_destaque, Notícias

Estudo analisa relação entre modos de transmissão e complicações da doença de Chagas

RSBMT publica estudo que liga transmissão e danos graves da doença

26/05/2025

Pacientes passaram por um protocolo de avaliação inicial que incluía ECG de 12 derivações e ecocardiograma Doppler bidimensional para avaliar sinais e sintomas cardiovasculares relacionados à doença de Chagas crônica

A doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, afeta cerca de 3,7 milhões de pessoas no Brasil, segundo estimativas de 2024, com maior prevalência entre mulheres. Conhecida por sua associação com áreas rurais, onde o vetor (inseto barbeiro) transmite o parasita ao picar humanos e depositar fezes contaminadas sobre a pele ou mucosas, a enfermidade expandiu-se para centros urbanos e regiões não endêmicas, como Europa, América do Norte, Ásia e Oceania, impulsionada pela migração de populações latino-americanas. Além da transmissão vetorial, a infecção pode ocorrer por transfusão sanguínea, via congênita (transmissão vertical, de mãe para filho) ou consumo de alimentos contaminados, como açaí, suco de acerola, caldo de cana e carne de caça, especialmente na Amazônia. Essas vias, em particular a oral, representam desafios crescentes para a vigilância sanitária, especialmente em regiões remotas onde o controle de qualidade alimentar é limitado.

Um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), localizado no Rio de Janeiro, investigou a influência do modo de transmissão do Trypanosoma cruzi em suas manifestações crônicas, como as complicações cardíacas (que podem evoluir para insuficiência cardíaca) e digestivas (como megaesôfago, caracterizado pela dificuldade de deglutição devido ao alargamento do esôfago, e megacólon, que consiste na dilatação do intestino grosso, causando constipação severa). Publicado como artigo principal na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT), o trabalho “Association between transmission modes and chronic Chagas disease clinical forms analisou dados de 2.162 pacientes atendidos entre novembro de 1986 e agosto de 2024, todos com diagnóstico confirmado por dois exames sorológicos distintos, complementados por avaliações clínicas rigorosas, incluindo eletrocardiogramas, ecocardiogramas, endoscopias e exames de imagem do sistema digestivo.

Liderada pelo Dr. Alejandro Marcel Hasslocher-Moreno, a pesquisa examinou prontuários para coletar informações sobre idade, sexo, raça, escolaridade, origem geográfica e histórico epidemiológico, além de classificar as formas clínicas da doença de acordo com o 2º Consenso Brasileiro sobre Doença de Chagas (2015). A classificação cardíaca abrange estágios que variam de alterações leves, sem sintomas graves (estágio A), até insuficiência cardíaca severa (estágios C e D). “Nosso objetivo foi determinar se a forma como a pessoa contrai a doença influencia o tipo ou a gravidade das complicações crônicas”, explica o Dr. Hasslocher-Moreno. Essa informação pode subsidiar estratégias de prevenção e tratamento mais direcionadas.

Dos pacientes analisados, 53% eram mulheres, com idade média de 48,3 anos. A transmissão vetorial predominou, sendo observada em 90,8% dos casos (1.962 pacientes), seguida pela transfusional (5,7%, 123 pacientes), congênita (2,7%, 59 pacientes) e oral (0,8%, 18 pacientes). Pacientes com transmissão congênita ou oral eram mais jovens, apresentavam menor proporção de mulheres e analfabetismo, e maior probabilidade de serem provenientes de áreas não endêmicas, como o norte do estado do Rio de Janeiro, onde a transmissão oral foi associada ao consumo de carne de caça. De acordo com o Dr. Hasslocher-Moreno, os casos de transmissão oral, embora raros na coorte estudada, refletem contextos específicos, como o consumo de alimentos sem controle sanitário adequado, especialmente em regiões rurais.

A análise estatística, ajustada por fatores como idade, sexo, escolaridade e década de admissão no INI/Fiocruz, não revelou relação significativa entre o modo de transmissão e as formas clínicas da doença. Independentemente de a infecção ter ocorrido por via vetorial, transfusional, congênita ou oral, a probabilidade de desenvolver complicações cardíacas ou digestivas permaneceu semelhante. “Os resultados indicam que outros fatores, como a resposta imunológica do paciente, a carga parasitária inicial, as condições de vida ou o acesso à saúde, podem ser mais determinantes para a progressão da doença”, afirma o pesquisador.

A predominância da transmissão vetorial reflete o cenário histórico da doença no Brasil, onde o contato com o barbeiro em áreas rurais foi a principal via de infecção por décadas. Antes da década de 1990, a ausência de triagem sorológica em bancos de sangue contribuiu para a transmissão transfusional, que diminuiu para cerca de 6% dos casos no estudo, em decorrência das medidas de controle implementadas desde então. A transmissão congênita, observada em 2,7% dos pacientes, predominantemente no Rio de Janeiro, alinha-se com estimativas nacionais que variam de 0% a 5,2%, sendo mais prevalente em países como Argentina e Bolívia. Em contrapartida, a transmissão oral, embora rara na coorte estudada do INI/Fiocruz, ressalta a necessidade de vigilância em áreas como a Amazônia, onde alimentos contaminados representam um risco emergente.

A forma indeterminada da doença, na qual os pacientes não apresentam sintomas cardíacos ou digestivos evidentes, foi a mais prevalente na coorte, contrastando com outros estudos urbanos que indicam maior frequência da forma cardíaca (56% a 66%). Esses pacientes, embora assintomáticos, demandam acompanhamento médico contínuo devido ao risco de progressão para formas determinadas, especialmente a cardíaca. Entre os casos cardíacos, o estágio A, caracterizado por alterações leves, predominou, e a maioria dos pacientes apresentou função cardíaca preservada, sugerindo um prognóstico mais favorável. A forma digestiva, com maior incidência de megaesôfago, apresentou prevalência semelhante à de estudos anteriores.

Em comparação com um estudo argentino que identificou menor gravidade cardíaca em pacientes com transmissão não vetorial, este estudo não revelou diferenças significativas, sugerindo que, em populações urbanas brasileiras, outros fatores exercem maior influência. A ausência de associação entre os modos de transmissão e as complicações aponta para a complexidade da doença. “A evolução da doença de Chagas envolve uma interação dinâmica entre o parasita, o indivíduo e o ambiente. Precisamos olhar além do modo de transmissão para entender por que alguns indivíduos desenvolvem formas mais agressivas da doença”, destaca o Dr. Hasslocher-Moreno.

O pesquisador reconhece as limitações do estudo. Ele detalha que, por ser um estudo retrospectivo, com dados coletados ao longo de quase quatro décadas, existe o risco de imprecisões nos registros. Adicionalmente, os pacientes atendidos no INI/Fiocruz, um centro de referência, podem não representar a realidade de regiões endêmicas ou de outros países. Ainda assim, a robustez da amostra e o uso de métodos diagnósticos padronizados reforçam a validade dos resultados. A pesquisa enfatiza a necessidade de estudos longitudinais, que acompanhem os pacientes ao longo do tempo, para esclarecer a progressão da doença, bem como a intensificação da vigilância sanitária em áreas de risco para transmissão oral. “Fortalecer o controle de alimentos em áreas de maior incidência da doença de Chagas, como a Amazonia, e ampliar o acesso ao diagnóstico precoce são medidas essenciais para reduzir o impacto da doença, especialmente em regiões urbanas e não endêmicas”, reforça o autor principal.

A expansão da enfermidade para países europeus, como Espanha, e para a América do Norte, como Estados Unidos, impulsionada pela migração, eleva a relevância de políticas globais de saúde. A doença de Chagas permanece um desafio complexo, exigindo abordagens integradas que combinem prevenção, diagnóstico precoce e cuidados clínicos, considerando os fatores biológicos, sociais e ambientais que moldam seu impacto.

Confira o artigo “Association between transmission modes and chronic Chagas disease clinical forms” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0432-2024.

 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**