_destaque, Notícias

Febre do Nilo Ocidental: profissionais de saúde não estão preparados para identificar a doença

O vírus do Nilo Ocidental ainda é pouco conhecido e a suspeição de casos clínicos, causados por ele, pode não estar sendo feita, pela ausência em pensar no mesmo como um agente de doença no Brasil

09/07/2019
width=450

Há dificuldade do diagnóstico do vírus do Nilo Ocidental devido à reatividade cruzada entre ele e outros flavivírus como o dengue, febre amarela, Zika, e outros

O Brasil confirmou este ano o segundo caso de febre do Nilo Ocidental. O primeiro foi registrado em 2014, em Aroeiras do Itaim, e outro, em Picos, ambos no estado do Piauí (PI). O neurologista do Instituto de Doenças Tropicais Natan Portella e membro da Gerência de Epidemiologia da Fundação Municipal de Saúde de Teresina (FMS/PI), Dr. Marcelo Adriano Vieira, que diagnosticou o primeiro caso brasileiro juntamente com o Dr. Pedro Vasconcelos, médico virologista e diretor do Instituto Evandro Chagas (IEC), no Pará (PA), admite que nos últimos anos tem havido um número relativamente estável de notificações de encefalite no Piauí, com alguma sazonalidade. Para ele, o fato do estado ser o único a registrar a doença se explica porque foi pioneiro na implantação de um sistema de vigilância de encefalites virais, iniciado em 2012, sob apoio do IEC, envolvendo a investigação para herpes vírus, enterovírus e arbovírus, inclusive o Vírus do Nilo Ocidental (VNO). “Além disso, existem rotas de aves migratórias intercontinentais que passam pelo estado. Entretanto, precisamos de mais estudos para verificar quais características do bioma local favoreçeram o surgimento dos casos”, acrescenta.

Mas na opinião do Dr. Pedro Vasconcelos mais casos devem ser diagnosticados nos próximos anos. E para dificultar a situação, ainda segundo ele, os profissionais de saúde não estão preparados para identificar a doença e o principal motivo é a ausência de suspeição e a falta de informações. O virologista argumenta que além de ações de vigilância e investigação para melhor compreensão da epidemiologia do vírus no País, ainda se faz necessário divulgação de informações sobre a arbovirose com detalhes sobre os quadros clínicos que o VNO pode causar focando na febre do Nilo e na encefalite causada pelo VNO. Além disso, ele ressalta que como o vírus do Nilo ainda é pouco conhecido, a suspeição de casos clínicos causados por ele pode não estar sendo realizada, talvez pela ausência em pensar no mesmo como um agente de doença no Brasil. Outro ponto também considerado crucial pelo especialista é a limitação dos laboratórios capazes de fazer o diagnóstico do VNO no País. Ele enfatiza a necessidade de aumentar a rede de laboratórios capazes de fazer o diagnóstico específico principalmente dos casos neurológicos.

A dificuldade no diagnóstico da febre do Nilo devido à possibilidade de reações cruzadas para vírus semelhantes é outro problema. A apresentação clínica da encefalite pelo VNO pode se assemelhar bastante com aquelas causadas por outros vírus, e assim pode passar despercebida, se a investigação sistemática não for realizada. Essa reatividade ocorre porque os flavivírus compartilham um genoma muito próximo, semelhante mesmo em muitas regiões; o RNA viral codifica a produção de certas proteínas que vão induzir a resposta imune do hospedeiro (para a produção de anticorpos), o que faz com que a pessoa responda sorologicamente de modo que se observa cruzamento sorológico. Por exemplo, se ela é vacinada contra febre amarela e já se infectou por dengue, caso se infecte por outro sorotipo de dengue ou outro flavivírus circulante no Brasil (aqui são reconhecidos circulando 13 diferentes flavivírus), a reatividade sorológica será do tipo secundária, o que significa dizer que por sorologia, a reação em testes laboratoriais será para múltiplos flavivírus e não apenas para o responsável pela doença.

Isso se torna um sério problema para definir a causa da doença, e é um problema que se observa em todos os métodos sorológicos inclusive o ensaio imunoenzimático (ELISA), o principal teste sorológico usado para diagnosticar dengue, febre amarela, Zika e também o VNO. Essa reatividade cruzada limita muito o uso de métodos sorológicos para fazer o diagnóstico específico de flavivírus em países endêmicos para a circulação de vários flavivírus como é o caso do Brasil. Entre 2014 e 2018, 31 casos suspeitos da doença tiveram resultado indeterminado. Os testes de neutralização são recomendados, mas o cruzamento sorológico verificado nos testes ELISA-IgM e IH tem persistido nos testes de neutralização, por conta da semelhança antigênica entre os flavivírus e porque a maior parte dos casos corresponde a pacientes com infecções secundárias por flavivírus – o que limita muito a capacidade discriminativa dos testes de neutralização.

Não existe dificuldade para o diagnóstico virológico, por exemplo, com os métodos moleculares principalmente a transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase em tempo real (RT-qPCR) ou o cultivo celular para isolamento viral. Mas esses últimos procedimentos laboratoriais devem ser testados em amostras de sangue obtidas com até cinco dias do início dos sintomas. Já para a sorologia o ideal é se obter amostras sanguíneas a partir do sexto dia de doença.

Mas será que o Brasil corre risco de uma epidemia da doença? Seguindo a linha de raciocínio de que infecções prévias por outros flavivírus (dengue, por exemplo) podem exercer um efeito protetor relativo sobre população brasileira, contra a infecção pelo VNO, o risco seria baixo, a não ser que condições ambientais extremamente favoráveis, em determinados nichos ecológicos, em determinados momentos, sobrepujem esta proteção relativa.

Em junho do ano passado, a morte de cavalo causada pela Febre do Nilo Ocidental colocou o estado do Espírito Santo em alerta. Na ocasião, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) expediu nota técnica confirmando a presença da doença no Brasil e recomendou a intensificação da vigilância para detecção de animais com sintomas. Inquéritos sorológicos realizados em animais no Brasil apontam para uma distribuição ampla do vírus no País, guardadas as limitações inerentes ao método (sorológico), para inferências mais concretas. Mais informações podem ser obtidas no artigo First isolation of West Nile virus in Brazil, que apresenta a aplicação da técnica de relógio molecular sobre o vírus isolado a partir do cérebro de equídeos do estado do Espírito Santo.

Evidências sorológicas da circulação do VNO também foram demonstradas em determinadas áreas do Pantanal e da Amazônia. Se o VNO irá se tornar enzoótico nessas áreas é difícil de saber. Todas as condições para se estabelecer existem. Os elementos básicos dos ciclos dos arbovírus, como o VNO existem, quais sejam, artrópodes hematófagos e vertebrados silvestres que atuam como vetores e hospedeiros amplificados respectivamente. Se ele vai se tornar endêmico ou não somente o tempo dirá. Entretanto nenhuma epidemia do VNO terá o mesmo impacto das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, mesmo nos países com pouca ou nenhuma circulação prévia em grande escala de outros flavivírus. A melhor forma de melhorar a conscientização para o VNO é informar a população sobre a doença que ele pode causar em humanos, mas também e, sobretudo em animais. Para o Dr. Pedro Vasconcelos, a mortandade em aves é um alerta e sentinela dos mais importantes para a circulação do VNO nos EUA e Europa, e deve ser considerada também no Brasil. A morte de aves é um poderoso sinal da circulação de um agente infeccioso, que pode ser o VNO ou outro arbovírus. Isso ocorre porque as aves aqui nas Américas não tem imunidade para o VNO e o ciclo básico de manutenção desse vírus tem como hospedeiro vertebrado principal as aves silvestres.

“A doença neuroinvasiva pelo VNO é um desafio diagnóstico no Brasil”, enfatiza o Dr. Marcelo Adriano ao detalhar que geralmente, quando o paciente manifesta sintomas neurológicos que sugerem a doença, ele já está fora do período de viremia. Portanto, as técnicas de isolamento viral e de detecção genômica aplicadas a sangue ou líquor colhidos no momento em que se suspeita de encefalite são pouco sensíveis. Nesta fase, em tese, os testes sorológicos seriam a “saída” para o diagnóstico. Entretanto, proporção significativa da população já fora exposta a algum outro flavivírus (selvagem ou vacinal). Isso faz com que os testes sorológicos realizados sejam influenciados pelo fenômeno do “pecado antigênico original”, que se alia à semelhança antigênica entre os flavivírus para resultar em cruzamentos sorológicos, mesmo nos testes de neutralização. Por fim, o especialista lembra que alguns estudos apontam que a detecção genômica em amostras de urina pode ser uma saída, pois a virúria parece estar presente por mais tempo e com níveis mais altos na fase sintomática (neurológica) da doença.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**