Em respostas às preocupações de alguns colegas, relacionadas a possíveis interpretações dos meus comentários sobre um artigo de um grupo da Cleveland Clinic na Newsletter da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical do último dia 15 de janeiro, acrescentarei mais esclarecimentos.
No momento, o artigo comentado ainda está no estágio de pre-print. No entanto, muitos jornais de alto impacto pedem que os artigos submetidos ao periódico sejam publicados em algum dos arquivos públicos no formato de pre-print. Provavelmente, o artigo ainda não é sua versão final, porém dificilmente os dados ou as conclusões principais serão significativamente modificadas e em breve o artigo será publicado em algum periódico após o artigo ser devidamente revisado por outros experts. (https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2022.12.17.22283625v1.full.pdf)
O artigo alerta a ocorrência de um fenômeno bem conhecido na imunologia desde o final da década de 1950. O Dr. Thomas Francis Jr., pioneiro da identificação deste fenômeno, usou no titulo do seu artigo “On The Doctrine Of Original Antigenic Sin” (ref Proceedings of the American Philosophical Society , Dec. 15, 1960, Vol. 104, No. 6 (Dec. 15, 1960), pp. 572-578) o termo Original Antigenic sin –(OAS) “Pecado Antigênico Original” cristalizando o nome deste fenômeno. Este fenômeno foi descrito com muita clareza nos seus estudos com o vírus da influenza A.
A história do fenômeno no âmbito de influenza está bem apresentada em um artigo mais recente (The Journal of Infectious Diseases 2017;215:1782–8). Resumidamente, o que significa é que a primeira infecção por um tipo de influenza A interfere nas respostas imunológicas contras outros tipos de influenza A e se propõe um novo nome, “interferência negativa”, que define de forma mais explicita o fenômeno de OAS. A possibilidade de OAS nas vacinas de COVID-19 foi discutida bastante no início do desenvolvimento e seu potencial avaliado pelas agencias regulatórias. O fato de não haver variantes significativamente diferentes que gerasse preocupação no primeiro ano da pandemia fez com que o tópico fosse rapidamente esquecido.
Entretanto, com o surgimento das variantes muito divergentes imunologicamente como as Omicron, os fabricantes das vacinas desenvolveram uma nova formulação da vacina incluindo também o antígeno da variante Omicron BA.1 e a questão do OAS volta ser tópico de interesse dos imunologistas e gestores de Saúde Pública. Em um estudo imunológico das respostas imunes induzidas pela vacina bivalente publicado no Science Immunology (Kaku et al., Sci. Immunol. 7, eabq3511 (2022) demonstra-se que, após imunização com a vacina original, ou infecção prévia por variantes mais antigas, as respostas imunológicas são predominantemente contra os antígenos que são comuns às duas variantes e desenvolve muito pouca resposta especifica contra as variantes de Omicron. Outro estudo em primata não humano (Gagne et al., 2022, Cell 185, 1556–1571) também demonstra que a resposta predominante é contra os antígenos em comum demonstrando uma interferência negativa (OAS) da imunidade previa.
Contudo, estes estudos não comparam o efeito do número de doses previas e os intervalos entre imunizações e infecções foram bem mais curtos do que os usados na implementação das imunizações pelos programas de saúde. Esses aspectos da vacina e fenômeno de OAS estão comentados em um editorial no The New England Journal of Medicine publicado no dia 11 de janeiro de 2023 escrito por Paul A. Offit (Offit PA. Bivalent Covid-19 Vaccines – A Cautionary Tale. N Engl J Med. 2023 Jan 11. doi: 10.1056/NEJMp2215780. Epub ahead of print. PMID: 36630616). Além deste editorial, uma análise mais detalhada dos mecanismos imunológicos envolvidos em OAS em COVID-19 está publicada em uma revisão no Journal of Clinical Investigation (Clin Invest. 2023;133(1):e162192. https://doi.org/10.1172/JCI162192).
No artigo da Cleveland Clinic, os autores acompanham as imunizações e as infecções sintomáticas de COVID-19 em uma grande coorte de profissionais de saúde e encontraram uma baixa (30%) efetividade da vacina bivalente contra as variantes Omicron BA.4 e BA.5 e investiga os fatores associados a baixa efetividade da vacina. Primeiramente, eles investigam o impacto de infecções previas por variantes existentes pré-Omicron e Omicron na efetividade da proteção contra as variantes BA.4 e BA.5 e outras mais recentes BQ.1, BQ.1.1, e BF.7. Na figura 1 do artigo, está demonstrado o impacto das infecções previas na apresentação da doença sintomática de COVID-19 e mostra que infecções por variantes pre-delta oferecem uma proteção muito pequena em relação as pessoas que nunca foram infectadas, enquanto as infecções por variantes de Omicron BA1 e BA2 oferecem uma proteção moderada enquanto as já infectadas por BA4 e BA5 não apresentaram reinfecções.
Figura – Gráfico Simon-Makuch comparando a incidência acumulada de casos de COVID-19 com os participantes agrupados de acordo com o número de doses previas recebidas da vacina contra COVID-19. O dia Zero foi em 12 setembro de 2022. Dia em que a vacina bivalente começou a ser oferecida aos profissionais de saúde. As estimativas de cada ponto e o intervalo de confiança de 95%. As linhas tremidas ao longo do eixo X estão tremidas para facilitar a visualização.
Na figura 2, também do artigo, os autores investigam a correlação entre o número de doses da vacina contra o vírus original na efetividade da vacina bivalente em proteger contra infecções por BA4 e BA5. O gráfico mostra a incidência acumulada de infecções por variantes Omicron em pessoas que receberam de zero até mais de três doses e se observa, claramente, uma correlação inversa entre o número de doses da vacina monovalente original e o nível de proteção mediado pela vacina bivalente contra infecções sintomáticas por Omicron. Isso não significa que a vacina original não seja protetora, pois a vacina original foi muito efetiva contra todas as variantes, até mesmo as variantes Delta e continuam sendo eficazes contra estas variantes virais. Porém, devido a adaptação viral, o vírus encontrou formas (novas variantes) de escapar a imunidade da população.
A possibilidade de ocorrer o fenômeno de aumento da infecção mediada por anticorpos (antibody dependent enhancement – ADE) vem sendo discutido desde o início da pandemia, uma vez que vários estudos demonstraram o fenômeno de ADE em outros coronavírus que infectam animais e existem várias publicações sobre ADE em coronavírus em geral. (Wen J, Cheng Y, Ling R, Dai Y, Huang B, Huang W, Zhang S, Jiang Y. Antibody-dependent enhancement of coronavirus. Int J Infect Dis. 2020 Nov;100:483-489. doi: 10.1016/j.ijid.2020.09.015. Epub 2020 Sep 11. PMID: 32920233; PMCID: PMC7483033). O fenômeno ADE em COVID-19 já vem sendo proposto (Lee WS, Wheatley AK, Kent SJ, DeKosky BJ. Antibody-dependent enhancement and SARS-CoV-2 vaccines and therapies. Nat Microbiol. 2020 Oct;5(10):1185-1191. doi: 10.1038/s41564-020-00789-5. Epub 2020 Sep 9. PMID: 32908214.) por vários pesquisadores, desde o início da pandemia. Porém, até o momento, não existe nenhuma evidência conclusiva que indique que a gravidade da doença ou a taxa de transmissão aumentada seja causada por ADE. No entanto, alguns experimentos e vários casos publicados demonstram que é possível que isto ocorra, em determinadas situações.
Porém, até o momento, não havia surgido variantes imunologicamente tão divergentes, que se comportassem como um novo sorotipo, pois anticorpos neutralizantes contra o virus original não neutralizam as novas variantes. Diante de uma evidência de que OAS está ocorrendo em COVID-19, que é dos fatores necessários para ADE, aumenta mais ainda a preocupação que possibilidade de que ADE venha ocorrer. Existem várias formas de ADE, a mais conhecida é a que ocorre em dengue, que é mediada por anticorpos heterotípicos existentes pre-infeção enquanto outras formas de ADE que existem são mediadas por anticorpos induzidos durante a infecção e por anticorpos homotípicos existentes em baixas concentrações. Contudo, o exemplo de ADE de dengue não significa que seria o mesmo para COVID-19, nem que pode surgir um doença hemorrágica em COVID-19.
O fato de os achados do artigo de efetividade da vacina bivalente não serem o que gostaríamos, não significa que devemos ignorá-los, nem significa que a imunização tenha sido deletéria a população; de forma alguma, pois, graças a estas vacinas, as variantes mais patogênicas do que Omicron (Alpha, Gamma e Delta), foram suprimidas circulação na população, assim também como a grande redução de hospitalizações e óbitos. Além de anticorpos neutralizantes, outros mecanismos de proteção são induzidos pelas vacinas de COVID-19, como opsonização por complemento e respostas celulares, e que podem ser melhoradas incluindo proteínas não estruturais do COVID-19 ou outras formas. Por isso proponho que se monitore mais de perto os sinais de surgimento de ADE nas apresentações clínicas da doença assim como se promova desenvolvimentos de vacinas contra COVID-19 mais sofisticadas que sejam capazes de proteger um espectro mais amplo de variantes de SARS-CoV-2.
Por fim declaro que não conheço os autores da Cleveland Clinic, nem tenho projetos para desenvolver nenhum tipo de vacina contra COVID-19, nem participo comitês que recomendam compras de vacinas.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**