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Face da pobreza: doença que destrói rosto de crianças pode entrar para a lista de DTN da OMS

Sem tratamento, o Noma tem taxa de mortalidade de até 90%

09/11/2023

Apesar de ser rara e quase desconhecida em muitas partes do mundo, o Noma é uma ameaça real para a saúde de crianças e pode causar danos irreparáveis se não for tratado a tempo

Doença devastadora e pouco conhecida que assola comunidades que vivem em condições de extrema pobreza, o Noma, ou cancrum oris, também conhecida como doença da fome, afeta principalmente crianças entre 2 e 5 anos de idade. Sem tratamento, ela corrói a pele e os ossos do rosto em apenas algumas semanas, levando até 90% dos infectadas à morte. Quem sobrevive, muitas vezes precisa enfrentar um futuro de dor, desconforto e estigma social. Evitável, requer cuidados médicos básicos urgentes nas fases iniciais, o que se torna uma grande barreira, já que a maioria dos casos ocorre em locais com recursos limitados. Os sobreviventes frequentemente têm graves desfigurações faciais e múltiplas deficiências funcionais, incluindo dificuldades para comer, enxergar e respirar, o que contribui para a estigmatização. Geralmente, crianças afetadas pela doença são marcadas socialmente, humilhadas e hostilizadas nas comunidades devido à mutilação da face, fato que faz com que muitas sejam criadas escondidas em aldeias remotas.

Tratar os sobreviventes e prevenir o desenvolvimento de novos casos requer ações que devem ser tomadas de maneira global e integrada. De acordo com a Dra. Elise Farley, epidemiologista que trabalhou para várias organizações sem fins lucrativos na África desde 2007, estudando o Noma no noroeste da Nigéria, o primeiro passo é o reconhecimento do Noma como uma Doença Tropical Negligenciada (DTN) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “A inclusão aumentaria a conscientização necessária sobre a doença e facilitaria o envolvimento de doadores para apoiar iniciativas de prevenção do desenvolvimento de novos casos, fornecer meios para detecção e tratamento precoces e aumentar o acesso à cirurgia reconstrutiva para os sobreviventes”, assinala.

Recentemente o Ministério da Saúde da Nigéria fez um pedido à OMS para adicionar o Noma à lista de DTN. Esse pedido foi debatido na recente reunião do STAG, e está sendo aguardada uma decisão. A inclusão oficial pode dar destaque a uma das doenças mais negligenciadas, facilitando a integração das atividades de prevenção e tratamento nos programas de saúde pública existentes e a alocação de recursos tão necessários. Isso vai permitir que as crianças sejam examinadas em países endêmicos desde as primeiras evidências clínicas, quando vidas ainda podem ser salvas. O pedido de inclusão vai ao encontro da resolução sobre saúde bucal adotada em 2021, na 74ª Assembleia Mundial da Saúde.

O segundo passo seria abordar os principais fatores de risco do Noma. “Se o status socioeconômico das populações vulneráveis for melhorado, a pobreza e a fome erradicadas e o acesso a cuidados de saúde de qualidade fosse garantido, os principais fatores de risco do Noma seriam eliminados. A erradicação deve ser usada como um indicador de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão sendo alcançados e que as pessoas não estão mais sendo deixadas para trás”, destaca a Dra. Farley. Ainda de acordo com ela, outra ação seria que governos e organizações não governamentais conduzissem pesquisas epidemiológicas e melhorassem a notificação, para que o ônus e a distribuição do Noma pudessem ser melhor compreendidos. “Essas pesquisas poderiam ser combinadas com outras atividades de acordo com a abordagem integrada sugerida no Plano de Ação de DTN para 2030. Exemplos de medidas integradas incluem a inclusão de triagens bucais a avaliações de rotina de saúde, pesquisas sobre desnutrição, campanhas de vacinação e programas de administração em massa de medicamentos para outras DTN”, assinala. Por fim, ela sugere incluir o Noma nos programas de treinamento de Medicina Tropical, Medicina e Enfermagem, bem como fornecer treinamento para profissionais de saúde existentes, prestadores de cuidados de saúde tradicionais e membros da comunidade.

Embora o Noma seja relatado por séculos, há estudos robustos mínimos e inúmeras lacunas no conhecimento. Para a Dra. Farley, há uma escassez de literatura devido à natureza negligenciada dessa doença em geral e também na comunidade científica. A rápida progressão e a alta taxa de mortalidade relatada, a localização remota dos pacientes, a subnotificação e o diagnóstico incorreto contribuem para a limitação da literatura disponível e para uma compreensão deficiente. Entre as lacunas de conhecimento ela cita: ônus da doença (incidência e prevalência); distribuição global dos casos, etiologia, fatores de risco para a progressão para as fases posteriores e eficácia de métodos e mensagens de prevenção. Atualmente há uma equipe da Universidade de Liverpool e Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalhando em um estudo piloto que vai investigar a microbiologia do Noma.

Questionada sobre os principais desafios no diagnóstico precoce da doença, a Dra. Farley menciona a falta de conscientização entre os profissionais de saúde. “A rápida progressão da doença e o fato de muitos pacientes viverem em áreas rurais distantes dos serviços de saúde fazem com que muitos não cheguem a tempo para receber assistência médica, e mesmo quando o fazem, os profissionais de saúde frequentemente não sabem o que é a doença ou como tratá-la”, lamenta. Ela explica que o Noma pode apresentar sinais e sintomas semelhantes a mordidas de animais, queimaduras, bouba sifilítica, úlcera de Buruli, hanseníase, câncer oral ou queimaduras químicas. Ainda de acordo com a epidemiologista, a rápida destruição do tecido é típica do Noma, uma infecção oportunista que afeta crianças pobres cujo sistema imunológico está comprometido pela desnutrição e, frequentemente, por outras infecções, como sarampo ou malária. “Outras lesões faciais ulcerativas, como câncer oral, sífilis e bouba, são improváveis em uma criança pequena. A leishmaniose cutânea é improvável de se desenvolver a uma velocidade tão rápida e ser tão destrutiva. Traumas ou mordidas de animais podem curar com grandes defeitos faciais, mas a história da lesão revela a causa”, exemplifica ao complementar que o diagnóstico diferencial geralmente é claro a partir do histórico do paciente.

O Noma frequentemente leva à estigmatização e ao isolamento social dos sobreviventes e de seus familiares nas comunidades. O tratamento invariavelmente requer apoio social e psicológico tanto para os sobreviventes quanto para suas famílias. Historicamente negligenciado, o Noma, segundo a Dra. Farley, requer mais interesse, mais pesquisa e mais apoio aos sobreviventes. “Se os pacientes puderem acessar os cuidados de que precisam nas fases iniciais reversíveis da doença, a gravidade da infecção pode ser reduzida e vidas poderem ser salvas”, frisa. O tratamento com antibióticos, desbridamento de feridas e suporte nutricional nas fases iniciais reduz significativamente a mortalidade e morbidade.

Há uma necessidade urgente de explorar tanto o ônus quanto a distribuição de casos em nível global. Às vezes, chamado de “o rosto da pobreza”, o Noma pode ser considerado um indicador biológico de múltiplas violações dos direitos humanos, incluído o direito à alimentação. Não apenas as deformações são inaceitáveis, mas sobretudo o fato de que a prevenção pode ser feita com medidas simples como alimentação saudável e higiene bucal. Eventualmente, um desfecho feliz ou, pelo menos, não tão desfigurado, pode ser possível: em 2017, os cirurgiões da ONG MSF operaram o rosto de 243 sobreviventes do Noma.

Lacunas na compreensão da doença

Observou-se uma mudança nos casos relatados, principalmente na Europa e na Índia no século XIX, para partes da África e América do Norte no século XX e para África, América do Sul e Ásia no século XXI. Casos de Noma foram relatados em soldados em tempos de guerra na década de 1880; nos campos de concentração de Belsen e Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial e na população em geral na Holanda durante a fome no inverno de 1944/1945. Desde esses relatos ocorridos em tempos de guerra na Europa, a prevalência  da Noma diminuiu drasticamente e, hoje, a doença é relatada apenas esporadicamente na região, na maioria das vezes em conjunto com comorbidades, como a infecção pelo HIV. Nos últimos anos, o Noma tem sido relatado principalmente em países de baixa renda na África e na Ásia. A patogênese é pouco compreendida, e a microbiologia é objeto de debate.

Em 1998, a OMS estimou que ocorriam cerca de 140 mil novos casos a cada ano em todo o mundo e que 770 mil pacientes viviam com sequelas à época. A origem dessa estimativa não está clara, mas acredita-se que seja baseada na opinião de especialistas. Houve várias outras estimativas sobre ônus da doença, variando de 4,2 casos agudos por um milhão de crianças senegalesas com idades entre 1 e 4 anos a sete casos por mil crianças com idades entre 1 e 16 anos na Nigéria. Um estudo de prevalência com base na comunidade, em 2018, estimou que 129.120 crianças com menos de 16 anos teriam tido algum estágio de Noma em dois estados da Nigéria, indicando que as estimativas globais da OMS podem ser significativamente subestimadas. No entanto, é difícil comparar as estimativas do ônus da doença, pois muitas vezes não está claro quais estágios estão incluídos e os desenhos dos estudos variam amplamente (a maioria são revisões são estudos retrospectivos baseados em prontuários hospitalares, estimativas de modelagem ou ancoradas na opinião de especialistas).

Há evidências limitadas sobre a patogênese do Noma no sentido do seu desfecho para o óbito; essa evolução tem sido associada principalmente à fome, pneumonia por aspiração, insuficiência respiratória ou sepse. Os fatores que favorecem a sobrevivência (além do tratamento com antibióticos e desbridamento de feridas) são desconhecidos. A taxa de mortalidade depende de vários fatores e é pouco enumerada. A OMS (com base na opinião de especialistas e análises retrospectivas de prontuários) afirma que a taxa de mortalidade chega a 90% nas semanas seguintes ao início da doença, se não tratada. A velocidade com que a morte ocorre também é debatida, sendo que alguns afirmam que ocorre em tão pouco quanto duas semanas a partir do início dos primeiros sinais e sintomas, mas não está claro quais são esses sinais e sintomas. A estimativa mais clara já descrita é que a morte pode ocorrer em questão de dias após o início do edema local. O certo é que, quando identificado e tratado a tempo, a mortalidade diminui significativamente.

Saiba mais:

Noma no Brasil:
Noma (cancrum oris) associated with oral myiasis in an adult

Noma (cancrum oris): A scoping literature review of a neglected disease (1843 to 2021)

World Health Organization Regional Office for Africa – 2017 – Information brochure for early detection and management of noma. 2017

Informativo para detecção precoce e gestão do Noma em português

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**