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Doença de Lyme e Síndrome de Baggio-Yoshinari: controvérsias desafiam diagnósticos no Brasil

Dois artigos científicos recentes reacenderam o debate sobre o tema, com conclusão categórica: não há evidências suficientes para considerar a SBY como doença causada por Borrelia

19/12/2024

A chamada “doença de Lyme brasileira” foi descrita pela primeira vez nos anos 1990, mas sua legitimidade como uma entidade clínica autônoma tem sido alvo de controvérsias no meio acadêmico

A existência da doença de Lyme no Brasil e a legitimidade da Síndrome de Baggio-Yoshinari (SBY), também conhecida como doença de Lyme brasileira ou borreliose humana brasileira, continuam sendo temas de intenso debate entre pesquisadores e profissionais de saúde gerando controvérsias no meio acadêmico. Recentemente, dois artigos científicos reacenderam essa discussão. Intitulados “Questioning the existence of Baggio-Yoshinari syndrome in Brazil e  Lyme borreliosis in Brazil: a critical review on the Baggio–Yoshinari syndrome (Brazilian Lyme-like disease), os estudos revisaram décadas de estudos e questionaram os critérios diagnósticos, as metodologias empregadas e a própria existência dessas condições no Brasil.

A doença de Lyme é a zoonose transmitida por carrapatos mais comum nas zonas temperadas do hemisfério norte. Causada por espiroquetas do gênero Borrelia e transmitida por carrapatos do gênero Ixodes, apresenta um quadro clínico bem documentado, incluindo eritema migratório, artrite, manifestações neurológicas e outras alterações clínicas. “Na América do Norte e na Europa, onde a doença é endêmica, os agentes causadores e os vetores são bem estabelecidos, com dezenas de milhares de casos reportados anualmente. No Brasil, no entanto, onde nenhuma espécie do complexo Borrelia burgdorferi foi isolada ou cultivada a partir de amostras de pacientes, e todos os casos têm sido identificados com evidências sorológicas frágeis, a existência de casos autóctones deve e precisa ser questionada. Dado o amplo espectro de manifestações clínicas da doença, há a possibilidade de confusão diagnóstica com diversas outras doenças presentes no território nacional”, explica a Dra. Elba Lemos, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), especialista em zoonoses e uma das autoras.

A Dra. Lemos, que há anos investiga zoonoses transmitidas por carrapatos, reconhece que ainda existem lacunas importantes nas pesquisas nacionais, mas ressalta que o debate deve considerar todas as possibilidades. Ela destaca a presença de espécies de borrélias do grupo da febre recorrente, já identificadas em carrapatos dos gêneros Rhipicephalus e Ornithodoros no Brasil, um fato amplamente negligenciado, especialmente em comparação com a ênfase alarmante dada à doença de Lyme. “É preciso ressaltar que a identificação etiológica em amostras de casos suspeitos de doença de Lyme ainda permanece imprecisa, por se basear exclusivamente em aspectos morfológicos. Esse fato reforça a necessidade urgente de mais estudos para compreender a dinâmica dessas bactérias no País”, afirma a pesquisadora.

Críticas aos diagnósticos de SBY

Estudos recentes identificaram inconsistências nos critérios diagnósticos da SBY, como o uso de testes sorológicos não validados para o contexto brasileiro. “A SBY tem se baseado em critérios diagnósticos não padronizados e em testes laboratoriais frequentemente associados a resultados falsos positivos. Isso compromete significativamente a sua fundamentação como uma entidade clínica”, alerta o Dr. Rodrigo Nogueira Angerami, infectologista e coordenador do Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de ser um dos autores do estudo.

O artigo publicado na revista Clinical Microbiology Reviews revisou mais de 35 anos de literatura sobre a SBY e concluiu que nenhum agente causal foi isolado em pacientes brasileiros. Além disso, as características clínicas descritas são frequentemente observadas em uma ampla gama de condições, como reações alérgicas a picadas de carrapatos do gênero Amblyomma. “Não se trata de negar as diferentes condições clínicas apresentadas pelos pacientes, mas de questionar se o diagnóstico de borreliose no Brasil está baseado em evidências científicas robustas. À luz das evidências clínicas, microbiológicas e ecopidemiológicas atuais a SBY não se sustenta como uma doença estabelecida”, destaca o Dr. Angerami-. O pesquisador, que atua há duas décadas em estudos sobre febre maculosa brasileira e outras riquetsioses transmitidas por carrapatos, reforça a importância de uma análise criteriosa e baseada em dados concretos para evitar diagnósticos equivocados.

O Dr. Marcelo Bahia Labruna, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), um dos maiores especialistas no assunto e primeiro autor do artigo publicado na Clinical Microbiology Reviews, enfatiza que a análise crítica sobre as publicações referentes à doença de Lyme no Brasil nos últimos 35 anos indica que todos os cenários epidemiológicos avaliados até o momento são tecnicamente incompatíveis com a ocorrência da doença no País. “Além disso, todos os casos clínicos de doença de Lyme ou síndrome de Baggio-Yoshinari reportados como autóctones no Brasil carecem de métodos diagnósticos adequados que possam atribuir a condição a um agente etiológico do grupo Lyme de Borrelia burgdorferi sensu lato“, complementa o professor Labruna.

Outro estudo, publicado na Clinical Microbiology and Infection, reforça que a aplicabilidade dos testes sorológicos e dos protocolos laboratoriais atualmente utilizados para o diagnóstico da doença de Lyme e a SBY no Brasil deve ser reavaliada. “Precisamos reavaliar criticamente a existência da SBY, a fim de evitar diagnósticos equivocados e a utilização de terapias desnecessárias que podem prejudicar os pacientes”, acrescenta o Dr. Angerami.

Impactos na saúde pública

Os diagnósticos equivocados de SBY ou doença de Lyme podem resultar em tratamentos prolongados e desnecessários com antibióticos, o que aumenta os custos para o sistema de saúde e expõe os pacientes a riscos de eventos adversos. “Não podemos negligenciar o impacto de diagnósticos baseados em evidências frágeis. Isso gera custos elevados e potenciais danos aos pacientes. Além disso, ao se assumir, equivocadamente a SBY como diagnóstico definitivo, os pacientes podem ser privados do real diagnóstico e de uma abordagem terapêutica apropriada ”, alerta o Dr. Angerami.

Para a Dra. Elba Lemos, a solução envolve mais investimentos em pesquisa e vigilância epidemiológica. “Só assim poderemos oferecer respostas claras aos pacientes e à comunidade médica”, diz. Ainda segundo a pesquisadora, não se pode simplesmente desconsiderar os relatos de pacientes que apresentam sintomas compatíveis com a doença de Lyme ou com a SBY. “No entanto, também não podemos continuar diagnosticando com base em testes sorológicos que não refletem a realidade brasileira. É um equilíbrio delicado entre prudência científica e empatia clínica”, pontua a coordenadora do Serviço de Referência para Febre Maculosa e outras Rickettsioses do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses, Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz.

A controvérsia em torno da SBY e da doença de Lyme no Brasil evidencia a complexidade do tema e a necessidade de uma abordagem equilibrada, que combine rigor científico e empatia clínica. Enquanto o debate avança, os especialistas recomendam maior cautela na indicação de tratamentos e a adoção de critérios diagnósticos mais rigorosos, garantindo assim a segurança e o bem-estar dos pacientes. Os autores destacam a urgência de uma revisão dos critérios diagnósticos e a realização de pesquisas robustas que esclareçam a real epidemiologia das infecções por Borrelia no Brasil. “Precisamos de estudos que isolem os possíveis agentes causadores e validem métodos diagnósticos apropriados para o contexto brasileiro. Só assim poderemos oferecer respostas claras aos pacientes e à comunidade médica”, conclui a Dra. Lemos. Embora a existência de doenças transmitidas por carrapatos no Brasil não seja contestada, o foco deve estar na identificação precisa dos agentes etiológicos e no desenvolvimento das melhores práticas para diagnóstico e tratamento. Uma Publicação anterior, que também contou com a participação dos Drs. Angerami e Labruna, já havia sugerido a possível ocorrência de outras borrelioses no Brasil, distintas da doença de Lyme e da SBY.

“Para a necessária compreensão da ocorrência e potencial relevância das borrelioses como problema de saúde no Brasil, é fundamental a qualificação da suspeição clínica e da capacidade de diagnóstico laboratorial, sempre norteados por um sistema de vigilância organizado em âmbito nacional, que inclua critérios de definição de caso padronizados e baseados em características clínicas e ecoepidemiológicas cientificamente robustas” afirma o Dr. Angerami. Até que evidências conclusivas sejam obtidas, os especialistas recomendam priorizar a investigação científica e adotar uma abordagem criteriosa na análise dos casos, garantindo uma interpretação cuidadosa e embasada nos dados disponíveis.

 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**