Estudo aponta escalada gradual das doenças infecciosas
Tuberculose, malária e HIV concentram o maior risco de intensificação, associado a fatores climáticos, socioeconômicos e à resistência a medicamentos
23/12/2025
Oficinas regionais reuniram especialistas da África, Ásia e América Latina para discutir doenças infecciosas consideradas em risco de escalada e os fatores associados a esse processo
Um estudo publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, intitulado “Global perspectives on infectious diseases at risk of escalation and their drivers” , apresenta um retrato das doenças infecciosas que especialistas de diferentes regiões do mundo consideram mais suscetíveis à escalada, bem como dos fatores que contribuem para esse cenário. A partir de uma ampla consulta internacional, a pesquisa reuniu percepções de profissionais com atuação direta em vigilância, assistência, pesquisa e formulação de políticas públicas em saúde. Tuberculose, malária e HIV lideram as preocupações globais, enquanto doenças transmitidas por vetores, como a dengue, ganham destaque em contextos regionais.
A investigação envolveu 3.752 participantes na etapa de levantamento on-line, além de 169 especialistas que participaram de oficinas presenciais realizadas na África, Ásia e América Latina. A maioria dos participantes atua em países de baixa e média renda, onde a carga das doenças infecciosas permanece elevada e a fragilidades estruturais dos sistemas de saúde influenciam diretamente a dinâmica de transmissão e controle. O estudo não teve como objetivo medir incidência, prevalência ou mortalidade, mas captar, de forma estruturada, a avaliação de especialistas sobre quais doenças representam maior risco de agravamento nos contextos em que atuam.
Os autores adotaram uma metodologia mista, inspirada na técnica Delphi, combinando perguntas abertas em um questionário eletrônico com discussões aprofundadas em grupos regionais. Na primeira fase, os participantes indicaram livremente até cinco doenças infecciosas que consideravam em risco de escalada. Na etapa seguinte, as oficinas permitiram entender os motivos por trás dessas escolhas, aprofundando a análise qualitativa dos fatores envolvidos e das condições locais que sustentam essas percepções.
Os resultados mostram que a maior preocupação dos especialistas recaiu sobre doenças infecciosas já amplamente conhecidas e estabelecidas, especialmente aquelas associadas a elevada carga de adoecimento. A tuberculose foi a infecção mais frequentemente citada ao longo do levantamento, seguida por malária e HIV/AIDS. Outras doenças, como dengue e infecções respiratórias, também apareceram de forma recorrente, sobretudo quando os participantes agruparam os riscos por categorias mais amplas. De acordo com a análise apresentada no artigo, doenças transmitidas por vetores formaram um dos grupos mais destacados nas discussões regionais. Em diferentes contextos, os especialistas relataram preocupação com a persistência e, em alguns casos, com a intensificação da transmissão dessas infecções, especialmente em áreas onde fatores ambientais e sociais permanecem desfavoráveis.
As discussões realizadas nas oficinas regionais permitiram identificar três conjuntos principais de fatores associados à percepção de risco de escalada. O primeiro diz respeito às mudanças climáticas, apontadas como um elemento que interfere na distribuição geográfica de vetores, na sazonalidade das infecções e nas condições ambientais que favorecem a transmissão de determinadas doenças. O segundo grupo de fatores refere-se às condições socioeconômicas. Os participantes associaram a persistência e o agravamento das doenças infecciosas a situações de pobreza, insegurança alimentar, habitações inadequadas, saneamento insuficiente e acesso limitado a serviços de saúde. Em vários relatos, esses determinantes estruturais apareceram como elementos centrais para explicar por que doenças já conhecidas continuam a representar uma ameaça significativa em determinadas populações.
A resistência a medicamentos constituiu o terceiro eixo recorrente nas discussões. A dificuldade crescente no tratamento de algumas infecções, como a tuberculose resistente a múltiplos fármacos, foi mencionada como um fator que compromete estratégias de controle e amplia o impacto das doenças em contextos nos quais alternativas terapêuticas são limitadas. Segundo os autores, a resistência terapêutica foi percebida como um problema transversal, com potencial para afetar diferentes grupos de infecções. Além desses eixos, os especialistas também destacaram fragilidades nos sistemas de saúde como um componente relevante do risco de escalada. Interrupções em programas de controle, instabilidade no financiamento, limitações da atenção primária e falhas na vigilância epidemiológica apareceram nas discussões como fatores que dificultam a contenção de doenças já conhecidas, especialmente em cenários marcados por crises econômicas, conflitos ou descontinuidade de políticas públicas.
O estudo enfatiza que as percepções coletadas refletem a experiência profissional dos participantes e não substituem análises baseadas em dados epidemiológicos formais. Os autores observam, no entanto, que esse tipo de abordagem oferece uma perspectiva complementar, capaz de captar sinais precoces de agravamento que nem sempre se refletem imediatamente nos indicadores oficiais, sobretudo em regiões com sistemas de informação limitados. Ao contrário de estudos focados na emergência de novos patógenos, a pesquisa concentra-se na escalada de doenças já estabelecidas. Essa distinção conceitual é central para a interpretação dos resultados, ou seja, o risco identificado não se relaciona a eventos inesperados ou episódicos, mas à intensificação de infecções persistentes diante da combinação de fatores ambientais, sociais, institucionais e biológicos.
Ao reunir profissionais que atuam em diferentes níveis dos sistemas de saúde, a pesquisa indica que, segundo a percepção desses especialistas, o principal desafio das doenças infecciosas não está no surgimento de novos agentes, mas na dificuldade de controlar infecções já conhecidas em contextos marcados por desigualdades e fragilidades estruturais. O estudo reforça que o enfrentamento das doenças infecciosas depende de abordagens integradas que considerem simultaneamente fatores ambientais, determinantes sociais, capacidade dos sistemas de saúde e desafios relacionadas à eficácia dos tratamentos disponíveis.