
Estudo avalia relação entre vacinação contra febre amarela e infecção sintomática por Zika em Campo Grande
Pesquisadores da UFMS investigaram possível proteção cruzada em estudo caso-controle com dados de 2015 a 2018
05/05/2025
Pesquisa conduzida em Campo Grande analisou dados de 1.626 casos confirmados de Zika para verificar se a vacina contra febre amarela reduz a probabilidade de infecção sintomática
Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) investigou a possível associação entre a vacinação contra febre amarela e a ocorrência de infecção sintomática aguda pelo vírus Zika. Publicado na revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT), o artigo “Investigating the association between yellow fever vaccination and symptomatic acute Zika virus infection: a case-control study” examinou 1.626 casos confirmados de Zika notificados na cidade entre 2015 e 2018, comparando-os com um grupo controle de igual tamanho. Liderada pela doutoranda Lisany Krug Mareto e coordenada pelo professor Everton Falcão de Oliveira, a pesquisa investigou se a semelhança genética e estrutural entre os dois vírus, ambos da família Flaviviridae, poderia induzir proteção cruzada, uma hipótese inspirada por observações epidemiológicas durante a crise sanitária.
A epidemia de Zika marcou profundamente o Brasil. Entre 2015 e 2020, o País registrou 215.327 casos, com uma incidência de 1,03 caso por 100.000 habitantes. Transmitido principalmente pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, o vírus causa sintomas leves na maioria dos infectados, como erupção cutânea pruriginosa, febre baixa, conjuntivite não purulenta, mialgia e artralgia. No entanto, a infecção em gestantes revelou consequências devastadoras, com a síndrome congênita do Zika, caracterizada por microcefalia e outras malformações em recém-nascidos. Casos de complicações neurológicas em adultos, como a síndrome de Guillain-Barré, também reforçaram a gravidade da doença. Durante o auge da epidemia, pesquisadores notaram que regiões com baixa cobertura vacinal contra Febre amarela, como o Nordeste, onde a vacinação não era recomendada rotineiramente até 2020, apresentavam maior incidência de microcefalia. Em contrapartida, áreas com alta cobertura, como o Centro-Oeste, registravam taxas menores, sugerindo que a imunidade induzida pela vacina poderia mitigar a infecção por Zika ou suas complicações mais graves.
“A semelhança entre os vírus da febre amarela e do Zika, que compartilham estruturas como as proteínas E e C do envelope e capsídeo, além da proteína NS5, uma polimerase viral conservada presente na vacina atenuada contra febre amarela, nos motivou a investigar se a vacinação prévia poderia reduzir a probabilidade de infecção sintomática por Zika”, explica Mareto, primeira autora do estudo. Essas proteínas desempenham papéis cruciais no reconhecimento imunológico pelo hospedeiro, sendo alvos de anticorpos neutralizantes e respostas mediadas por células T, o que alimentou a hipótese de proteção cruzada.
Para analisar essa possibilidade, os pesquisadores optaram por um estudo caso-controle, com pareamento por idade e sexo, utilizando dados secundários de fontes oficiais. O grupo de casos incluiu todos os 1.626 indivíduos com diagnóstico confirmado de febre aguda por Zika, notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) em Campo Grande entre 2015 e 2018. O diagnóstico seguia critérios do Ministério da Saúde, que exigiam sintomas como erupção cutânea acompanhada de febre, conjuntivite ou artralgia, confirmados por exames laboratoriais, como isolamento viral, RT-PCR ou sorologia IgM. O grupo controle, também com 1.626 pessoas, foi composto por residentes da cidade sem histórico de infecção por Zika, dengue ou Chikungunya, selecionados a partir do Sistema de Informação da Atenção Básica e da lista de atendimentos em unidades de saúde entre 2014 e 2018. A vacinação contra febre amarela foi verificada no sistema da Secretaria Municipal de Saúde (SESAU-Hygia), considerando doses administradas até 2014, antes do início da epidemia de Zika no Brasil.
Devido à ausência de registros de vacinação para alguns participantes, 312 casos e 376 controles foram excluídos, resultando em uma análise final com 1.314 casos e 1.250 controles. A equipe utilizou a razão de chances (odds ratio, OR) como medida de associação, ajustando os resultados por sexo e faixa etária por meio da análise estratificada de Mantel-Haenszel. A incidência acumulada de Zika em Campo Grande foi de 1,87 casos por 1.000 habitantes, com um pico em 2016, quando 1.413 casos (86,9%) foram notificados, equivalente a 1,63 casos por 1.000 habitantes. A maioria dos infectados era mulher (73,7%), com predominância nas faixas etárias de 20 a 29 anos (23,6%) e 30 a 39 anos (24,1%). Quanto à raça/cor da pele, brancos (48,8%) e pardos (28,7%) foram os mais representados, e a escolaridade mais comum foi o ensino fundamental (38,8%), embora 41,1% dos dados sobre educação não estivessem disponíveis. Notavelmente, 94,7% dos casos evoluíram para cura sem complicações graves, e nenhum óbito foi registrado, refletindo o perfil geralmente benigno da infecção em adultos.
A cobertura vacinal contra febre amarela foi semelhante entre os grupos: 65,5% no grupo de casos (861 indivíduos) e 60,9% no grupo controle (759 indivíduos). No grupo de casos, 56,1% receberam uma dose da vacina, 9,2% duas doses e 0,2% três doses; entre os controles, 50,8% receberam uma dose, 9,6% duas doses e 0,3% três doses. A análise revelou uma associação fraca entre a vacinação prévia e a infecção sintomática por Zika, com uma razão de chances bruta de 1,23 (intervalo de confiança de 95%: 1,05–1,44). Após ajustes por sexo e idade, os valores permaneceram praticamente inalterados, com 1,23 (IC 95%: 1,05–1,44) para sexo e 1,23 (IC 95%: 1,05–1,45) para idade, indicando que a vacinação não conferiu proteção contra a infecção por Zika. Pelo contrário, os resultados sugeriram um leve aumento nas chances de desenvolver Zika sintomático entre os vacinados, embora o intervalo de confiança próximo de 1 aponte para uma associação próxima da nulidade.
“Não encontramos evidências de que a vacina contra febre amarela proteja contra a infecção sintomática por Zika. Esse resultado nos surpreendeu, dado o contexto epidemiológico que sugeria uma possível proteção cruzada, mas reflete a complexidade das interações imunológicas entre flavivírus. Estudos sorológicos são agora essenciais para esclarecer a produção de anticorpos neutralizantes contra ambos os vírus”, afirma Mareto.
Ainda segundo a autora, os achados contrastam com observações anteriores que associavam maior cobertura vacinal contra febre amarela a menor incidência de microcefalia por Zika, especialmente em comparações entre o Nordeste e o Centro-Oeste do Brasil. “Apesar de não confirmarem a hipótese de proteção cruzada, os resultados enfatizam a necessidade de investigar as interações imunológicas entre flavivírus, particularmente em regiões onde febre amarela e Zika coexistem. A ausência de vacinas específicas ou tratamentos para o Zika torna estratégias como o reposicionamento de imunobiológicos uma abordagem promissora”, observa Mareto. Esse conceito, que envolve o uso de vacinas ou medicamentos existentes para novas indicações, já foi explorado em outros contextos, como estudos que testaram a vacina BCG contra a Covid-19, com base em sua capacidade de estimular respostas imunes inespecíficas. “O reposicionamento de imunobiológicos é uma estratégia valiosa em emergências de saúde pública, especialmente para doenças negligenciadas ou com poucos recursos de pesquisa”, acrescenta.
O estudo enfrentou limitações significativas. A qualidade dos dados dependia do preenchimento correto por profissionais de saúde em sistemas como o SINAN e o SESAU-Hygia, sujeitos a erros humanos. A ausência de um sistema nacional unificado de registro de vacinação dificultou a verificação do status vacinal de indivíduos de outros estados ou municípios, o que pode ter levado à subnotificação. Além disso, a pesquisa não avaliou a soroconversão pós-vacinação contra febre amarela, limitando a análise da resposta imune efetiva. “Sabemos que a vacina contra febre amarela induz soroconversão em cerca de 98% dos indivíduos, mas há evidências de que a imunidade pode declinar com o tempo, como mostrado em estudos de longo prazo. Isso corrobora a necessidade de quantificar anticorpos neutralizantes em pessoas infectadas por Zika”, destaca Mareto. Outra limitação foi a impossibilidade de determinar os métodos laboratoriais exatos usados para confirmar os casos de Zika, devido à falta de detalhes nos formulários do SINAN.
Os pesquisadores enfatizam que os resultados não diminuem a importância da vacinação contra febre amarela, uma ferramenta essencial para prevenir surtos de uma doença grave em áreas endêmicas. No entanto, o estudo aponta para novas direções na pesquisa sobre flavivírus. Análises sorológicas que avaliem a produção de anticorpos neutralizantes contra febre amarela e Zika em indivíduos infectados são um próximo passo crucial. Estudos em regiões com alta incidência de Zika e baixa cobertura vacinal contra febre amarela, como o Nordeste, poderiam esclarecer se a vacina exerce algum efeito protetor em contextos específicos. Além disso, investigações experimentais sobre a interação entre a vacina contra febre amarela e antígenos específicos do Zika poderiam elucidar os mecanismos imunológicos envolvidos, incluindo o papel de respostas mediadas por células T.
“Compreender como a imunidade pré-existente influencia a infecção por Zika é fundamental para desenvolver estratégias de prevenção, especialmente para proteger gestantes e evitar complicações como a microcefalia. Nosso estudo é uma peça nesse quebra-cabeça, mas há muito a ser explorado”, reflete Mareto. A pesquisa contou com a colaboração de profissionais da Coordenadoria de Vigilância Epidemiológica e da Rede de Atenção Básica de Campo Grande, destacando a importância de parcerias entre academia e serviços de saúde. “Embora a vacina contra febre amarela não tenha se mostrado uma barreira contra a infecção sintomática por Zika, os resultados sublinham a importância de abordagens interdisciplinares que integrem epidemiologia, imunologia e virologia. Com a possibilidade de novas epidemias de Zika, cada avanço no entendimento dessas doenças é um passo para proteger populações vulneráveis, especialmente gestantes e recém-nascidos, e fortalecer a resposta a emergências sanitárias”, conclui a pesquisadora.
Confira o artigo “Investigating the association between yellow fever vaccination and symptomatic acute Zika virus infection: a case-control study” publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0328-2024.