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Esquistossomose: pesquisadores brasileiros identificam alvo promissor para tratamento ao separar casal de vermes

Descoberta tem potencial para desenvolvimento de novo medicamento com menos efeitos adversos por atingir preferencialmente o parasito

08/08/2023

Os vermes causadores da esquistossomose só conseguem sobreviver na corrente sanguínea do hospedeiro se estiverem acasalados, ou seja, a fêmea vivendo dentro do macho para, assim, trocarem moléculas, produzirem e liberarem os ovos

Uma descoberta científica promissora pode representar um avanço significativo no combate à esquistossomose, doença parasitária negligenciada que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Pesquisadores do Instituto Butantan, em São Paulo, identificaram um novo alvo terapêutico ao separar casais de vermes de Schistosoma mansoni, parasito responsável por causar a doença no Brasil. O artigo intitulado “Long non-coding RNAs are essential for Schistosoma mansoni pairing-dependent adult worm homeostasis and fertility” foi publicado na revista científica PLOS Pathogens em maio deste ano.

De acordo com o Dr. Murilo Sena Amaral, um dos coordenadores do estudo, o objetivo do trabalho foi avaliar se RNAs longos não-codificadores de proteínas (lncRNAs) seriam essenciais para a viabilidade, sobrevivência e reprodução do Schistosoma mansoni e, em seguida, utilizar esse conhecimento para propor lncRNAs como novos possíveis alvos terapêuticos. Como resultado, os pesquisadores descobriram que a retirada desses lncRNAs dos parasitos levou ao despareamento e à redução da viabilidade e da fertilidade dos esquistossomos, que passaram a produzir uma quantidade menor de ovos viáveis.

Questionado sobre como a fertilidade dos vermes adultos é afetada pelos lncRNAs, o Dr. Amaral explica que a equipe identificou maior nível de expressão de alguns lncRNAs nos vermes adultos pareados do que naqueles não pareados. “Em seguida, alvejamos três desses lncRNAs do Schistosoma mansoni para diminuir sua expressão nos vermes adultos pareados e observamos que a diminuição da quantidade desses lncRNAs nos parasitos, antes pareados, causou o despareamento e a redução da viabilidade e da fertilidade dos vermes, que passaram a produzir uma quantidade menor de ovos viáveis após o silenciamento dos lncRNAs”, detalha.

Ainda de acordo com o pesquisador, quando a redução da quantidade dos lncRNAs foi feita nos esquistossomos que infectavam  camundongos (em um ensaio in vivo), houve morte de 30% dos parasitos, diferentemente do que ocorreu com o número de esquistossomos que infectavam camundongos controle, nos quais a expressão dos lncRNAs nos parasitos era normal. “Observamos que esses lncRNAs estão localizados nos tecidos reprodutivos dos vermes, o que indica que eles são importantes para a homeostase e a reprodução adequada desses parasitos”, acrescenta.

Novas estratégias terapêuticas contra a esquistossomose

Os resultados dos experimentos realizados em laboratório mostraram uma significativa redução na produção de ovos pelos vermes e abrem caminho para futuras terapias que possam neutralizar o potencial devastador da esquistossomose em humanos. Por muitos anos, os tratamentos para essa doença tropical se concentraram em eliminar os vermes adultos do sistema circulatório do hospedeiro humano. No entanto, o praziquantel, principal antiparasitário indicado para o tratamento de infecções por helmintos ou trematódeos, como esquistossomose, teníase ou cisticercose, apresenta grandes limitações e está no mercado há muito tempo e há relatos de vermes resistentes.

“Dado que os lncRNAs se mostraram essenciais para a homeostase e para a fertilidade dos vermes, terapias a serem desenvolvidas no futuro que alvejem os lncRNAs devem representar boas alternativas para o combate aos vermes e para o controle da esquistossomose”, destaca o Dr. Amaral. Os lncRNAs são moléculas normalmente menos conservadas entre as espécies que os genes codificadores de proteínas e, por isso, terapias alvejando lncRNAs do parasito têm o potencial de causar menores efeitos adversos nos humanos, que não possuem lncRNAs semelhantes, tornando os lncRNAs do esquistossomo  mais atrativos como alvos.

Por fim, o Dr. Amaral enfatiza a importância da descoberta. “Já foi mostrado que os lncRNAs desempenham papéis muito importantes para a sobrevivência de diversos organismos, mas essa foi a primeira vez que mostramos que são essenciais para a sobrevivência do Schistosoma mansoni. Esse achado abre caminhos para que outras funções dos lncRNAs neste helminto, relacionadas a outros processos metabólicos, sejam descritas, o que os coloca como possíveis novos alvos terapêuticos no futuro”, frisa.

Essa é a primeira vez que lncRNAs são descritos como possíveis alvos terapêuticos em um parasito; essa identificação abre perspectiva para a caracterização destas moléculas em outras espécies de parasitos causadores de doenças tropicais negligenciadas que, em conjunto, afetam mais de 1 bilhão de pessoas no mundo. O próximo passo do estudo é refinar a análise e tentar silenciar os três lncRNAs alvo de uma única vez, para então avaliar os resultados. A ideia é testar para saber se pode haver um efeito melhor, se a morte seria mais rápida e se mais vermes morreriam silenciando os três lncRNAs ao mesmo tempo. Em paralelo, a equipe vai buscar e identificar lncRNAs em outros parasitos de interesse médico.

Enquanto a investigação avança, a comunidade científica e os profissionais da saúde aguardam com expectativa os próximos passos na esperança de que essa descoberta revolucionária possa levar a tratamentos mais eficazes e acessíveis para a esquistossomose, aliviando o fardo dessa doença para milhões de pessoas em todo o mundo. Embora ainda haja desafios a serem superados, a pesquisa representa um avanço promissor na batalha contra esta verminose.

Sobre a doença

A esquistossomose, também conhecida como barriga d’água, causada pelo Schistosoma mansoni – transmitido principalmente por caramujos de água doce –, é prevalente em regiões com acesso limitado à água potável e saneamento básico, tornando-a um sério problema de saúde pública. A transmissão ocorre através do contato com água contaminada pelos ovos do parasito. Ao penetrar na pele humana, os ovos liberam larvas que migram para os vasos sanguíneos do fígado, onde amadurecem e se reproduzem.

O Schistosoma mansoni é considerado um verme incomum sob vários aspectos, principalmente pelo fato de que machos e fêmeas adultos devem permanecer emparelhados durante toda a vida para que a reprodução seja bem-sucedida. As fêmeas podem produzir até 3 mil ovos por dia. Aproximadamente metade atinge o intestino ou a bexiga do hospedeiro. O restante é levado pelo sangue para o fígado e baço, causando reação inflamatória nas paredes dos vasos portais causando fibrose periportal  e hipertensão portal, que resulta em esplenomegalia, varizes de esôfago e, mais tardiamente, ascite. Esta forma clínica de apresentação da doença é chamada de forma hepatoesplênica e tem alta morbimortalidade. Algumas pessoas poderão apresentar a forma intestinal da esquistossomose, mais benigna e, nos pulmões, a  presença de ovos pode resultar em hipertensão pulmonar e cor pulmonale. Outras vezes, o quadro clínico pode ser bem silencioso:há casos em que um mesmo parasito permaneceu por mais de 20 anos vivo no corpo do hospedeiro. 

A esquistossomose afeta principalmente comunidades rurais e áreas com acesso limitado a saneamento básico adequado. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 200 milhões de pessoas estão infectadas globalmente. A doença é responsável por milhares de mortes a cada ano.

 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**