgar melhor como os testes são realizados e o que garante que essa ou aquela droga tem eficácia, se há ou não risco, e não apenas falar sobre o resultado do teste do medicamento”, exemplfica o pesquisador.

Dois sociólogos da Universidade do Reino Unido que estudam a ciência e escrevem sobre o “Papel da expertise” relatam que existem dois extremos igualmente desejáveis: achar que toda decisão que envolve questões técnicas não deve ouvir cientistas porque fazem parte apenas de uma vontade política. O outro é excluir setores importantes da população e deixar tudo na mão do técnico. Os sociólogos chamam a primeira de “populismo tecnológico” e a segunda de “fascismo tecnológico”. O professor Camargo ressalta que os dois extremos devem ser evitados. “O risco está em incorrer em uma dessas duas armadilhas, ou seja, achar que a solução para as políticas públicas é simplesmente colocar um cientista mandando em todo o mundo ou o contrário, a subordinação da ciência a interesses políticos”, completa. Realmente temos exemplos históricos de que esses dois extremos são igualmente ruins.

Falando em história, ela tem nos ensinado muito. A experiência mundial com grandes pandemias deste nível de magnitude de risco à saúde é bastante antiga. Notamos que reações existentes hoje já eram praticadas em 1918 (Gripe Espanhola). Exemplos não faltam: pessoas que não queriam ficar em casa, usar máscara, e diga-se que naquela época havia muito menos conhecimento do que agora. Outra experiência foi durante a epidemia de HIV/AIDS, quando foi observada uma série de desinformação e teorias conspiratórias com relação à origem do vírus e a ideia de que ele teria sido produzido para ser utilizado como arma de guerra. Uma série de equívocos também em relação a possíveis tratamentos que ao mesmo tempo afirmavam a eficácia de tratamento sem comprovação científica e negavam a eficácia de tratamento comprovados. “Infelizmente agora vemos algumas dessas práticas se repetindo e a grande dificuldade que encontramos é como transformar essas relações. Hoje, lamentavelmente, o investimento político na negação da ciência passou a ser muito maior do que era há 30 ou 40 anos. Gostaria que houvesse um repensar da questão das relações econômicas, da própria política, do uso da ciência, mas infelizmente não vejo nenhuma indicação de que isso possa acontecer, e assim como houve em outros momentos da história, uma vez passada a emergência, é possível que as pessoas retornem aos que estavam fazendo antes”, assinala o Dr. Camargo.

Em relação à economia em tempos de pandemia, do ponto de vista Capitalista, as pessoas devem permanecer produzindo, consumindo e, criar restrições às pessoas impacta neste processo de circulação de mercadorias. Mas em tempos de pandemia isso foi demonstrado não ter dado muito certo, e serviu quase como um experimento natural, como aconteceu nos países Escandinavos, em que a Suécia adotou uma conduta e os demais países outra, e a Suécia registrou mortalidade maior adotando uma política mais liberal e que, do ponto de vista econômico, não fez diferença alguma. Para o Dr. Camargo, a questão está em rever determinados dogmas econômicos bastante arraigados e criticados. Segundo ele, a fragilidade desse mecanismo econômico que move a economia mundial ficou evidente em 2008 e parece que nada foi aprendido e as pessoas que tomam decisões não fizeram as modificações necessárias. Ele enfatiza que a economia precisa estar à disposição das pessoas e não o contrário.

“Quando se tem determinado interesse econômico que privilegia o lucro a curto prazo, de qualquer forma, e que não se pensa em alternativas, isso acaba sendo um problema. Então o mundo político fica à mercê disso. Por outro lado, se houver políticas públicas é possível encontrar alternativas que podem, se não evitar, pelo menos mitigar os efeitos econômicos negativos que um processo de distanciamento social traga. Se isso fosse levado a sério teríamos condições de retomada da atividade econômica muito mais rapidamente e sem correr o risco do que está acontecendo no Brasil e nos Estados Unidos – abre e começa a propagação da pandemia novamente –, e então o governo recorre às medidas mais draconianas de fechamento, o que leva a prejuízos maiores”, frisa o professor.

Por fim o Dr. Camargo sugere pensarmos a quarentena e as medidas de distanciamento não como um dever, mas como um direito que nem todos estão tendo, A parcela menos favorecida da população, os mais pobres, aqueles em situação de vulnerabilidade social, as pessoas com empregos precários, não têm o privilegio do home Office. “Deveríamos, sim, ter políticas públicas que permitissem que essas pessoas pudessem se mantiver. Também seria fundamental que o desenho dessas políticas fosse discutido, esclarecido o máximo possível com a população. Nesse sentido, por um lado, lamento muito que não tenhamos a assistência necessária para a população carente, mas por outro, fico admirado que determinadas áreas, como, Paraisópolis, umas das localidades mais pobre da cidade de São Paulo, as pessoas tenham se organizado para fazer o seu próprio processo de controle da pandemia. É triste que tenhamos chegado a esse ponto, mas ao mesmo tempo louvo a iniciativa dos moradores. Entretanto, o ideal é que ninguém precisasse disso ou que as ações pudessem ser realizadas com a assistência do Estado e que essas pessoas não fossem abandonadas à própria sorte”, encerra o professor.