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Doenças tropicais: desafios e perspectivas para 2023

O aquecimento global é problema intocável que vai continuar sendo muito forte, principalmente nos Trópicos, onde não existe infraestrutura para defesa contra catástrofes naturais

09/01/2023

Uma série de fenômenos de natureza econômica, geopolítica, social e cultural que levaram as populações para as cidades influenciaram nas doenças tropicais

Com o aumento da população e a globalização, os agentes causadores de doenças passaram a circular mais rapidamente, trocando de continente do dia para a noite, deixando o mundo à mercê de sucessão de epidemias. O aumento da temperatura média do planeta, induzido principalmente pela emissão de gases de efeito estufa, tem contribuído para ampliar as doenças tropicais. Além disso, entender-se a saúde nas favelas e nas grandes cidades tropicais é fundamental para compreender a crescente proliferação das doenças tropicais. Esse é um passo importante a ser dado para o controle das doenças nos próximos anos.

O ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), Dr. Carlos Henrique Nery Costa, professor de doenças infecciosas e parasitárias, doutor em Saúde Tropical pela Harvard University, explica que as doenças tropicais se referem a um conjunto de doenças e agravos com maior prevalência nos Trópicos. Segundo ele, a ecologia e a economia são os seus principais determinantes. “As duas principais características dos Trópicos que determinam a ocorrência das doenças tropicais são o clima quente e a distribuição espacial dos continentes, que impactaram na distribuição da pobreza ao Sul, nos Trópicos”, complementa. Ainda de acordo com o Prof. Costa, a principal consequência do clima é o efeito sobre os patógenos e vetores das doenças. “Em clima quente, eles conseguem manter o ciclo de reprodução durante todo o ano, que é interrompido no inverno em países com temperaturas mais baixas. As armas, o aço e as doenças, como diz Jare Diamond, foram determinantes para a pobreza dos Trópicos, tornados colônias”, acrescenta.

Dr. Costa lembra ainda o fardo econômico, o qual, além da assimetria do domínio que gerou o colonialismo, também extraiu maciçamente as riquezas dos países tropicais, que alimentaram a economia dos países ricos, hoje chamados Norte Global ou simplesmente Ocidente. Uma vez fragilizados, esses países, com saúde pública deficitária, sem recursos para saneamento básico ou infraestrutura, tornaram-se também vítimas da transmissão de doenças como malária, esquistossomose, doença de Chagas, e daquelas transmitidas pelo Aedes aegypti, impossibilitados de investir em medidas de saúde pública que pudessem levar a proteção contra essas doenças tropicais. Sem recursos, obviamente, a ciência também ficou mais atrasada. Assim, as doenças tropicais são negligenciadas porque são tropicais.

Para o Professor em Medicina Tropical, estas são considerações importantes que versam sobre a capacidade dos países tropicais de investirem em saúde pública ser muito reduzida, tornando-os mais vulneráveis. Aliado a isso, no século XX houve a desorganização populacional, com a transição geográfica (queda da mortalidade perante elevados índices de natalidade) e a Revolução Verde, que, ao mesmo tempo que aumentou a produtividade agrícola de grandes projetos, subsidiada, dificultou a agricultura familiar. “Os dois fenômenos resultaram na migração maciça para as cidades. Com esse processo migratório, o cenário das doenças tropicais mudou da zona rural empobrecida para as periferias das cidades, e surgiram novas doenças, como Aids, e explodiram outras como a tuberculose, cólera, malária urbana e leptospirose”, assinala o Dr. Costa. Além disso, esse processo migratório gerou um excedente populacional, que não encontrou local de habitação adequada, culminando na explosão de cidades totalmente desestruturadas, com a formação de favelas. Para se ter uma ideia, 20% da população da América Latina vive nestes locais. Número que se torna muito mais elevado na África e no Sudeste Asiático.

Essa desorganização urbana levou também a outros agravos que são resultados da ruptura social que ocorreram nas cidades. Como consequência se instalou a violência diante da incapacidade dos estados em proverem proteção, o que culminou no crime organizado, tráfico de drogas, violência intencional e não intencional, como os acidentes de carros, principalmente os de motocicletas. “Este último provocou condição de emergência de um dos problemas de saúde pública mais graves vivenciados nos países tropicas, responsáveis por um impacto bilionário sobre a previdência social e à saúde pública”, pontua.

Questionado sobre as perspectivas para o ano de 2023, o Dr. Costa afirma que do ponto de vista de aquecimento global não há muito o que fazer, pois mesmo havendo reação global para cessar a emissão de gases que aumentam o aquecimento global, os esforços não são suficientes, e a tendência é a continuação do problema, como a ocorrência de catástrofes que devem levar a um agravamento das situações que já existiam anteriormente. “Esse é um problema intocável que vai continuar muito forte, principalmente nos Trópicos, onde não existe infraestrutura para defesa contra catástrofes naturais, com enchentes e secas como observamos no Brasil a cada ano e a cada período chuvoso, quando são registradas de dezenas a milhares de óbitos”, lamenta.

Do ponto de vista geopolítico, o pesquisador salienta que o mundo tem testemunhado imensas transformações, com uma série de incidentes nos últimos anos, com uma série de incidentes nos últimos anos na relação ao Oeste-Leste, que culminou com a guerra comercial dos Estados Unidos com a China e a guerra entre Rússia e Ucrânia, a qual ameaça dilacerar o planeta e destruí-lo. E, no Sul Global, estamos nós, ameaçados mais uma vez à exclusão global. Ainda segundo o Dr. Costa, precisamos acompanhar atentamente a evolução desse cenário global e o que vai restar para os países que não estão no centro da atenção econômica, no caso. Para ele, se os países do Sul global se alinharem nesse movimento de multipolaridade e conseguirem resistir às pressões do mundo ocidental, é possível que haja um cenário mais favorável para a capacidade de investimento social e em tecnologia nesses países com a redução do impacto das doenças tropicais. Quanto à América Latina, o professor reconhece que vivemos um momento singular com o retorno das economias dos regimes políticos mais à esquerda, que tendem a investir muito mais na saúde pública do que os regimes liberais. “Isso pode ser um alento à saúde pública e aos países tropicais, particularmente da América Latina, com investimento importante para o controle das doenças tropicais”, diz.

Temos notícias promissoras também, segundo o Dr. Costa. Por exemplo, as vacinas da Takeda e do Butantan, contra a dengue, uma doença de relevante carga. São duas vacinas que podem alterar substancialmente o perfil de transmissão da dengue. “Acredito que teremos um cenário diferente em 2023 para dengue, que registrou número de óbitos assustadores em 2022. Temos esperança de que isso venha a trazer boas mudanças”, admite. Por último, o pesquisador destaca o legado positivo da pandemia que foi a revolução tecnológica das vacinas de mRNA, cujo potencial pode se evidenciar com novas vacinas para as doenças tropicais, como as leishmanioses, a malária e a tuberculose, por exemplo. “Ficamos na torcida para que essas novas vacinas de mRNA tragam resultado para o controle das demais doenças tropicais”, finaliza o Dr. Costa.