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Estudo detalha padrão espaço-temporal de disseminação da COVID-19 no Brasil

Estudo mostra que houve grande variedade na qualidade da resposta à pandemia, e isso é uma marca típica de problemas de omissão e erro do governo federal, considerando que o MiS e o SUS são os principais encarregados por medidas que visam a atenuar as desigualdades regionais nas políticas de saúde

08/05/2021
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Usando dados diários de casos e mortes fornecidos pelas secretarias estaduais de Saúde, a pesquisa concluiu que houve variação de padrões entre estados e municípios que reflete a diversidade das políticas de combate à COVID-19 ou a ausência delas.   Ilustração © Ildo Nascimento

Um estudo coordenado pela demógrafa Márcia Castro, professora e diretora do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, atribui ao governo brasileiro parte da responsabilidade pela gravidade da pandemia no Brasil. Intitulado Spatiotemporal pattern of COVID-19 spread in Brazil, o trabalho que mapeou detalhadamente o espalhamento da COVID-19 no Brasil entre fevereiro e outubro do ano passado saiu na mesma semana em que o Senado Federal preparava uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a responsabilidade por equívocos na resposta à pandemia. A pesquisa foi assinada por 10 cientistas do Brasil e dos Estados Unidos.

A Dra. Castro explica que o estudo faz uma análise detalhada do padrão espaço-temporal de disseminação da COVID-19 no território brasileiro, analisa a ocorrência de aglomerados espaciais e temporais, e quantifica e compara o processo de interiorização de casos e mortes em cada estado. “Ao analisar indicadores de aglomeração, trajetórias, velocidade e intensidade de propagação do COVID-19 para o interior, combinados com medidas de política, o estudo mostra que não há uma narrativa única que explique a propagação do vírus nos estados do Brasil”, ressalta a pesquisadora.

Ainda de acordo com a demógrafa, o estudo reflete sobre cinco fatores que contribuem para essa complexidade e o motivo de o País ter se saído tão mal no combate à pandemia. O primeiro é o tamanho e a desigualdade do Brasil, com disparidades em quantidade e qualidade de recursos de saúde (por exemplo, leitos hospitalares, médicos) e de renda. O segundo problema é uma densa rede urbana que conecta e influência os municípios por meio de transporte, serviços e negócios que não foi totalmente interrompida durante picos de casos ou mortes. O terceiro fator é o alinhamento político entre governadores e presidente, que teve um papel importante no início e na intensidade das medidas de distanciamento adotadas – cidades e estados governados por aliados do presidente tomaram menos ações, e a polarização ideológica politizou a pandemia com consequências para a adesão às ações de controle. O quarto ingrediente é a falha de testagem e acompanhamento da pandemia permitindo que o vírus circulasse sem detecção por mais de um mês (resultados comprovados em, pelo menos, um estado, o Ceará), com várias cidades tendo começado a registrar alta nas mortes por COVID-19 antes da alta de casos, em parte como resultado da falta de vigilância genômica bem estruturada. O quinto elemento é a falta de sincronia nas medidas de distanciamento e contenção do vírus – cidades impuseram e relaxaram medidas em diferentes momentos, com base em critérios distintos, facilitando a propagação.

Embora nenhuma narrativa única explique a diversidade na disseminação, um fracasso geral em implementar respostas imediatas, coordenadas e equitativas em um contexto de fortes desigualdades locais alimentaram a propagação da doença. Questionada sobre a forma como o Brasil se tornou o epicentro da doença no mundo, a Dra. Castro é categórica ao afirmar que foi uma sucessão de erros e oportunidades perdidas que se acumularam levando ao caos que enfrentamos, e que resultou (e continua resultando) em uma perda enorme (e evitável) de vidas. “Falta de coordenação federal, falta de comunicação em massa, falta de uma mensagem e ação com base na ciência, não incorporação efetiva da estratégia de saúde da família na resposta, minimizar a importância do vírus, promoção de medicamentos sem eficácia comprovada, entre outras”, destaca. A lista é longa, admite a professora de Harvard. Para ela, o Brasil, com o Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Básica com a capilaridade da estratégia de saúde da família, o Programa Nacional de Imunização (PNI), reconhecido internacionalmente por sua eficiência, a rede de pesquisadores e instituições acadêmica e de pesquisa que tem, não deveria estar na lista dos países que deram a pior resposta à pandemia.

Com base em estudos realizados anteriormente, o estudo mostra que houve grande variedade na qualidade da resposta à pandemia, e isso é uma marca típica de problemas de omissão e erro do governo federal, considerando que o Ministério da Saúde e o SUS são os principais encarregados por medidas que visam a atenuar as desigualdades regionais nas políticas de saúde. “Fica a lição de como a coordenação falha do governo federal rompeu o pacto integrado pela saúde durante uma emergência de saúde pública”, lamenta a diretora do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard.

Então o que deu certo no combate à COVID-19 no Brasil? A Dra. Castro enfatiza que a colaboração entre pesquisadores, as redes que foram criadas para gerar conhecimento e os esforços criados para captar e disponibilizar dados foram fantásticos. O engajamento público de cientistas, trazendo informação detalhada e de fácil entendimento à população também é louvável”, diz. A pesquisadora reconhece ainda os exemplos locais de prefeitos e governadores que tomaram as atitudes certas no momento certo. O estudo coordenado por ela aponta o Ceará como um dos estados que mais colheu resultados positivos ao adotar um conjunto de medidas preventivas mais intensas para conter a pandemia, o investimento na saúde, passando pela prática do isolamento social rígido até as ações sociais. As medidas econômicas adotadas pelo estado acabaram sendo um grande diferencial, comparado a outros estados que não tiveram essa iniciativa.

Por fim, o estudo lembra que o Brasil vive hoje o pior momento da pandemia, com números recordes de casos e mortes e a beira do colapso do sistema hospitalar e alerta para a adoção imediata de uma resposta nacional coordenada. A pesquisa ressalta ainda que a variante P.1, detectada pela primeira vez em Manaus e mais contagiosa, adiciona um agravante à situação de caos no País. O fracasso em evitar essa nova rodada de propagação pode facilitar o surgimento de variantes de preocupação (VOCs, na sigla em inglês), isolar o Brasil por representar uma ameaça à segurança da saúde global e levar a uma crise humanitária completamente evitável.

Infelizmente o caos da saúde pública também evidenciou as mazelas brasileiras trazendo a fome de volta. A pandemia demonstrou que não se pode separar saúde e economia, mas o problema é que a política se transformou de tal forma que a perspectiva sobre a saúde/ciência ficou partidarizada e, assim, aceitar ou não achados científicos passou a ser uma questão de ter ou não determinada afiliação política. A pandemia também revelou que as desigualdades locais persistem ao fazer com que muitas famílias entrassem na linha da pobreza e ao levar a fome a inúmeros brasileiros já sofridos, cansados e doentes. Para a especialista em Saúde Global e População é preciso compromisso real e verdadeiro para enfrentar as desigualdades estruturais que acompanham o Brasil desde sempre. “Sem uma agenda social que foque nas desigualdades, sem compromisso sério de alcançar as metas sustentáveis do milênio, essa situação não se altera”, atenta a Dra. Marcia Castro.