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Febre maculosa: doença apresenta assustadora letalidade, que pode chegar a 80%

Região Sudeste foi, de longe, a que registrou mais óbitos em 2022

09/02/2023

O tratamento, disponível em todas as Unidades Básicas de Saúde, é seguro e eficaz. Iniciado precocemente resulta em baixo risco de complicações e elevada taxa de cura

Super-resistentes, escalam paredes, conseguem se esconder em até 10 cm abaixo do solo, sobrevivem com baixa demanda de oxigênio e ficam até dois anos sem comer. Assim os carrapatos se espalham pelo mundo. Apesar de não serem venenosos ou tóxicos, como aranhas e escorpiões, os carrapatos são vetores de grandes doenças, sendo tão perigosos quanto os mosquitos. Para se ter uma ideia, entre as doenças transmitidas por vetores, a febre maculosa está junto com a febre amarela como a mais letal. Por ser endêmica, mata mais que a febre amarela que tende a ocorrer em surtos epidêmicos. Estima-se que haja mais de 850 espécies diferentes no mundo, mas o carrapato-estrela merece destaque devido ao seu impacto na saúde pública. Também conhecido como carrapato-de-cavalo, carrapato-redoleiro ou micuim, ele é responsável pela transmissão da Febre Maculosa Brasileira (FMB), doença grave causada pela bactéria do gênero Rickettsia rickettsii, que pode levar à morte. No Brasil, duas riquétsias são reconhecidas por causarem febre maculosa em humanos: Rickettsia rickettsii e Rickettsia parkeri.

De difícil diagnóstico e com alta taxa de letalidade, a febre maculosa tem preocupado as autoridades de saúde do País. Segundo dados do Ministério da Saúde, até 22 de setembro de 2022, foram confirmados 67 casos naquele ano, dos quais 18 (26%) vieram a óbito. A região Sudeste foi, de longe, a que mais registrou, foram 13, ao todo. As mortes ocorreram em São Paulo (11), Minas Gerais (1) e Rio de Janeiro (1). A cidade de Campinas (SP) teve o segundo maior número de óbitos, das 11 pessoas que contraíram a febre maculosa no ano passado, 7 morreram. O Maranhão também registrou um óbito pela doença. Outras quatro mortes não tiveram os estados informados quanto ao local de infecção. Em 2021, foram registrados no País cerca de 233 casos confirmados, com 70 óbitos.

O Dr. Marcelo Bahia Labruna, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), um dos maiores especialistas no assunto, explica que a Rickettsia rickettsii, clássica bactéria causadora da FMB, conhecida no Brasil desde a década de 1920, mesmo agente da febre maculosa das montanhas rochosas, nos Estados Unidos, onde foi descrita pela primeira vez, está restrita aos quatro estados da região Sudeste e ao norte do Paraná. “A doença continua endêmica na região Sudeste. Em São Paulo, por exemplo, ela tem ocorrido nos últimos 10 anos de forma endêmica, ou seja, o número de casos está estável e oscila entre 70 e 100, sem apresentar tendência de aumento nem de diminuição nesse período. A partir de 2001, quando a doença foi incluída na lista de notificação compulsória no Brasil, ou seja, deve ser obrigatoriamente comunicada às autoridades de saúde pública, foi registrado um aumento substancial de casos”, completa.

Com índice de letalidade em torno de 50%, considerado assustador e grave pelo Dr. Labruna, isso se deve ao retardo da suspeita diagnóstica e início do tratamento específico. “Só se morre de febre maculosa porque houve diagnóstico impreciso no estágio inicial”, salienta. O diagnóstico oportuno, principalmente durante os primeiros dias de doença, é difícil, já que os sintomas também são parecidos com outras doenças, como leptospirose, dengue, hepatite viral, malária, sarampo e pneumonia, porém imperativo. A demora na suspeita clínica, segundo o Dr. Labruna, pode ser justificada por ser uma doença relativamente rara, mas, além disso, ele classifica que existe falta de conhecimento epidemiológico por parte dos profissionais de saúde, principalmente do médico, que muitas vezes desconhece que há febre maculosa na área onde atua. “Se não estiver capacitado localmente para saber que a doença está no seu município ou na sua região, isso faz com que não leve em consideração a febre maculosa. Ao chegar um quadro clínico de síndrome febril hemorrágica, ele vai pensar em inúmeras doenças, mas se existe histórico de febre maculosa no local, é fundamental que ele tenha isso em mente para que possa entrar com tratamento imediato, mesmo sem o diagnóstico”, assinala ao ressaltar a importância da capacitação periódica dos profissionais de saúde em todas as áreas onde a doença ocorre.

Expansão da febre maculosa pelo Brasil

Nos últimos 20 anos, temos observado a expansão da doença por todo o território brasileiro, e hoje encontramos casos em todas as regiões. O professor Labruna destaca que se trata de outra febre maculosa, também transmitida por carrapatos, causada pela Rickettsia parkeri. Sua maior incidência é em Santa Catarina, seguida por São Paulo. Há casos confirmados também na Bahia e no Ceará, bem como sorologicamente nas regiões Centro-Oeste e Norte. “Além desses locais, temos outros em que não houve confirmação do agente etiológico e certamente não foram causados pela Rickettsia rickettsii, já que se tratam de casos brandos. É provável que seja Rickettsia parkeri, ou alguma Rickettsia que ainda não sabemos, mas pertencente ao grupo da febre maculosa”, detalha.

A febre maculosa branda, causada pela Rickettsia parkeri, está em expansão no Brasil inteiro. Ela tem sido cada vez mais encontrada em carrapatos que parasitam humanos, em áreas onde os especialistas não sabiam de sua presença, e tem provocado quadros clínicos reportados pela primeira vez em alguns estados. O professor sublinha que a Rickettsia parkeri é uma febre maculosa que chama atenção porque o quadro clínico é bastante semelhante a febre maculosa clássica. Em termos de vigilância, diagnóstico e tratamento, as duas acabam reportadas ao Ministério da Saúde juntas, porém é importante citar que a febre maculosa letal, causada por Rickettsia rickettsii, tem ocorrido somente na região Sudeste e no Paraná, nas demais regiões ainda há pouca informação a respeito. “Os estudos têm sido concentrados na região Sudeste, onde conhecemos mais a epidemiologia da doença, diagnóstico, tratamento. Nas demais regiões, tem ocorrido descobertas de novos agentes como a Rickettsia parkeri, que até então não causa quadros muito severos, mas causam quadros clínicos debilitantes, ou seja, não é uma doença qualquer, mas que até agora não chegou a matar ninguém. Seguramente temos novos agentes causadores de febre maculosa transmitidos por carrapatos em outras regiões do Brasil que ainda precisam ser investigados. Dada a grande extensão territorial do País, com certeza sabemos muito pouco ainda dos agentes transmitidos por carrapato no Brasil, principalmente aqueles que podem causar quadros clínicos do tipo da febre maculosa”, conclui o Dr. Labruna.

Tratamento “no escuro” em casos suspeitos

De acordo com o professor, em caso de suspeição clínica, o profissional deve prescrever imediatamente antibiótico à base de doxiciclina, já o paciente ainda tem condições de receber a medicação na forma oral, antes que evolua para um quadro avançado. A confirmação do resultado laboratorial de um exame, seja sorológico ou molecular pode ser realizada posteriormente. Para o Dr. Labruna, essa é a forma de evitar mortes. “Não existe resposta de diagnóstico rápida. Hoje temos a opção de sorologia, negativa na grande maioria das vezes no quadro agudo, não deu tempo de gerar anticorpos. Para fazermos o diagnóstico sorológico, precisamos de amostra na fase aguda, quando o indivíduo muitas vezes ainda está sorologicamente não reativo. A segunda amostra é colhida em torno de duas semanas depois, quando ele já está na fase convalescência. Então, se foi administrado antibiótico, ele já estará sem qualquer sintoma clínico”, elucida.

O Dr. Labruna é categórico ao repetir que não se pode esperar, já que 80% das vezes, o paciente acaba vindo a óbito. “A letalidade da doença em casos não tratados com antibiótico é de 80%. Suspeitou, colhe a primeira amostra de sangue e trata com antibióticos. Duas semanas depois, colhe a segunda amostra para ver a sorologia”, frisa. E quanto ao PCR e ao diagnóstico molecular? Ele atenta que se for realizado na primeira amostra, não é confiável, já que a sensibilidade do PCR de sangue para febre maculosa é baixíssima e mais de 90% dos quadros clínicos atendidos na forma aguda no início vão ser negativos na PCR. “Será um resultado com grande chance de dar negativo. Vai ter uma sensibilidade de menos de 10% na fase aguda, no início da doença, talvez até zero”, lembra.

Questionado sobre o momento ideal para se fazer o diagnóstico por PCR de sangue, o professor responde que praticamente só nos quadros graves, já avançados, com uma semana de curso clínico ou mais, em que apresenta destruição endotelial severa no corpo inteiro e o paciente está à beira da morte. “Nesse momento haverá um grande número de riquétsias e bactérias circulantes no sangue, porque houve extensa destruição endotelial, e aí  conseguimos o PCR positivo, mas não tem mais jeito, o estrago já foi feito e não adianta entrar com antibiótico nessa fase, porque ele apenas impede a bactéria de multiplicar, não faz a regeneração das células endoteliais  destruídas pela bactéria. Se existe extensa destruição endotelial, tanto faz ser de antibiótico ou não, o indivíduo vai morrer”, lamenta ao acrescentar que, infelizmente, PCR positivo em pessoa viva é fator preditivo para morte, pois significa que já houve destruição endotelial muito grande. “Por isso, não contamos com o PCR no primeiro atendimento clínico no ambulatório, porque a chance de dar positivo é muito baixa”, diz.

O especialista reconhece que não poder confirmar um diagnóstico para iniciar ou prescreveu o tratamento é uma situação muito difícil. No estado de São Paulo, por exemplo, de cada mil notificações por ano, apenas 10% são confirmadas como febre maculosa. Isso significa que 900 casos, em média, estão sendo tratados com antibiótico sem ser febre maculosa. “Não importa, o antibiótico é seguro e se tratarmos 900 pessoas para salvar uma vida já compensou. Não devemos esperar diagnóstico laboratorial, primeiro tratamos e depois confirmamos, após ter salvo a vida dele”, reforça. Vale mencionar que o manual do Ministério da Saúde e o de orientação da Secretaria de Saúde de São Paulo, preconizam o início do tratamento com antibiótico na menor suspeita clínica, já no atendimento ambulatorial. Por ser uma doença de notificação compulsória, na suspeita clínica, o profissional de saúde é obrigado a coletar amostra e enviá-la para o Laboratório Central do Estado (Lacen) onde atua, a exemplo do Instituto Adolfo Lutz (IAL), da Fundação Ezequiel Dias (Funed) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O diagnóstico é ofertado de forma gratuita na rede pública de saúde.

O tratamento é antibioticoterapia a base de doxiciclina, bastante seguro e eficaz. Após o início do tratamento, em um ou dois dias, o paciente já deve estar sem febre. Caso não cesse em 48 horas, possivelmente o quadro clínico não é febre maculosa. A letalidade em casos tratados precocemente, até o terceiro ou quarto dia do curso clínico, é praticamente zero. A partir do quarto ou quinto dia, o prognóstico passa a ser um pouco reservado, uma vez que a destruição endotelial pode causar quadros clínicos mais graves, principalmente edema pulmonar, quadros nervosos, falência hepática ou renal, o que pode comprometer o curso da doença. Se a pessoa já estiver com sete dias de febre, aí o prognóstico é bastante desfavorável e a letalidade pode chegar a 80%, o antibiótico não vai mais surtir efeito e houve muita destruição. Não existe vacinas disponíveis para prevenção da febre maculosa.

O professor chama a atenção para o fato da literatura apontar que a doxiciclina não pode ser prescrita a mulheres grávidas ou crianças, porque causa incorporação do antibiótico no esmalte dentário e isso leva a alterações na coloração do dente para o resto da vida, e que se incorpora nos ossos. “Isso não vale mais para a febre maculosa e, por mais que a bula do medicamento diga para não prescrever esse medicamento para crianças, o médico deve se embasar em documentos oficiais. Hoje a recomendação do Ministério da Saúde e das guias internacionais é a doxiciclina, inclusive para crianças e mulheres grávidas. O tratamento é tão eficaz que, quando prescrito precocemente, em três a quatro dias já controlou o quadro clínico e esses cinco a sete dias não vão interferir na coloração do esmalte dentário”, garante o Dr. Labruna. O tratamento está disponível em todas as Unidades Básicas de Saúde, principalmente em áreas onde existe histórico de febre maculosa.

Sobre a febre maculosa

Os primeiros casos no Brasil datam de 1929 no estado de São Paulo. É transmitida principalmente pelo carrapato-estrela (Amblyomma sculptum), que nas áreas endêmicas pode ser encontrado em cavalos, cães, e, principalmente, capivaras, o maior de todos os reservatórios naturais. Na região metropolitana de São Paulo, a transmissão ocorre excepcionalmente pelo carrapato-amarelo-do-cão (Amblyomma aureolatum), sem qualquer relação com as capivaras. A febre maculosa é uma doença infecciosa, febril aguda. Os principais sintomas incluem febre, dor de cabeça intensa, náuseas e vômitos, diarreia e dor abdominal, dor muscular constante, inchaço e vermelhidão nas palmas das mãos e sola dos pés, gangrena nos dedos e orelhas, paralisia dos membros que inicia nas pernas e vai subindo até os pulmões causando parada respiratória. Assim que surgir os primeiros sintomas, é importante procurar uma unidade de saúde para avaliação médica.

Ficar longe do carrapato é a melhor forma de evitar a doença. A adoção de algumas medidas, principalmente em locais onde há exposição, pode  prevenir: utilizar roupas claras ajuda a identificar o carrapato; usar calças, botas e blusas com mangas compridas ao caminhar em áreas arborizadas e gramadas; todas as peças de roupas devem ser colocadas em água fervente após a utilização; evitar andar em locais com grama ou vegetação alta; passar repelentes no corpo. Também é importante sempre verificar se há algum carrapato aderido ao seu corpo ou no seu animal de estimação. Caso encontre, o ideal é remover com uma pinça, sem apertar ou esmagar. Em seguida, a área deve ser lavada com água e sabão ou passar álcool. Lembre-se que quanto antes o carrapato for retirado do corpo, menor será o risco de contrair a doença, pois um carrapato infectado, após fixar à pele de seu hospedeiro, pode levar mais de 10 horas para efetivar a transmissão da bactéria.

No Brasil duas espécies de riquétsias estão associadas a quadros clínicos da febre maculosa: Rickettsia rickettsii, considerada a doença grave, registrada no norte do estado do Paraná e nos estados da região Sudeste. E a Rickettsia parkeri, que tem sido registrada em todas as regiões do Brasil, responsável por quadros clínicos menos graves. De forma similar ao Brasil, nos Estados Unidos a febre maculosa causada por R. rickettsii ocorre de forma endêmica e os casos de febre maculosa por R. parkeri e outras rickettsias do grupo da febre maculosa se encontram em plena expansão, porém sempre associados  espécies de carrapatos locais.

Saiba mais: Febre maculosa: Aspectos epidemiológicos, clínicos e ambientais.