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Estudo demonstra circulação do vírus mayaro e chikungunya ao mesmo tempo em Roraima

A descoberta ressalta a importância dos testes moleculares para avaliação precisa, já que as duas doenças apresentam quadros clínicos similares

06/07/2024

MAYV foi detectado em 3,4% das pessoas testadas, incluindo aquelas sem histórico de trabalho em áreas florestais, sugerindo que o vírus pode ter se espalhado para áreas urbanas

Um estudo publicado recentemente na revista Emerging Infectious Diseases, intitulado “Molecular Epidemiology of Mayaro Virus among Febrile Patients, Roraima State, Brazil, 2018–2021 revelou que os vírus mayaro e chikungunya circularam simultaneamente no estado de Roraima, na região amazônica. Este fenômeno de cocirculação, segundo os pesquisadores, enfatiza a urgência de reforçar a vigilância epidemiológica na área.

Para o estudo, os pesquisadores coletaram amostras de sangue, entre dezembro de 2018 e dezembro de 2021, de 822 pacientes com doença febril aguda (até 10 dias do início dos sintomas) que procuraram atendimento em unidades básicas de saúde em 11 dos 15 municípios do estado de Roraima. Utilizando PCR em tempo real, identificaram que 28 pacientes (3%) estavam infectados com o vírus Mayaro (MAYV), com a maioria dos casos (15) concentrados em Boa Vista, a capital do estado. Os sintomas mais comuns foram febre e mialgia, e apenas 21% dos pacientes apresentaram artralgia, característica clínica típica da infecção por MAYV.

Os cientistas também encontraram RNA do vírus chikungunya (CHIKV) em 16 (2%) e do vírus dengue (DENV) em 146 (17,8%) dos pacientes testados. Os números incluem 63 pacientes com DENV sorotipo 1 e 89 pacientes com DENV sorotipo 2. Entre esses, foram identificados 6 (1%) casos de codetecção de DENV-1 e DENV-2. A maioria dos casos de chikungunya, 13, (81%) ocorreu em pacientes com doença febril entre janeiro e julho de 2021, coincidindo com o pico de detecção de MAYV. Contudo, os casos de dengue foram predominantemente confirmados, 110 (75,3%) em pacientes com febre entre julho de 2019 e janeiro de 2020. Todas as amostras testadas foram negativas para RNA do vírus Zika, vírus Oropouche e para os sorotipos 3 e 4 de DENV.

O estudo revelou que as cepas do genótipo D, encontradas em Roraima, compartilham alta similaridade genética com outras cepas latino-americanas, indicando uma circulação contínua do vírus na região por mais de seis décadas. Os resultados deste estudo ressaltam a importância de vigilância contínua para o MAYV, especialmente em áreas onde epidemias de outros arbovírus são endêmicas. A falta de vacinas ou tratamentos específicos para o MAYV sublinha a necessidade urgente de desenvolvimento de estratégias de prevenção e controle, além de medidas para fortalecer a capacidade de diagnóstico laboratorial em regiões suscetíveis. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. José Luiz Proença-Modena, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) e um dos autores principais do artigo.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Como o senhor descreve a situação atual da febre Mayaro no mundo e especificamente no Brasil?

Dr. José Luiz Proença-Modena: A febre Mayaro é causada por um vírus endêmico da América do Sul e Central, com a maioria dos casos relatados no Brasil. Trata-se de uma infecção silvestre que circula predominantemente em área da floresta amazônica, envolvendo um ciclo de transmissão entre primatas, algumas espécies de aves, talvez preguiças e roedores, associada a copas de árvores, transmitida principalmente por mosquito do gênero Hemagogus.

Os relatos de infecção em humanos são esporádicos e geralmente ocorrem entre pessoas que adentram esses ambientes de mata. Portanto, a febreMayaro é considerada uma virose silvestre, na qual o humano é um hospedeiro acidental.

Embora haja a possibilidade de que, ao retornar para áreas urbanas, uma pessoa infectada possa estabelecer um ciclo de transmissão urbana, ainda não há confirmação de que isso esteja acontecendo de maneira disseminada em nosso País. Existem indícios, embora ainda frágeis, de que o vírus pode estar se adaptando para essa transmissão urbana, especialmente devido ao aumento dos relatos recentes de detecção de MAYV em áreas urbanas e da intensificação das atividades humanas em áreas florestais, aumentando a interação entre áreas urbanas e florestais.

O vírus circula predominantemente na região Amazônica, mas estudos indicam que ele tem o potencial de se disseminar para outras regiões do Brasil.

SBMT: Como os resultados do estudo sugerem que o vírus Mayaro pode estar se adaptando ou circulando em novos ambientes, quais são as implicações para a saúde pública, especialmente em áreas urbanas?

Dr. José Luiz Proença-Modena: Sobre a situação do vírus Mayaro no Brasil e sua possível adaptação a novos ambientes, temos observado um aumento no número de estudos e relatos de detecção em humanos, incluindo em regiões fora da Amazônia. Por exemplo, há relatos sistemáticos de detecção do vírus na região Centro-Oeste, sugerindo uma disseminação além da região Amazônica.

Nosso estudo é pioneiro na detecção do vírus Mayaro em Roraima. As notificações e relatórios oficiais, frutos desse estudo, mostram a presença do vírus em pessoas que vivem em diferentes regiões do estado. Até então, o vírus não havia sido detectado sistematicamente em humanos em Roraima, apesar de alguns relatos anedóticos de sua presença em animais, o que é estranho, já que Roraima possui áreas de floresta amazônica e interface com outros estados do Brasil e outros países onde já tinha o relato de circulação de Mayaro, inclusive de um surto recente na Guiana.

Ou seja, era um local onde esperávamos encontrar o vírus. De fato, o estudo confirmou sua presença, trazendo algumas particularidades interessantes. Primeiro, detectamos o vírus Mayaro simultaneamente ao Chikungunya, nas mesmas localidades, indicando a circulação de ambos os vírus. Além disso, encontramos o Mayaro em áreas mais densamente povoadas de Roraima, como Boa Vista, o que sugere, ainda que dependa de outras análises, a possibilidade de casos em regiões urbanas.

Ainda não podemos afirmar que houve transmissão urbana do vírus Mayaro em Roraima, já que muitas pessoas infectadas relataram atividades laborais em áreas de floresta, indicando uma possível infecção em ambiente silvestre. Entretanto, outras, não tinham essa ligação, levantando a hipótese de que esse vírus possa estar circulando em ambientes urbanos no estado, embora sem provas conclusivas.

Para confirmar a transmissão urbana, seria necessário um inquérito sorológico mais aprofundado e analisar a presença do vírus em vetores coletados na cidade. No entanto, como foi um estudo de conveniência, com amostras que já estavam estocadas no Laboratório Central de Saúde Pública (LACEN) e que vieram para nós alguns anos depois, era um coorte de 2008 a 2021, não conseguimos realizar essa investigação detalhada. Mesmo assim, a detecção do vírus em áreas estritamente urbanas de Roraima, como Boa Vista, é um ponto de atenção importante.

SBMT: Qual o impacto da codetecção de Mayaro com outros arbovírus, como Chikungunya e dengue, nos resultados e na interpretação do estudo?

Dr. José Luiz Proença-Modena: A codetecção de Mayaro e Chikungunya foi particularmente interessante. Esses dois vírus pertencem à mesma família e a estrutura antigênica deles é relativamente semelhante, como se fossem vírus aparentados, o que indica um alto grau de homologia entre eles. Ou seja, estudos, realizados principalmente com modelos animais, sugerem que pode haver uma proteção cruzada em pessoas previamente infectadas por um desses vírus. Em teoria, isso significaria que em áreas com alta circulação de Mayaro, a introdução de Chikungunya seria dificultada, e vice-versa. É como se, em uma área com alta circulação de Chikungunya, você tivesse um controle meio que natural para infecção pelo Mayaro.

No entanto, em Roraima, detectamos ambos os vírus nas mesmas áreas, cidades e até bairros, no mesmo período. Isso pode indicar que os dois vírus foram introduzidos recentemente em uma população majoritariamente não exposta, permitindo a circulação simultânea. Quer dizer, se uma pessoa eventualmente se expôs ao Mayaro e outra ao Chikungunya no mesmo momento, sem ter sido exposta previamente a nenhum dos dois, ela estaria suscetível a ambos e pegaria o que entrasse em contato primeiro. Outra possibilidade é que a proteção cruzada observada em estudos animais pode não ser tão eficaz em humanos. Ou seja, a proteção cruzada na realidade pode não ser tão verdade, o que suscita a hipótese de que eventualmente, uma pessoa já infectada com Chikungunya ou com Mayaro poderia potencialmente se infectar com o outro vírus.

Para comprovar essas hipóteses, são necessários estudos. Existem estudos em animais mostrando um efeito protetor. Mas precisaria realmente analisar isso agora em humanos a longo prazo e o melhor jeito é acompanhar as mesmas pessoas, de uma mesma região por um período para saber como está a soroconversão para os dois vírus ao longo do tempo. É desafiador diferenciar a reatividade cruzada entre os vírus, muitas vezes é difícil separar uma pessoa que teve um ou outro vírus. Mas é um indicativo que esses vírus eventualmente podem circular na mesma região.

E isso tem um impacto em termos de saúde pública e de diagnóstico, porque são vírus que causam uma doença muito parecida. Ou seja, o diagnóstico clínico diferencial entre eles é praticamente impossível. E mesmo o diagnóstico sorológico entre eles também é difícil. Se você procurar anticorpos IgM, por exemplo, para uma infecção recente, ou anticorpos IgG para uma infecção pregressa, para Mayaro ou Chikungunya, a tendência é que as reações se cruzem. Em uma área com codetecção, com circulação dos dois, esse tipo de ensaio pode ser pouco assertivo. Neste caso, é necessário partir para ensaios em que se consiga detectar o material genético do vírus ou mesmo isolá-lo, que foi o que fizemos. Conseguimos isolar o Mayaro, mostrando que ele estava ali, circulando e viável. Então, tem todo impacto em termos de vigilância e para se entender a dinâmica de circulação desses dois vírus, que ainda não é totalmente entendido.

Roraima já havia enfrentado uma epidemia de Chikungunya em 2017-2018, ou seja, esse vírus foi introduzido no estado recentemente e à época registrou muitos casos. A circulação ainda de Chikungunya e concomitantemente com Mayaro foi uma surpresa em termos de saúde pública e diagnóstico. Este achado é preocupante, mas também fornece dados valiosos para entender a dinâmica de circulação desses vírus, justificando a publicação de nossos resultados em uma revista científica de prestígio.

SBMT: Quais foram os principais desafios enfrentados ao realizar o estudo?

Dr. José Luiz Proença-Modena: Este estudo foi um prazer de realizar. Ele começou com a chegada da professora Fabiana Granja, de Roraima, ao meu laboratório na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela veio para aprimorar a vigilância e detecção de arbovírus em Roraima e aprender sobre métodos de cultura e isolamento de vírus. Eventualmente, o projeto foi desenvolvido pela minha aluna de mestrado, Julia Forato, que, junto com a professora Fabiana, o transformou em seu trabalho de mestrado. Também recebemos um pesquisador do LACEN de Roraima, o Cassio Meira, aluno da professora Fabiana no LACEN, que analisou parte das amostras incluídas no artigo e desenvolveu parte do seu mestrado conosco. Essa colaboração permitiu integrar diferentes saberes e contar uma história que poderia ter passado despercebida.

Essas amostras, inicialmente suspeitas de dengue e muitas vezes negativas para o teste NS1, teriam sido classificadas como doenças febris de caráter indeterminado. Por conta da pandemia, o escopo de testes possíveis estava restrito, e essas amostras não seriam mais investigadas. No entanto, conseguimos contar uma nova história através desta investigação.

O maior desafio foi conduzir o projeto em meio a tantas outras demandas durante a pandemia, o que gerou atrasos. Mas, no final, o estudo foi muito frutífero, permitindo-nos contar uma história importante e interessante.

SBMT: Como os achados do estudo podem influenciar políticas de saúde pública e estratégias de vigilância para arbovírus no Brasil, especialmente na região amazônica?

Dr. José Luiz Proença-Modena: O estudo demonstra a importância de buscar outros vírus além daqueles mais comuns. Precisamos ampliar o escopo de nossa busca, mesmo em cenários com alta circulação de arboviroses muito estabelecidas, como a dengue. Por exemplo, devemos considerar testar uma parte das amostras diagnosticadas por critério clínico epidemiológico como dengue, para outros vírus. Isso já começou a ser implementado, influenciado, talvez, pelos dados sobre Mayaro, não só por este estudo, mas também por outros, e pela epidemia de Oropouche, outra virose emergente, que está se espalhando pelo Brasil, especialmente no Norte.

Recentemente, foi criada uma portaria para que laboratórios de referência testem pelo menos 10% das amostras negativas para dengue para outros arbovírus endêmicos da América do Sul. Isso vai aumentar a probabilidade de detectar outros vírus. Antes, tais detecções ocorriam principalmente em estudos que estavam focados em procurar esses vírus ou em um cenário de vigilância, quando se deparava com um surto que não era dengue ou as viroses mais frequentes, como Chikungunya e Zika.

De modo geral, em situações de epidemias, é comum a adoção de um critério clínico-epidemiológico, que geralmente assume como causa de uma doença um determinado patógeno quando ele é muito frequente no período e os sintomas são compatíveis. Por exemplo, em situações, em que a incidência de dengue numa determinada região é maior do que 300 casos para cada 100.000 mil habitantes, é comum que a maioria dos casos de doença febril aguda com vermelhidão no corpo sejam relatadas como dengue por critério clínico epidemiológico, sem a necessidade da realização de exames laboratoriais.

Este ano temos uma epidemia de Oropouche, e a depender da época e do local, há mais casos de Oropouche do que dengue, o que chamou a atenção, e com essa mudança, começamos a detectar mais casos de Oropouche e mesmo Mayaro em outras regiões, pois a circulação estava mascarada pelos vírus mais prevalentes. Isso destaca a importância de ampliar nosso escopo de vigilância, mostrando a necessidade de buscar ativamente outros vírus, identificar corretamente a circulação e melhorar nossa resposta a eles.

SBMT: Como o diagnóstico laboratorial de Mayaro pode ser aprimorado com base nos resultados e metodologias utilizadas neste estudo? Existem tecnologias emergentes que poderiam melhorar ainda mais a detecção e caracterização do vírus?

Dr. José Luiz Proença-Modena: Sobre o diagnóstico, acredito que existe uma tendência clara que deve ser alcançada nos próximos anos: aplicar métodos que sequenciem tudo que está presente no paciente, utilizando protocolos de metagenômica. Isso significa sequenciar toda a diversidade de patógenos na amostra de um paciente, sem focar na detecção de um único patógeno, mas sim de tudo que possa estar ali.

Essa abordagem permite detectar infecções raramente identificadas, pois, atualmente, só encontramos o que procuramos especificamente. A tendência é que esses protocolos sejam cada vez mais usados para caracterizar surtos e infecções em humanos. Hoje, isso ainda é muito caro para ser uma estratégia de vigilância de rotina, custando milhares de reais por paciente, o que é inviável em larga escala. No entanto, com o avanço tecnológico, os custos de sequenciamento estão caindo, tornando essa metodologia mais economicamente viável e factível.

Certamente enfrentaremos gargalos, como a análise de dados e a necessidade de formar equipes capazes de trabalhar com grandes volumes de dados. Mas, a tendência é evoluirmos para isso, aprimorando a detecção de diversos patógenos, além dos vírus mais comuns. E aí, provavelmente vamos detectar Mayaro e outros vírus raramente detectados.

No estudo, utilizamos um protocolo tradicional de detecção por PCR e isolamento de vírus, seguido de metagenômica para sequenciar o Mayaro. Embora não tenhamos usado um protocolo metagenômico desde o início, acreditamos que a tendência é seguir nessa direção. Muitos casos que estudamos foram diagnosticados clinicamente como dengue, mas mais de 60% não resultaram em nenhuma detecção, indicando que algo está passando despercebido.

Adotar esses novos protocolos permite identificar outros patógenos. Por exemplo, dos casos suspeitos de dengue, apenas uma pequena parte foi confirmada como dengue. Todos os casos de Mayaro e Chikungunya tinham hipótese diagnóstica de dengue, e nenhum caso suspeito de Chikungunya foi confirmado. Isso mostra a dificuldade do diagnóstico clínico e a necessidade de avanços tecnológicos.

Com o avanço das tecnologias de sequenciamento, teremos métodos mais precisos que podem explorar a diversidade de vírus circulantes. Ainda há muito a ser descoberto, pois muitas infecções passam despercebidas simplesmente porque não sabemos o que procurar. A tendência é que, com o tempo, teremos uma vigilância cada vez mais assertiva.

SBMT: Gostaria de acrescentar algo?

Dr. José Luiz Proença-Modena: Gostaria de aproveitar para agradecer a todos que estiveram envolvidos no estudo. Foi um trabalho coletivo e muitas pessoas contribuíram para que ele acontecesse. Agradeço a todos em Roraima, especialmente à professora Fabiana Granja, e ao pessoal do LACEN, que foram fundamentais.

Também quero destacar a participação do professor William Marcel de Sousa, da Universidade de Kentucky, que foi essencial nas análises e para que conseguíssemos contar essa história, assim como os professores Nuno Faria, Scott Weaver e Ester Sabino. Agradeço muito aos estudantes de mestrado Julia Forato e Cassio Meira. Foi um grupo muito competente que colaborou para que conseguíssemos terminar esse projeto.

Por fim, lembrar que este foi um estudo multicêntrico e multidisciplinar, o que enriqueceu ainda mais o trabalho.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**